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Se “a metafísica é o que colocamos no buraco da política”, como dizia Lacan, temos que pensar de que maneira estamos, a cada momento, produzindo ou desconstruindo metafísicas gozosas. Teologias políticas, que ocupam este vazio central com líderes salvadores, ideais narcísicos ou inimigos projetivos
Por Christian Ingo Lenz Dunker
Tornou-se uma banalidade afirmar que a psicanálise tem pouco a dizer sobre política porque esta é uma aventura coletiva enquanto a clínica é uma experiência para indivíduos, que ademais teriam o individualismo como valor fundamental. O argumento remonta a Jdanov, ministro da cultura de Stálin que, nos anos 1940, decretou extinção da psicanálise soviética incipiente em autores como Vigostski e Luria. A psicanálise migrou assim de ciência judaica para ciência burguesa, na pena de Bakhtin, foi execrada pelo marxismo francês de Sartre a Lucién Séve, antes de ser reabilitada por Althusser nos anos 1960. Esta reabilitação só foi possível porque a psicanálise foi percebida como uma anti-psicologia, capaz de fornecer um modelo de sujeito que não se confunde com o indivíduo. Esta concepção será localizada em Lacan e sua tese central de que o sujeito é dividido, ao mesmo tempo universal e particular, efemeramente singular.
Desde então estão dadas as condições para um novo tipo de crítica que não se contenta mais em apenas desmascarar falsas consciências e educar as massas para a emancipação. A ideologia não é apenas uma questão de saber e esclarecimento, pois há em seu fulcro um núcleo de gozo, que é o mais difícil de abandonar em um processo transformativo qualquer, seja ele clínico ou político. Um caso particular desta divisão do sujeito é sintetizado pela fórmula: sei muito bem que isso está errado, mas continuo agindo como se não soubesse. Retrato de como o saber é impotente diante do gozo. Constatação que uma vez generalizada nos leva às ideologias da força e da purificação. Se “a metafísica é o que colocamos no buraco da política”, como dizia Lacan, temos que pensar de que maneira estamos, a cada momento, produzindo ou desconstruindo metafísicas gozosas. Teologias políticas, que ocupam este vazio central com líderes salvadores, ideais narcísicos ou inimigos projetivos.
Assim chegamos a um dos impasses mais importantes tanto para os que estão interessados em novos modelos de crítica, quanto para os que querem pensar estratégias de ação coletiva. Um bom exemplo deste impasse está no crescente interesse das pessoas comuns por temas políticos. Isso é em parte facilitado pela forma de vida digital, em parte derivado de que nele as minorias organizadas estão na vanguarda do gradual processo de reinterpretação do cotidiano. Contudo, o desastre que se pressente por toda parte, com sua combinatória de idealização e ódio, ressentimento e vingança deriva da ascensão inquestionada de políticas baseadas em identidade. Aqui faz falta a crítica psicanalítica das identificações de grupo. Lembremos que o Jdanovismo não se apoiava apenas na objeção aos modelos individualistas de mente, presentes em Freud, mas, sobretudo, à sua crítica do funcionamento da identificação em grupos. Melhor dizendo, Freud não analisou grupos propriamente, mas massas organizadas como o exército e a igreja. Descreve-se assim um conjunto de processos envolvendo a regressão de seus membros a um laço social mais simples e empobrecedor. Todos eles representam antípodas do que antigamente chamava-se “consciência de classe”: submissão irreflexiva ao líder, criação de inimigos pela projeção paranoica de desejos inaceitáveis para o grupo, perda de capacidade judicativa, agressividade e paixão imaginária, recalque da sexualidade e devoção pela causa. O modelo aqui é simples, uma forte identificação horizontal entre os irmãos é reforçada continuamente por meio da colocação do mesmo objeto, seja ele um líder carismático, uma disciplina moral, um traço estético, ou uma condição de equivalência, que ocupa, desde então um lugar definitivo no ideal de eu das pessoas. Temos, portanto, três termos que exprimem o coletivo em psicanálise: massa, grupo e classe, e nunca apenas dois, como na oposição entre indivíduo e sociedade.
Examinemos agora como a antiga ideologia voltada para as massas, dependente das grandes narrativas, e sua falsa universalidade transformou-se, graças à dialética digitalis do neoliberalismo, em uma política de grupos, com suas demandas particulares, sem que o conceito de classe tivesse a menor chance de sobrevida. Perdeu-se neste caminho uma ideia recorrente entre os continuadores de Freud, ou seja, a de que existem coletivos que não funcionam nem como massa nem como grupo. Este é o caso do que Bion chamou de “grupo de trabalho”, do que Pichon Riviére designou como “grupo operativo orientado para a tarefa” e que Lacan nomeia como “transferência de trabalho”. Salta aos olhos a recorrência da expressão “trabalho” entre autores de linhagens psicanalíticas tão distintas, indicando exatamente o tipo de relação contra alienante que se pode esperar da prática ou da ação de um coletivo, ou seja, neste caso mais apropriadamente chamado de uma classe. A grande intuição transversal aqui é de que não precisamos ser iguais para fazer algo juntos. Mais do que isso, quase uma regra, quanto mais nos preocupamos com quem nós somos, menos nos orientamos para o que queremos. Aqui precisaríamos distinguir noções que operam separadamente no funcionamento dos coletivos: a demanda, a transferência e a identificação. Ernesto Laclau mostrou como o significante flutuante e equívoco, de uma mesma demanda comunitária, é essencial para a organização de movimentos sociais. Este significante, como bem se ilustra no espanhol “Podemos” ou no brasileiro “Passe Livre”, tem uma duração específica, correspondendo a um agenciamento contingente. Ao contrário dos grupos definidos por uma identidade de gozo, eles tem uma data de término, um princípio de autodissolução.
Grupos organizados pela demanda podem ou não estar articulados com um sujeito suposto saber. Neste caso está implicada uma indeterminação do sentido, ou do percurso da verdade, como diria Badiou, dos significantes da demanda. Um coletivo como este terá por característica manter aberto o sentido de seus significantes constitutivos, tais como “democracia”, “justiça” ou “igualdade”. O interesse desta distinção é que coletivos formados em torno de transferências ou de demandas são grupos de baixa densidade identitária. Ao passo que grupos que se definem por identidades são politicamente muito mais perigosos justamente porque a identidade é algo que precisa permanentemente ser reposta e confirmada. Minha identidade de gozo tende sempre a ser imposta ao meu vizinho. A identidade de gozo suposta ao vizinho será sempre ameaçadora para minha fantasia. É por isso que Lacan dizia que o gozo é um mal, porque ele comporta o mal do próximo. Dissociada de demandas e de transferências grupos de identificação, também chamados por Freud de “paróquias” tendem ao efeito entrópico de auto-purificação disciplinar. Quando só resta ao revolucionário “ser revolucionário” ele se afasta da transformação do mundo e começa a se esgueirar para a comparação com seu próximo em busca de saber quem é o “mais revolucionário”. E ainda confundirá crítica com denúncia. Aqueles que lidam com catástrofes, tragédias e situações de vulnerabilidade social estão advertidos de que quando constituímos grupos à base da identificação com a condição de vítimas, o processo tende a se tornar mais longo e às vezes insolúvel. É assim que se criam formas de vida condominiais, à esquerda ou à direita, com os mesmos costumes narcísicos: essencialização de si, moralização das escolhas de gosto, crítica permanente do desvio, purificação infinita da própria subjetividade, seleção contínua dos que podem e dos que não podem participar da grande imagem que define quem é “nós”, covardia na relação com a palavra própria, valentia segregatória. É assim que a contradição entre universal e particular tornou-se, no varejo, uma concorrência imaginária e indefinida entre particulares: ricos e pobres, negros e brancos, mulheres e homens, cultores do axé e adeptos do funk, palmeirenses e corintianos, enquanto no atacado, somos todos engolidos pelo universal do consumo. Invertemos o princípio do apóstolo Paulo, criador do universalismo, agora só há judeus e gregos, servos e livres, homens e mulheres.
Para a mentalidade particularista sua própria opinião carrega um a-mais-de-valor cujo compartilhamento é problemático, gerando identificações narcísicas cada vez mais segmentadas e condomínios cada vez menores e mais exclusivos. O grande problema é que não parece possível uma autêntica dedicação política sem algum engajamento identitário. Neste ponto muitos concordarão sobre o valor “estratégico” de colocações como “só uma mulher pode falar sobre feminismo, pois só ela sabe o que é viver sua opressão de gênero”. Como se uma mulher trans fosse no fundo “impura”, pois não é essencialmente uma mulher, posto que nascida homem. “Só um negro tem autoridade para falar da segregação”. Como se precisássemos hipostasiar a raça para reconhecer o dever de reparação. “Só a mulher, negra, pobre e objeto de violência possuirá a autoridade para falar por sua condição”. Como se a pena e a compaixão fossem os afetos políticos centrais de uma verdadeira transformação. Como se a autenticidade do sofrimento fosse o motor espontâneo da autoridade política. Exemplos cabais de metafísicas de gozo que podemos usar para suturar o buraco da política. Exemplos de metafísicas da propriedade, a propriedade mais fascinante e fetichista que pode haver na era do capitalismo imaterial: a própria identidade.
Valor “estratégico” quer dizer aqui que tal política exprime um desejo de empoderamento de minorias historicamente silenciadas. Contudo, “estratégico” que dizer também “provisório”, “contingente”, útil em determinado “contexto”. Quem diz “estratégico”, diz também, subordinado a uma política. E se essa política não for universal estamos diante do totalitarismo. Ainda que seja a totalidade dos pobres, das mulheres ou das vítimas esta será uma forma criada para silenciar seu oponente, favorecendo o auto-preconceito e reproduzindo, de forma invertida, a lógica da segregação. A generalização do grupo apenas torna um particular mais forte, porque mais extenso, o que não o torna por si mesmo mais universal. O que determina a diferença é a lógica de funcionamento não o tamanho. Assim também não há massa que não se reduza a um falso universal. Neste caso temos a ampliação de formas de vida que funcionam em estrutura de “igreja” ou em estrutura de “exército” que é a maneira como o neoliberalismo produz indivíduos infinitamente trabalhadores e indefinidamente crentes. Há pequenas massas e grandes grupos, sem nenhuma perspectiva de classe.
Mas então de onde virá esta efemeridade crucial se, como vimos, ela está mais ligada à demanda e à transferência do que à identificação? Efemeridade que é o traço distintivo da posição singular. Posição que não prescinde nem do reconhecimento de predicados particulares nem da aspiração de universalidade. Está aqui a chave para pensar a crítica da ideologia para além do desmascaramento de impostores, da disciplina da pureza (na qual radica os discursos da corrupção) e da reificação dos oprimidos, fora disso condenados essencialmente a eternizar e repor sua própria condição de exclusão.