O cinema brasileiro vai bem?

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Não parece razoável festejar a troca de elites no meio cinematográfico: do capital internacional (Hollywood) para o grande capital nacional (Globo Filmes) Por Amanda Coutinho (*), da Carta Maior Nas últimas semanas, o Informe de Acompanhamento de Mercado para o primeiro semestre de 2014 da ANCINE registrou que a renda do cinema nacional cresceu 26,3% em relação ao mesmo período do ano anterior, com mais de 7 milhões de bilhetes vendidos e três filmes entre os dez mais vistos. No discurso quase consensual de que "o cinema brasileiro vai bem", utilizam-se dos dados setoriais para demonstrar que o audiovisual brasileiro vive uma tendência de crescimento que alcança os maiores patamares das últimas duas décadas, posicionando o Brasil entre os dez maiores mercados de cinema do mundo. O que nem sempre fica claro no alarme dos dados que sugerem um "boom do cinema nacional" é, primeiro, a relação entre a influência da entrada das Organizações Globo no mercado cinematográfico brasileiro e a atual fase pela qual passa o cinema nacional. Segundo, o fato de que o mercado cinematográfico apresenta uma concentração nunca vista no Brasil. Além disso, destaca-se que o crescimento do parque exibidor coincide com o movimento de expansão dos shopping centers nas cidades brasileiras. Já o crescimento médio do preço do ingresso entre 2009 e 2012 chega a 28%. Na quantificação do mercado também não fica evidente que um ou dois títulos distribuídos por apenas uma empresa são responsáveis pela maior parte da conta. Em 2012, por exemplo, "Tropa de Elite 2" e "Se eu Fosse Você 2", sozinhos, foram responsáveis por mais metade da bilheteria nacional, segundo dados da Ancine. Através de uma fórmula que quase sempre inclui elenco conhecido, profissionais oriundos da televisão e muito merchandising na grade de programação da própria emissora, a Globo tem sido responsável, em média, por 92% das bilheterias nacionais. Entre as 10 maiores bilheterias de 2012, por exemplo, 8 foram distribuídas pela Globo Filmes. Embora as distribuidoras nacionais já sejam responsáveis por 75% dos títulos exibidos, a dinâmica é marcada pela distribuição e promoção da Globo Filmes ou a codistribuição da mesma organização com empresas internacionais, como a Downtown e a Paris Filmes. O modo de atuação da empresa é marcado também pela associação com produtores (in)dependentes. Ao se associar a algum projeto, a Globo Filmes não desemboca recursos para a produção, mas para a distribuição e promoção. Trata-se, no limite, de uma forma de reestruturação produtiva nas indústrias culturais que terceiriza a produção para produtores (in)dependentes e/ou subcontratados. Enquanto se flexibiliza e reduz os custos da produção audiovisual e cinematográfica, acelera-se o processo de concentração na distribuição e na promoção do produto final nas mãos dos conglomerados do entretenimento. Muito embora a regra mercadológica aponte claramente para a concentração e uniformização do campo cinematográfico, é importante destacar também as ambiguidades e tensões coexistentes que apontam para necessidades de discutir critérios de políticas públicas para o setor. Na verdade, a partir da extinção da Embrafilme, pelo governo federal, no começo da década de 1990, diversos governos estaduais, se propuseram em criar condições para a continuação de sua produção regional de cinema e audiovisual que vinha sendo desenvolvida até então, no intuito de retomar o cinema brasileiro. Hoje, o período que ficou convencionado de cinema pós-retomada (a partir de 2002) busca soluções regionais que, de certa maneira, coexistem com um novo modelo hegemônico pautado não só na presença sufocante do produto cinematográfico estrangeiro, principalmente hollywoodiano, mas também do grande capital nacional que representou a entrada das Organizações Globo no setor. Em Pernambuco, as políticas públicas cinematográfica e audiovisual são desenvolvidas pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe, que se pauta sob duas óticas: como interventora, ou seja, quando o próprio poder público gere diretamente a sua própria produção cultural audiovisual e, neste caso, é o executor das políticas, programas e ações cinematográfica e audiovisual (destaca-se o exemplo da revitalização e manutenção das salas de exibição de filmes); ou como reguladora, isto é, quando o poder público gere indiretamente, fomentando ou possibilitando que surjam atividades de produtores (in)dependentes locais, por meio de editais e prêmios públicos. A partir dos parâmetros existentes no Sistema de Incentivo à Cultura – SIC, em 2002, criou-se o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura – Funcultura. O maior aporte financeiro de apoio à cultura tem possibilitado um desenvolvimento sustentável do cinema e do audiovisual em Pernambuco, de maneira institucional, quer dizer, para além de qualquer mudança de governo. Interessante notar que metade de todo o Funcultura (em 2011 tinha um orçamento de R$ 22 milhões) está direcionado para o audiovisual. Essa é uma quantia significativamente alta para os padrões regionais de incentivo à cultura. Dentro do Funcultura, por sua vez, institucionalizou-se o Funcultura Audiovisual. Surgiram subcategorias de apoio que poderiam contemplar todos os formatos, gêneros e elos criados: curtas e longas-metragens de animação, ficção e documentário, assim como produtos para televisão como programas, interprogramas, séries e microséries de TV; difusão do cinema e audiovisual; pesquisa e formação; e desenvolvimento do cineclubismo. Segundo dados da Fundarpe, somente no intervalo de 2007 a 2011, o valor total direcionado para o segmento do cinema e audiovisual pernambucano teve um aumento de mais de 500%, passando do valor de R$ 2,1 milhões para R$ 11,5 milhões. Isso significou uma triplicação do número de produtores cadastrados em busca de recursos de cinema e audiovisual, entre o período de 2007 a 2009, saltando de menos de 500 produtores para 1.500. Quanto mais produtores, mais produtos cinematográficos e audiovisual e, consequentemente, uma maior competição entre os mesmos e, portanto, um maior nível produtivo regional, tanto em quantidade quanto em qualidade fílmica. A análise da quantidade de projetos cinematográficos e audiovisuais incentivados durante o período de 2007 a 2010 é paradigmática. Foram 170 projetos no total. No cinema foram 40 longas-metragens e 44 curtas-metragens. No audiovisual foram 33 programas de televisão. No campo da formação e difusão foram 44 projetos e no incentivo à atividade cineclubista, 9 projetos. Quanto à qualidade dos filmes, destaca-se que a produção cinematográfica, seja de curtas e longas-metragens, vem se destacando nos festivais nacionais e internacionais, vencendo os grandes festivais nacionais, como o Festival de Brasília de 2012, com os filmes Era Uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo Gomes, e Eles Voltam, de Marcelo Lordello, que dividiram o prêmio de melhor filme pelo júri; o Festival do Rio de 2012, com o filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho; e mais recentemente, o Festival de Gramado de 2013, comTatuagem, de Hilton Lacerda. No debate das escolhas possíveis de política pública cultural, resta evidente a opção do governo brasileiro pelo fundamento da privatização neoliberal. Porque procura estimular a cultura nacional por meio de leis de incentivo fiscal ao patrocínio privado. Em resumo: reduz-se o orçamento público direto, expande-se o setor privado, estimula-se o valor simbólico da "cultura" enquanto moeda e imagem cool das corporações e para o "desenvolvimento" do país. Finalmente, transfere-se de forma principal para as empresas, obrigação genuinamente estatal de fomento e incentivo ao setor. Por isso pode-se afirmar que a política de cultura, naquilo que implica deliberação, escolhas e prioridades, é propriedade das empresas e suas gerências de marketing. A predominância dessa lógica, portanto, minimiza o poder de intervenção do Estado e potencializa os interesses de mercado, quase sempre de benefício restrito. O resultado da aplicação desta lógica no setor audiovisual brasileiro ultrapassa os dados que sugerem um ótimo momento do cinema nacional para problematizar a monopolização e os critérios das políticas públicas culturais. Nesse sentido, não parece razoável festejar a troca de elites no meio cinematográfico: de Hollywood para Globo Filmes, quer dizer, do capital internacional para o grande capital nacional articulado internacionalmente. Porque a concentração permanece presente prejudicando a noção ampla da cultura como direito a partir do qual os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, reconhecem-se, diferenciam-se, entram em conflito, comunicam, trocam experiências e movem o processo cultural. Se, no exercício do direito à cultura, criam-se múltiplos lugares e focos de poder que são concorrentes, concomitantes, divergentes, antagônicos e contraditórios, a pauta da diversidade segue em aberto enquanto possibilidade de comunicação plural de vozes. Por isso, tão importante quanto considerar a complexidade e potência "da era digital" (que de fato engendram novas sociabilidades e alteram a correlação de forças no processo de comunicação), é sustentar a existência de políticas públicas capazes de evitar monopólios e descentralizar a produção e distribuição dos bens culturais nos meios tradicionais de comunicação (neste caso, a TV). A propósito deste tema, ressalta-se a pauta de democratização dos meios de comunicação por meio do Projeto de Lei de Iniciativa Popular - Lei da Mídia Democrática, que garante, de um lado, mecanismos para impedir a concentração, o monopólio ou o oligopólio, e de outro, a distribuição e circulação da produção independente e regional na programação da TV aberta, por exemplo. Segundo a Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão (ABPITV), somente 5% do número de filmes produzidos pelas 4 mil produtoras independentes brasileiras chegam à televisão. Por fim, nas discussões sobre políticas públicas para o audiovisual parte-se sempre do princípio da institucionalização, no sentido de um instrumento legal de incentivo à cultura voltado para o cinema e o audiovisual, nos seus diferentes formatos, gêneros e elos produtivos. Mas dentro dessa análise discursivamente intervencionista e protecionista do audiovisual brasileiro, não se distingue as heterogeneidades presentes no próprio setor e as forças que o movimentam. Por isso parece fundamental discutir critérios que desenhariam parâmetros de uma produção (in)dependente no Brasil. A preocupação do financiamento das políticas públicas cinematográficas deveriam se voltar para as configurações e especificações fundamentais do que seria o (in)dependente hoje. Quer dizer: (in)dependente como? (In)dependente de quê? O movimento de (in)dependência nas produções cultural ainda tem sido visto com bastante idealizações ligadas à atividade artística em geral, sobretudo à genialidade, ao ócio e ao não enquadramento ao mercado. Por isso, o cineasta (in)dependente normalmente é definido pela autonomia econômica, ao adotar sistemas de financiamento alternativo (colaborativo) que não as leis de incentivo público e ainda por aspectos artísticos como inovação e traço autoral que confeririam uma aura indie ou cult à produção. Certo é que enquanto se naturaliza e legitima as produções (in)dependentes como arte acima do mercado, esse tipo de atividade funciona como laboratórios de ideias e de produção flexível, no sentido de que seus realizadores exercem todas as funções de produção, entre direção, roteiro, fotografia, montagem etc, enquanto não contam com financiamento público. A produção (in)dependente não apenas está incluída em uma lógica mercadológica e neoliberal de política cultural, como é a expressão paradigmática de uma inclusão subsidiária, cooperada e/ou especializada em relação à distribuidora e promotora do produto final – o grande conglomerado do entretenimento. O descortinamento deste tipo de relação é imprescindível para o enfrentamento da pluralidade e desconcentração monopólica do setor. Torna-se essencial a construção de marcos regulatórios que especifique e enfrente as disparidades do mercado. E isso passa pela definição de parâmetros que não coloque o (in)dependente na situação de necessariamente à margem do financiamento público. Ao contrário, parece que este deveria ser um dos focos da política cinematográfica: o financiamento de produções (in)dependentes, assim entendidos como aquelas produções que não pretendem contar com a distribuição ou promoção dos grandes conglomerados do entretenimento. *Amanda Coutinho é Doutoranda de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Correio eletrônico: praconversar@globomail.com.  Crédito da foto de capa: Divulgação