A jornada pelas memórias de quando Eliane era criança foi motivada por uma crise com a palavra escrita, em 2011, ao fazer uma reportagem na Bolívia. “Perdi, por um momento, a minha crença no poder da narrativa como instrumento de transformação da vida e especialmente das realidades injustas”, revela a autora em entrevista à Fórum. Foi o seu maior confronto com a impotência: Sonia, uma menina de 11 anos que sofria da doença de Chagas, agarrou-a pelos braços e disse “não me deixe morrer”. “Percebi ali que contar a sua história para o mundo, como eu disse que faria, não seria suficiente para salvar sua vida”, explica. Depois desse episódio, Eliane não conseguia mais escrever - até entender que, se contar a história era insuficiente, era também o possível. “E o possível é pouco e muito ao mesmo tempo”, conclui. Foi aí que Eliane Brum passou a ficar obcecada por uma busca pelos sentidos da palavra escrita em sua vida. Ao ter descoberto que “a palavra salva e não salva, ao mesmo tempo”, ela precisava decifrar por quais caminhos a escrita a salvou. “Quero entender como ela me deu um corpo que me permitiu viver para viver – e não para morrer”, afirma a autora, enigmática. Assim, em “Meus desacontecimentos”, a jornalista revista cenas e detalhes simples, mas marcantes, do seu passado, como a “casa-túmulo” em que morava, um jardim de flores caótico, a mulher acidentada embrulhada no plástico, o desconforto com a lembrança sempre presente da irmã morta, a luta contra a ditadura com uma caixinha de fósforos e, claro, os seus primeiros textos. A palavra é o instrumento de Eliane para tecer significados para a própria existência, construir a sua narrativa. “Nossa vida é nossa primeira ficção”, afirma. Para criá-la, é preciso sempre interrogar os seus significados. “Parece-me que viver uma vida viva é ter a coragem de perder os sentidos duramente construídos e ter que mais uma vez pactuá-los, recriá-los, negá-los e reinventá-los.” Ela completa: “se fossem imutáveis, estáticos, nós seríamos mortos que respiram”. Logo, se a palavra escrita salvou Eliane Brum, foi para ela se perder de novo - ser “(des)salvada”. “Essa perda, ao mesmo tempo que me mata, me salva de uma vida morta”, conclui. No livro, a personagem Luzia sussurra o que parece ser a síntese desse raciocínio: “ser é perder-se”. A relação da jornalista com a escrita é intrínseca, quase intravenosa. Para ela, cada frase, cada parágrafo, “são como carne”, viscerais. “Neste [livro] estou me sentindo nua, mais ainda do que me senti nos outros. Se tivesse colocado a tarja de ficção, talvez me sentisse um pouco vestida. Não muito, também”, confessa. Não é somente a história de Eliane que está exposta, é também seu corpo, seus sentimentos, seus significados. E, com a publicação de “Meus desacontecimentos”, ela tem um novo dilema para resolver: “Agora que me desvesti, que talvez tenha inclusive me arrancado a pele, como eu me apresento diante dos outros?” [caption id="attachment_45107" align="alignright" width="300"] Em "Meus desacontecimentos", Eliane revisita sua própria história em busca dos sentidos que a palavra escrita assumiu, em várias etapas de sua vida (Foto: Sarau Suburbano Convicto)[/caption] Eliane rejeita o rótulo de “autobiografia” para seu novo trabalho. “Penso que cada leitor vai dar a ele seus próprios sentidos, a partir de suas circunstâncias. E, assim, tornar o meu livro o seu livro”, explica. O compromisso da autora é dar ao leitor as suas verdades, das quais ele vai se apropriar. “Eu cumpro o meu pacto de estar nele por inteiro. O que o leitor vai fazer com isso escapa ao meu controle, ainda bem. Não há duas leituras iguais”, completa. A obra também é um convite para olhar para trás de maneira mais verdadeira - sem o clichê do passado “cor de rosa”. “Acho que essa idealização da infância é uma grande perda para todos”, provoca. “Olho para ela como o momento da vida em que, ao nos confrontarmos com o real, costuramos nosso ‘monstruário’ pessoal, começando a identificar os monstros que assombram apenas a nós”. Ao fazer esse movimento para dentro, Eliane se desnuda. Ao mesmo tempo, incita o leitor a refletir sobre suas próprias memórias e, dessa maneira, a reconstruir seus próprios sentidos sobre o presente. “Cada um sabe, em seu mais íntimo, que [a infância] não foi bem assim [como a idealizamos]”. Em “Meus desacontecimentos”, Eliane Brum revela qual é a sua força: “(...) é, agora eu sei, saber-me quebrada”. É também no “desfecho” dessa jornada de arrumar os seus pedaços, que Eliane revela sua palavra predileta. Libertadas as letras, é assim que elas emergiram de seus abismos: como “voragem”. Foto de capa: Divulgação
A palavra salva de Eliane Brum
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Em novo livro, “Meus desacontecimentos”, a jornalista e escritora revisita sua infância e sua relação com a escrita
Por Gabriel Fabri e Gabriela Boccaccio
[caption id="attachment_45105" align="alignleft" width="221"] “Neste [livro] estou me sentindo nua, mais ainda do que me senti nos outros. Se tivesse colocado a tarja de ficção, talvez me sentisse um pouco vestida. Não muito, também”, conta Eliane Brum sobre "Meus desacontecimentos", seu livro mais recente (Foto: Divulgação)[/caption]“Viver, Catarina, é rearranjar nossos cacos e dar sentido aos nossos pedaços, novos ou velhos.” Assim definiu Eliane Brum, após observar a reação de sua afilhada diante de uma garota de uns 10, 12 anos, com a perna engessada. A reação de Catarina ao ver a menina provocou uma contestação sobre a vida: as pessoas quebram. E levou ao nome de seu último livro, a coletânea “A Menina Quebrada”. Agora, a jornalista junta os cacos de sua infância para construir sua própria narrativa. O resultado é a obra lançada neste mês: “Meus desacontecimentos - a história da minha vida com as palavras” (Editora Leya).