Escrito en
CULTURA
el
Considerada uma das principais obras sobre gênero e sexualidade deste século, livro propõe a substituição da “natureza”, que sujeita uns corpos a outros, pelo contrato da contrassexualidade onde os corpos não mais se reconheceriam como “homens” ou “mulheres”
Por Marcelo Hailer
"A contrassexualidade não é a criação de uma nova natureza, mas sim o fim da natureza como ordem que legitima a sujeição de uns corpos sob os outros. A contrassexualidade é, em primeiro lugar: uma análise crítica da diferença de gênero e de sexo, produto do contrato social heterocentrado, cujas performatividades normativas tem sido inscrita nos corpos como verdades biológicas (BUTLER: 2001). Em segundo lugar: a contrassexualidade propõe substituir este contrato social que denominamos Natureza por um contrato contrassexual. No marco do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou mulheres, mas sim como corpos falantes e reconhecem os outros como corpos falantes (...) A contrassexualidade é também uma teoria do corpo que se situa fora das oposições homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/ homossexualidade” (Paul Beatriz Preciado, Manifesto Contrassexual).
Lançado originalmente em 2002, Manifesto Contrassexual, de Paul Beatriz Preciado, causou polêmica na época em que foi lançado e segue influenciando toda uma geração nos debates a respeito das identidades e seus limites de aplicação, pois, para Preciado, apesar da importância da identidade político-social, esta sempre limita e acaba por criar novas formas de marginalidade. Portanto, de acordo com a filósofa, é necessário criar uma nova estratégia que rompa os limites identitários impostos pela tecnologia de gênero, visto que esta pressupõe que todas as identidades, sexuais e de gênero, possuem papeis sociais pré-definidos, algo já estabelecido nos marcos da anátomo-política e bio-política estabelecida por Michel Foucault, de quem a filósofa é diretamente influenciada.
[caption id="attachment_59057" align="aligncenter" width="174"] Livro chega ao Brasil pela N-1 Edições (Foto: divulgação)[/caption]
Partindo dos estudos sobre o biopoder de Michel Foucault, do desconstrucionismo de Jacques Derrida, de quem ela foi orientanda e, dos estudos de gênero de Judith Butler, Preciado radicaliza ao propor o fim do contrato social (Ocidente) que tem a natureza como ponto de partida às experiências sociais e sexuais, fato que já havia sido observado por Simone de Beauvoir no volume 2 de O Segundo Sexo. “A contrassexualidade é também uma teoria do corpo que se situa fora das oposições homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/ homossexualidade. Definir a sexualidade como tecnologia é considerar que os diferentes elementos do sistema sexo/gênero denominados "homem", "mulher", "homossexual", "heterossexual", transexual, assim como as suas práticas e identidades sexuais não são senão máquinas, produtos, instrumentos, aparatos, truques, próteses, redes, aplicações, programas, conexões, fluxos de energia e de informação. Interrupções e interruptores, chaves, leis de circulação, fronteiras, constrangimento, dissensos, lógicas, formatos, acidentes, detritos, mecanismos, usos, desvio...”, propõe Preciado.
Obviamente que uma obra do porte do Manifesto Contrassexual está longe de ser um consenso, muito pelo contrário. Inserida no que se chama de “estudos queer”, o principal atrito em torno da obra se dá pelo fato de que a autora não está preocupada apenas em apontar os dispositivos normalizadores em torno das identidades hétero e homo, indo além e apontando também uma estratégia de normalização em torno de todas as identidades sexuais e de gênero. A principal crítica que se faz é que a autora apenas está considerando um contexto branco e europeu e que a estratégia contrassexual está longe ser de uma realidade, por exemplo, às mulheres transexuais das periferias da Cidade do México e de São Paulo, onde questões como crimes de ódio, renda e trabalho para pessoas trans ainda não foi problematizada. Porém, e é aí que entra a genial crítica de Preciado: enquanto estivermos num sistema binário, dotado pelo contrato social da “natureza”, algumas questões nunca serão resolvidas. Um sistema liberal pautado pela natureza jamais vai “aceitar” corpos trans ou configurações familiares fora da ordem home mX mulher. E o contrato contrassexual é justamente isso: destruir os limites imposto pela “normalidade” e “anormalidades”, ainda que esta seja vista como uma estratégia de política.
Infelizmente, o Manifesto Contrassexual chega com 13 anos de atraso no Brasil, de lá pra cá Beatriz Preciado adotou o Paul como nome, parte de sua política trans, e muitas questões abordadas no Manifesto avançaram e mais dois livros foram lançados pela autora: Texto Yonqui (2008), onde, a partir da aplicação de hormônios masculinos, a Preciado faz uma crítica a carta genética e ao fármaco-poder; e Pornotopia (2010), no qual, a partir de ensaios da revista Playboy, a filósofa faz uma análise da arquitetura enquanto um dispositivo de biopoder que, a partir do espaços arquitetônicos organiza os corpos. Pornotopia foi aclamado pela crítica e rendeu inúmeros prêmios a Preciado, que se estabeleceu, de vez, como uma das principais vozes dos estudos de gênero e sexualidade.
Como parte do lançamento, a N-1 Edições realiza no próximo dia 28 um evento para discutir o Manifesto Contrassexual, que vai contar a participação da cartunista Laerte Coutinho, da professora e pesquisadora Carla Cristina Garcia (PUC-SP) e da também professora Heloisa Buarque (USP), tendo a mediação da psicóloga Ana Ferri.
Serviço:
Lançamento do livro Manifesto Contrassexual
Conversa aberta: Sexualidade e gênero fora da caixa
Debatedores: Laerte Coutinho, Carla Cristina Garcia (PUC-SP/ Inanna), Heloisa Buarque de Holanda (USP-Numas).
Mediação: Ana Ferri
Quando: 28/08 - Sábado - 15h - Entrada Franca
Onde: rua Dr. Vírgilio de Carvalho Pinto, 426