Para cientista da religião, corre-se o risco de algumas igrejas repetirem o que ocorreu em outros tempos nos Estados Unidos, onde não era permitida a entrada “nem de cachorros e nem de negros”. Só que o alvo de hoje são os homossexuais
Por Adriana Delorenzo
Na semana passada, a bancada evangélica comemorou a aprovação de uma proposta que autoriza as igrejas a proibirem a presença de homossexuais em seu templos. Enquanto Cristo “andou entre todos os seres humanos, sentou-se a mesa com prostitutas e comeu com pecadores”, o parlamentar à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Marco Feliciano (PSC) ratifica propostas com “princípios fundamentalistas, autoritários e preconceituosos”. É o que explica o historiador e cientista da religião, Leandro Seawright Alonso, doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador do grupo de trabalho sobre o papel das igrejas na ditadura civil-militar brasileira da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Alonso acredita que o Brasil ser um Estado laico é um ideal, não é uma realidade. Autor do livro Entre Deus, Diabo e Dilma: messianismo evangélico nas Eleições 2010 (Fonte Editorial), o pesquisador observa ainda como a bancada evangélica busca promover uma instrumentalização do voto religioso, em ascensão no Brasil, e a demonização das esquerdas no País. Confira a entrevista na íntegra.
[caption id="attachment_34188" align="alignright" width="324"] Cientista da religião, Leandro Alonso: Estado laico não é uma realidade (Foto: Cezar Xavier)[/caption]Revista Fórum – Na última quarta (16), foi aprovado o projeto de lei 1411/11, na Comissão Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, que veta as igrejas de serem enquadradas em crimes de discriminação se proibirem a presença de homossexuais em seus templos. Qual é o impacto dessa proposta? Leandro Seawright Alonso – Parto da premissa fundamental para quaisquer democracias que a humanidade tem triplo direito: tem direito ao conservadorismo, ao progressismo e à moderação apaziguadora. Na prática, significa dizer que os membros das igrejas protestantes históricas e pentecostais têm o direito de discordar de “culturas sexuais” alternativas ou das práticas homossexuais propriamente ditas. E tem o direito de fazê-lo com base na Bíblia Sagrada (que na maior parte das vezes carece de melhor interpretação), e em outros pressupostos de fé, de doutrina, de tradição religiosa. Sobre o projeto de lei 1411/11, entretanto, considero-o tanto inconstitucional, quanto democraticamente vulgarizador e indiscernível do ponto de vista de um “espaço aberto ao público”. Porque um templo é lugar de espaços compartilhados com aqueles que não são necessariamente membros da comunidade local. Caso contrário, as igrejas fundamentalistas poderiam funcionar de portas fechadas ao público e renegar os princípios da “evangelização dos povos”. Sociologicamente, uma igreja requer diálogo com a comunidade ao redor, mas uma seita busca determinado isolamento imaginário em uma “sociedade dos salvos” intocáveis e sem nenhum interesse de “conversar” com os seus avessos democráticos naturais. Estamos em crise de categorias. Pondero que a insuficiente expressão “intolerância” não seja mais uma categoria aplicável ao Marco Feliciano, pois, além de tudo, ele vulgarizou os direitos humanos e banalizou os fundamentos da democracia brasileira com objetivos eleitoreiros claros. Logicamente, existe uma grande parcela da sociedade que se sente atraída pelo discurso do Marco Feliciano. Essas atitudes fortalecem convicções religiosas farisaicas de muitas pessoas que acorrem às igrejas evangélicas como atitude de resistência à modernização moral do país. Evidentemente, esse projeto de lei ratificou os princípios fundamentalistas, autoritários e preconceituosos de comunidades religiosas que sustentam certo arcaísmo transplantado de outros tempos para os nossos. Conheço muitas denominações protestantes históricas sérias e éticas (batista, metodista, presbiteriana, etc...), que, embora não concordem doutrinariamente com “culturas sexuais” alternativas, respeitam profundamente – com raras exceções – os seres humanos com outras orientações sexuais. Associam-se às igrejas aqueles que aceitam os seus pressupostos doutrinários, bíblicos, pois é livre a associação e a dissociação das instituições juridicamente estabelecidas. Em uma democracia, em um Estado laico, cabe-nos aceitar as diferenças e conviver em sociedade com as mais variadas formas de pensamentos, de filosofias, de confissões, de crenças, de descrenças. Reconheço que o Estado é pretensamente laico e as pessoas nem sempre são. Nem por isso elas devem legislar em nome do Estado de direito, utilizando-se das suas crenças e descrenças como procura fazer o Feliciano. Se isso acontece é porque os políticos semelhantes ao Feliciano representam milhares de brasileiros com as mesmas visões e intolerâncias. “Pecamos” também na formação política, no diálogo e na redemocratização das ideias.
Revista Fórum – O relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil com dados referentes a 2012, divulgado em junho deste ano pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), aponta que os casos de violações (que inclui violência física, psicológica e discriminação) contra homossexuais no Brasil cresceram 46,6% no ano passado. Propostas como essa e a própria atuação da Comissão de Direitos Humanos, com o pastor Marco Feliciano a frente, prejudicam o combate à violência contra a população LGBT? Leandro Alonso – Prejudicam. Apresento três razões que embasam minha resposta. A primeira é que o Feliciano legisla, incentiva ou apoia projetos de lei em causa própria. Para exemplificar, basta lembrar-se dos acontecimentos no “Glorifica Litoral” em que duas jovens homossexuais foram expulsas de um culto religioso por ordem do Feliciano. Considero que elas cometeram excessos em um evento religioso, mas maior abuso foi feito pelo Feliciano em espaço aberto: “A Polícia Militar que aqui está, dê um jeitinho naquelas duas garotas que estão se beijando. Aquelas duas meninas têm que sair daqui algemadas. Não adianta fugir, a guarda civil está indo até aí. Isso aqui não é a casa da mãe joana, é a casa de Deus". A Polícia Militar chamada publicamente por Feliciano é uma instituição que representa dado “entulho autoritário da ditadura” civil-militar brasileira que precisa ser removido (refiro-me à desmilitarização da polícia), porque além de especialista em “reintegração de posse”, volta-se frequentemente contra as liberdades dos cidadãos e das cidadãs brasileiras. A segunda tem fulcro no caráter psicológico das agressões porque uma igreja cristã – que tem logicamente liberdade de crença, de discordância, de ortodoxia – precisa desenvolver uma pastoral eficaz para cuidar de gente, cuidar de seres humanos. Isso inclui o combate a qualquer forma de violência contra os seres humanos – independentemente de cor, credo, orientação sexual. Não existe escolha além do amor cristão. Não foi isso que o Cristo disse? “E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo [...]” – Marcos 12: 29: 31. A terceira é que uma parcela dos religiosos aderiu à “apologia da inação”, ou seja, à falta de atitude diante das atrocidades cometidas no Brasil contra grupos suscetíveis à violência, tais como as mulheres, os homossexuais, os moradores em situação de rua e outros grupos de seres humanos. Muitos têm medo de se posicionar. Porque existe sempre um risco de má interpretação por suas comunidades locais ou por suas denominações, mas não existe o que temer: cuidar de gente não é o mesmo que concordar com as suas opiniões diversas. Os atos do Feliciano afetaram os números que não são apenas números, mas pessoas que deveriam ser protegidas pelo Estado de direito.
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Revista Fórum – Como as igrejas poderiam lidar melhor com essa questão da homofobia? Leandro Alonso – Grande parte das igrejas evangélicas precisa se “converter” ao cristianismo do Novo Testamento. Sinto-as historicamente distantes dos fundamentos teológicos da Reforma Protestante. Precisam resgatar a concepção do “protestantismo” em sentido mais amplo que mera contestação moralista herdada de “american way of life” (estilo americano de vida). Trata-se de superar a tendência do “gospel-show” e de promover uma realidade “pós-evangélica” no Brasil (não no sentido bíblico do evangelho). Segundo as histórias bíblicas fundantes, Jesus Cristo andou entre todos os seres humanos, tornou-se amigo deles e camarada dos opositores aos fariseus. Ele comeu com os pecadores. Sentou-se à mesa com as prostitutas e sofreu críticas severas dos religiosos. Acusaram-no de “comilão e beberrão”. Tornou-se “preso político”, foi torturado duramente e recebeu pena de morte. O Cristo irritou os religiosos, pois “cumpriu” a lei ao quebrar as interpretações ortodoxas, por exemplo, ao “curar” em um sábado – dia sagrado dos judeus. Digamos que Cristo não era um bom modelo para judeus religiosos. Cabe uma pergunta teológica, aqui: Quem é o modelo das igrejas, Cristo ou Feliciano? Lembre-se que Feliciano fez que o projeto de lei 1411/11 fosse aprovado e, com isso, algumas pessoas homossexuais serão proibidas de entrarem em templos religiosos oficiais (sem punição para os clérigos protestantes ou católicos). Paradoxalmente, o Cristo disse: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” – Mateus 18: 38 – 30. Na mesma linha discriminatória, nos Estados Unidos – de outros tempos – algumas igrejas evangélicas colocaram plaquinhas nas portas dos templos: “aqui não entra nem cachorro e nem negros”. Espero que as igrejas brasileiras não adiram aos “ditadores evangélicos” e que não reescrevam plaquinhas com palavras semelhantes referindo-se aos mais variados grupos sociais díspares. O pastor batista Martin Luther King Junior, negro corajoso, ativista, compreendeu bem o sentido da luta contra as diferentes “ditaduras do pensamento” e às multiformes discriminações sociais.
[caption id="attachment_34189" align="alignright" width="378"] "Feliciano legisla, incentiva ou apoia projetos de lei em causa própria", diz Leandro Alonso (Foto: Fernando Frazão/ABr)[/caption]Revista Fórum – Temos o exemplo da Igreja Cristã Contemporânea, que já tem oito templos. E de outro lado, a frase dita pelo Papa de que a Igreja “não pode interferir na vida dos gays”. São dois exemplos que mostram uma abertura para lidar com o tema. Os parlamentares da Comissão de Direitos Humanos estariam na contramão? Leandro Alonso – Sim, eles estão obviamente na contramão. As chamadas “igrejas inclusivas”, entretanto, representam apenas exclusão. É certo que elas possuem um significado importante na vida dos seus frequentadores. Mas essas igrejas são os abrigos dos excluídos. Perceba que a junção de excluídos não os torna mais incluídos por conviverem entre iguais. Pelo contrário, significa que precisaram se organizar para superar as angústias das violências e dos temores religiosos sofridos pela não aceitação. Em relação ao Papa Francisco, sabe-se que ele é um jesuíta cuja “teologia missionária” se fundamenta em Francisco Xavier (co-fundador da Companhia de Jesus). Apesar disso, seu carisma e sua feição são aparentemente inspirados em Francisco de Assis não sem razões para a Igreja Católica: é preciso conter o crescimento dos protestantes (entre outras coisas). Note que a resposta de Francisco é de respeito aos homossexuais, embora seja evidente que uma igreja “não pode interferir na vida dos gays”. Não quer dizer, contudo, que a Igreja Católica tenha um planejamento inclusivo para os homossexuais. Apenas que não quer criar problemas nesse empreendimento da “Contrarreforma Moderna” do novo papado no mundo e na América Latina. Há que se lembrar de que Jorge Mario Bergoglio teve alguma participação na ditadura militar argentina entre 1976 – 1982, e, não somente por isso, tornou-se símbolo de certo conservadorismo político-ideológico.
Revista Fórum – Por fim, a subcomissão de Direitos Humanos e Minorias Culturais na Câmara, presidida pelo deputado Jean Wyllys (PSOL), que reunia deputados contrários ao Marco Feliciano (PSC). Como podemos garantir o princípio constitucional do Estado laico diante desses últimos acontecimentos, entre outros? Esse princípio está sendo violado? Leandro Alonso – Se existe lugar para a “bancada evangélica” que defende abertamente alguns supostos de uma “teocracia” no Brasil, deveria haver um lugar mais “confortável” para a subcomissão de Direitos Humanos e Minorias Culturais na Câmara. As discordâncias são naturais e fomentam visões plurais em uma democracia num processo de amadurecimento. Para usar uma expressão de Antônio Flávio Pierucci, engendra-se um “efeito fariseu” na política brasileira da “bancada evangélica” que prega aquilo que não vive. Meu livro, “Entre Deus, Diabo e Dilma: messianismo evangélico nas Eleições 2010” – que talvez mereça uma edição melhor em termos materiais – demonstrou que houve uma intrincada demonização às esquerdas no país. Os pastores Paschoal Piragine Júnior e Silas Malafaia intentaram superar o nominado Império da Iniquidade na terra por meio da instrumentalização do voto religioso em ascensão no Brasil. Por forte discurso religioso, os fundamentalistas trabalharam com a manipulação do imaginário religioso contra as “hostes espirituais da maldade” política na figura demonizada de Dilma Rousseff. Podemos falar, agora, de um processo eleitoreiro bastante funcional de “felicianização do voto religioso”? As próximas eleições dirão. Sobre ser o Brasil um Estado laico, reafirmo que se trata de um ideal e não ainda de uma realidade. Se uma criança evangélica, na aula de religião de sua escola, aprender sobre a mitologia do Candomblé, sobre a poesia do sufismo, e mesmo sobre o catolicismo popular, qual deve ser a reação de sua família? Lembro-me que quando os primeiros missionários protestantes chegaram ao Brasil, eles, como minorias, não poderiam se casar e mesmo sepultar os seus mortos porque a Igreja Católica dominava não apenas os documentos do Império, mas também os cemitérios (nos quais não se poderia sepultar acatólicos). O pressuposto, e o ideal, de Estado laico vieram com a proclamação da República, mas não se pode negar que a presença protestante no País foi fundamental para se repensar as variáveis religiosas no Brasil. Finalizo com uma reflexão incitada por Pierucci ao abordar em um dos seus textos sociológicos a seguinte passagem bíblica: “Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado” – Lc 18: 10 – 14.