Leia o último texto da série de artigos sobre políticas públicas na área da cultura.
Por Célio Turino
5 – Cidadania cultural
A prática que envolve o conceito de cidadania cultural deve ter como alicerce o desenvolvimento efetivo dos conceitos de patrimônio cultural, formação, informação, criação, distribuição e acesso. Essa prática não se realiza instantaneamente, pois tem um caminho longo a percorrer: sofre recuos, depende de avaliações e, normalmente, é incompreendida no momento de sua aplicação. Em processos de transformação social são as mentalidades que mudam mais lentamente, mas sem um início de mudança neste campo não há transformação possível.
Gestão é definição de política, implica em tomada de posição, de campo de ação e não pode ser confundida como processo neutro. Uma gestão competente e comprometida deve apresentar uma conduta pública coerente, em que os conceitos e políticas apresentados à sociedade permitam a construção de consensos, transformando suas realizações em conquistas da cidadania. A eficiência da gestão, para além de um bom gerenciamento, demanda instrumentos de mediação e diálogo com o público. Por isso, os Conselhos são estratégicos, pois são eles (desde que representativos) que viabilizam essa mediação entre o poder público e a sociedade. Uma postura democrática de governo deixa abertas possibilidades para experiências alternativas e não deve pretender, a cada novo mandato, “reinventar a roda”, cabendo aproveitar aquilo que é positivo e indo adiante rumo a uma efetiva e consistente transformação, aprofundando o processo de mudanças sem nunca acomodar-se.
Mais que executar, uma ação cultural de caráter transformador deve liberar potencialidades da sociedade, abrindo espaço para a autonomia e o protagonismo da própria sociedade. Cabe estar junto, fomentar, instigar. Cabe servir e não se servir. Estas são regras básicas, que devem ser seguidas por todos os servidores públicos, desde aqueles com menor grau de responsabilidade até os titulares do comando de suas pastas.
Escutar mais e assumir uma postura mais humilde e menos impositiva quanto à proposição e execução de programas faz a administração pública crescer e a coloca no importante papel de articuladora de recursos e potencialidades. Com isso, poderemos romper com a ideia do Estado onipresente e autoritário, reconhecendo na sociedade – e em todos os cidadãos – a principal fonte de produção da cultura. Este é o caminho que, ao longo de 34 anos de serviço público busquei trilhar, seja como agente cultural, secretário de cultura e turismo em Campinas (1990/92), diretor de promoções esportivas e lazer em São Paulo (2001/04) ou como secretário da cidadania cultural no Minc e idealizador do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura. Espero tê-lo desempenhado a contento e com isso, ter contribuído para um outro padrão de gestão pública da cultura, pautado pelo conceito da cidadania cultural.
A cultura está presente e permeia todas as ações da sociedade. A resignação ou inconformismo com que o cidadão encara sua realidade é, sobretudo, uma conduta cultural. O próprio fato de o indivíduo se perceber enquanto cidadão é fruto de condicionantes culturais e históricas. Uma ação de governo que se pretenda progressista ou transformadora tem a cultura como prioridade. A cultura não pode ser confundida com eventos isolados, que se encerram em si mesmos. Muito menos deve ser reduzida ao entretenimento, ou às belas-artes e à “alta cultura”, erudita e hermética. Cultura é um pouco disso, mas seu conceito incorpora também referências históricas, costumes, condutas, desejos e reflexões. Evidentemente, o produto artístico – como concretização de um processo – tem um papel importante e, muitas vezes, é por essas obras que as pessoas tomam contato, pela primeira vez, com determinadas obras de arte; e são tocadas por elas. Antes de tudo, cultura é abrir-se para o campo do sensível e também para o cultivo da mente, ou, nas palavras de Bertolt Brecht, “é pensar, é descobrir”.
Democratizar a cultura significa amplificar o acesso aos bens culturais universais, permitindo que as pessoas elevem-se à autoconsciência. Ampliar o raio de ação da produção cultural – e não adaptá-la, moldá-la, enfraquecê-la – permite que o indivíduo se aproprie de instrumentos capazes de romper a falsa consciência, alienada e particularista, que o impede de desenvolver uma postura crítica diante do mundo em que vive. “Deve-se elevar a cultura do povo!”, defendia Maiakovski.
A distinção entre cultura erudita e de massa e destas em relação à cultura popular é uma maneira de hierarquizar culturas e assegurar a sobrevivência de um regime social. Essa diferenciação apresenta a elite como detentora de um saber e bom gosto que a legitima ao pleno exercício do poder. À massa – como se existisse esta categoria amorfa e compacta – é oferecida uma cultura pasteurizada, feita para atender necessidades e gostos medianos de um público que não deve questionar o que consome. Manter essa distinção é manter um status de dominação. Romper com essa realidade, difundindo uma cultura que seja um meio de crítica e conhecimento, é o caminho para a ampliação da cidadania. Vista desse modo, a cultura deixa de ser um bem secundário em um país de tantas carências e passa a ser um bem social, assim como as áreas de saúde e educação. Por esses motivos, uma gestão pública de cultura deve ser entendida como prioritária e social; alavanca de transformações.
Em resumo
Uma política pública de cultura pautada pelo princípio da cidadania cultural deve ser administrada de forma integrada, sistêmica. Reconhecendo no patrimônio histórico e cultural a base para toda a sua ação, preservando todos os bens que se constituem em referências fundamentais para a afirmação e construção de nossas identidades e, ao mesmo tempo em que forma identidades, não teme a diferença. Importar cultura. Exportar cultura. Esse é o motor da mudança: pelo intercâmbio e a troca nos desenvolvemos. A cultura forma consciências, oferece alternativas, amplia o repertório cultural do povo; informa, democratiza o conhecimento, respeita as diferenças, fomenta a produção criativa. Convida as pessoas a refletirem sobre sua realidade. Cria. Transforma.
Encerrada esta série conceitual, nos próximos artigos vou tratar de propostas concretas para Política Pública de Cultura, sobretudo para a cidade de São Paulo. Convido os leitores a enviarem suas contribuições, dúvidas e sugestões de modo que possamos construir uma política pública de forma colaborativa.
Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Servidor Público há mais de 30 anos, exerceu funções como Secretário de Cultura e Turismo em Campinas,SP (1990/92), Diretor de Promoções Esportivas e Lazer em São Paulo, SP (2001/04) e Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/10). Idealizador e gestor de diversas políticas públicas inovadoras, entre elas o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, atualmente em processo de implantação em diversos países. Autor e organizador de inúmeros livros e ensaios, entre os quais: NA TRILHA DE MACUNAÍMA – ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC, 2005) e PONTO DE CULTURA, o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi, 2009). Este é o último texto de uma série de cinco artigos sobre políticas públicas para a cultura, adaptados do livro “Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima” (Ed. Anita Garibaldi, 2009). Célio estreia com a série sua coluna no SPressoSP e na Revista Fórum.
Leia também:
Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 4): O financiamento da cultura
Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 3): Cultura como educação
Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 2): Cultura como processo
Pontos para uma gestão cultural transformadora (parte 1): Cultura como filosofia de governo
* Foto da página inicial: Alunos do ponto de cultura Escola Pernanbucana de Circo