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CORONAVÍRUS
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Texto e fotos por Fania Rodrigues
CARACAS, VENEZUELA | Petare, a maior favela da Venezuela e uma das maiores da América Latina, é um exemplo no combate ao coronavírus. No alto da comunidade, o frenético vai e vem dos becos e ruelas foi substituído pelo trânsito moderado de pessoas. Em algumas zonas se escuta apenas ecos de conversas que vêm de longe. A atividade comercial se resume aos supermercados, pequenos armazéns e padarias.
Já na parte baixa da comunidade o ambiente é outro. Trabalhadores ambulantes e prestadores de todo tipo de serviço continuam ativos, isso porque em muitos casos as condições econômicas não lhes permitem ficar em casa.
Na última semana o bairro ganhou uma movimentação extra, pois era dia de visita dos médicos do programa social Bairro Adentro, criando pelo ex-presidente Hugo Chávez, conformado, em sua maioria, por médicos cubanos. Mais de 10 profissionais da saúde, entre médicos, enfermeiros, agentes sociais e líderes comunitários se distribuem pelas casas de Petare. Eles são verdadeiros “caçadores de vírus”, pois vão a busca dos casos suspeitos para dar o diagnóstico e encaminhar para o tratamento.
Desde que a pandemia do coronavírus tocou solo venezuelano, no dia 14 de março, o governo do presidente Nicolás Maduro decretou quarentena nacional. Na maior parte do país, os venezuelanos levam a sério a quarentena e o confinamento social atinge entre 60 e 70% da população, segundo dados oficiais.
Com o coronavírus se iniciou também uma dinâmica médica: já não são mais os pacientes que vão aos consultórios. São os médicos que vão até as casas dos pacientes. Nossa reportagem acompanhou os profissionais da saúde pelas comunidades pobres de Caracas. Uma das equipes é liderada pelos médicos Rafael Crespo Placencia, clínico geral, e Carlos Oliveira Santana, chefe do Centro Diagnóstico Integral (CDI) San Miguel Arcángel, unidade do sistema público de saúde, localizada no centro de Petare.
[caption id="attachment_217484" align="aligncenter" width="700"] Os médicos Rafael Crespo Placencia e Carlos Oliveira Santana[/caption]
A primeira paciente do dia é a professora da rede pública, Desiree Sarmiento, de 36 anos, que entrou em contato com a comuna do bairro, para comunicar que apresenta sintomas de coronavírus. Foi orientada a fazer o teste rápido e o resultado deu negativo, mas ela continua com sintomas: febre e dores no corpo. Por isso recebe periodicamente a visita dos médicos.
“O mais importante é que você se mantenha isolada e siga todas as orientações que vou te passar”, diz o médico Rafael Placencia. Com olhos atentos, um pouco vermelhos, e aspecto cansado, Desiree Sarmiento escuta as orientações. “Se você ficar em casa, tranquila, o vírus morre e o ciclo acaba aqui. Existe um período de encubação que é de 14 dias. Mas, caso continue com sintomas, nos próximos dias, seria necessário hospitalizar você para fazer novos exames”, orienta o doutor.
A professora conta que não teve contato com pessoas doentes, mas teve sair várias vezes de casa para fazer compras de supermercado. “Se peguei o vírus foi aí. Comecei sentir febre, calafrios, vontade de vomitar e mal-estar”, explica.
[caption id="attachment_217487" align="aligncenter" width="700"] Pacientes recebem visita da equipe de saúde[/caption]
Assim como Desiree, dezenas de casos são monitorados pelos médicos. O diretor do CDI da comunidade, Carlos Santana, explica a situação dessa região visitada diariamente por sua equipe. “Nessa comunidade, cerca de 180 pessoas solicitaram visita médica por apresentarem alguns sintomas iguais ou parecidos aos do coronavírus. Mas, não atendemos apenas pacientes de covid-19, mas também casos de outras doenças e muitas vezes apenas para fazer prevenção. Desde o início da quarentena já visitamos mais de 6 mil famílias, em uma zona de 36 mil moradores”, afirma.
O médico de 31 anos, apesar de jovem, tem grande experiência no controle de epidemias. No entanto, afirma essa vez é diferente. “Já enfrentei outras pandemias, como a da H1N1 (influenza A), que afetou vários países anos atrás. Também trabalhei no controle de uma epidemia de cólera, mas nada perecido ao que estamos enfrentando agora, não há precedente no mundo”. Em Cuba deixou família e amigos, mas diz sentir-se tranquilo. “Sei que lá eles serão bem cuidados pelos nossos colegas, que estão fazendo o mesmo que nós aqui”, diz Santana.
Na Venezuela seu ritmo de trabalho é intenso, pois o Centro de Diagnóstico que coordena funciona 24h e já realizou cerca de 800 testes de covid-19. Os pacientes que saíram positivo para o covid-19 já foram tratados e todos se recuperaram, segundo explica.
A fila para fazer o teste do covid-19 é constante nesse centro de saúde. Cerca de 10 pessoas aguardam para serem atendidas. A consulta é feita pelo médico infectologista Jorge Zapata, que veste macacão com tela de proteção especial, óculos de proteção, máscara e luvas. Ele explica que estar na linha de frente exige seguir protocolo para tudo. “Temos protocolo de segurança até para tirar a roupa, para não correr o risco de nos infectar. Vamos tirando um por um dos equipamentos de proteção e já colocando na água com sabão e desinfetante”, ressalta Zapata.
[caption id="attachment_217490" align="aligncenter" width="700"] O médico Jorge Zapata atende com equipamentos de proteção[/caption]
Testes massivos e gratuitos
A Venezuela foi o país da América Latina que mais realizou exames rápidos para o coronavírus, foram cerca de 250 mil até o momento. O resultado sai em 15 minutos. “Esse tipo teste aponta se o paciente teve contato, em algum momento, com algum dos vírus da família do covid-19, por isso também detecta o H1N1, por exemplo. Se sai positivo para o covid-19 precisamos aplicar o exame PCR, que identifica situação com mais exatidão. Mas o resultado também demora mais, cerca de 24h”. A Venezuela conta um laboratório equipado para processar todos os exames PCRs e não precisa enviar ao exterior, como o fazem algumas nações da América Latina.
Todo o ciclo de diagnóstico e tratamento do covid-19 é fornecido pelo Estado venezuelano de forma gratuita. E para fazer toda essa maquinaria da saúde funcionar precisa de muitos profissionais. O país conta com 23 mil médicos no total, dos quais cerca de 1.500 participam desse esforço de visitas casa por casa, no Estado de Miranda, onde está localizado o bairro de Petare, na região leste da grande Caracas.
[caption id="attachment_217488" align="aligncenter" width="700"] Paciente faz teste do Covid-19[/caption]
Esse é o estado venezuelano com o maior número de casos confirmados, com 76 pessoas com covid-19. Por isso quem trabalha nessa zona está no front da batalha contra o coronavírus. “Estamos no pé do canhão”, destaca Angel Guerra, vice-diretor de Assistência Médica de Miranda. O estado possui 3 milhões de habitantes, 66 postos de saúde, dos quais 38 são equipados com unidades de tratamento intensivo, para atender casos graves de pacientes com coronavírus.
“Estamos atendendo uma média de 52 mil pacientes diariamente no estado, desse total, pelos 500 afirmam sofrer algum tipo de sintomas de infecção respiratória. Mesmo quando o teste do coronavírus resulta negativo continuamos fazendo seguimento do caso durante 15 dias, em suas casas”, relata Guerra. Ele participou do Programa Mais Médicos, do Brasil, morou três anos no interior do Paraná e fala um perfeito português.
Ninguém está imune ao medo
Apesar de ter poucos casos de Coronavírus, a Venezuela está em alerta. O Distrito Capital de Caracas, por exemplo, tem apenas 31 casos, porém o sistema trabalha em sua potência máxima para evitar contágios. Trata-se de um ponto estratégico, pois é o centro do poder político do país.
Há escassos quilômetros do Palácio Presidencial de Miraflores está o histórico bairro de La Pastora, onde o médico venezuelano, José Antônio Medina, de 52 anos, atende todas as semanas. São 10h da manhã e o sol caribenho arde como o verão brasileiro, quando a equipe liderada doutor Medina começa a subir as longas escadas da comunidade, localizada aos pés da imponente cordilheira da Ávila, que corta Caracas de ponta a ponta.
A comunidade não registra nenhum caso de coronavírus, mas o monitoramento é constante. “Nos postos de saúde não podemos receber mais de cinco pessoas, para evitar aglomeração. Então atendemos os problemas de saúde nas casas das famílias”, explica Medina.
[caption id="attachment_217493" align="aligncenter" width="700"] O médico José Antônio Medina atende na casa dos pacientes[/caption]
Estar na rua ou de casa em casa, em tempos de pandemia exige valentia e compromisso, por parte desses profissionais de saúde. Porém, não estão imunes aos temores e angústias que afetam a todos. “Para ser sincero me sinto apavorado, porque se fosse sozinho, não me importaria, mas como tenho família e que depende mim. Sinto terror ao pensar que posso ficar doente e contagiar minha família”, diz o médico.
Na Venezuela, a situação está estável. O número de contagiados não chega a 300. Isso é possível medidas como o atendimento médico a domicílio, que em muitos países é considerado um luxo que poucos podem pagar. Na Venezuela é gratuito. “Cada vez que entro em uma casa para atender não sei que tipo de situação vou encontrar. Mas, por outro lado, quando penso que se não fosse nosso trabalho a situação estaria controlada. Esse trabalho não o fazemos por dinheiro, mas porque gostamos. Subir morros para atender pacientes, muitas vezes não é fácil”, ressaltou o médico de família.
Ao chegar à casa paciente, uma adolescente que apresentava tonturas e desmaios, sua família se reúne na sala para receber o médico e as enfermeiras. Alguns minutos depois e já com a receita na mão, a consulta se convertido em um papo amistoso, ao sabor de um bom cafezinho, que nunca falta nessas horas.
Antes de sair o médico não deixou de medidas preventivas contra o coronavírus: ficar em casa e só sair em caso de necessidade, o uso da máscara é obrigatório e lavar as mãos várias vezes ao dia. “Nossa primeira tarefa é ganhar a confiança das pessoas e ensinar, porque a principal missão da medicina não é curar e sim evitar a doença. A medicina preventiva é inclusive mais barata”, destaca o doutor.
Como funciona o sistema de prevenção na Venezuela
As visitas médicas de casa em casa são a principal ferramenta de prevenção da Venezuela contra o coronavírus. A iniciativa foi desenvolvida pelo governo em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A triagem é feita através de uma plataforma tecnológica, que une uma base de dados do governo venezuelano e uma pesquisa aplicada através de um aplicativo no celular. Os cidadãos se registram e comunicam seus sintomas através de um questionário elaborado com a ajuda da OMS. Isso entra no registro do sistema público de saúde e essas pessoas recebem visita de uma equipe de médicos, enfermeiros e líder comunitário onde é feito o primeiro teste rápido. Dependendo a situação é encaminhado a hospital para fazer mais exames.
Esse modelo de triagem, não tem precedente no mundo. Cerca de 16 milhões de pessoas responderam a pesquisa sobre seu estado de saúde. Esse número representa mais de 50% da população venezuelana, já que o país tem 30 milhões de habitantes.
A outra forma de triagem é através dos líderes comunitários. As comunas venezuelanas, que são uma forma de organização popular, estão exercendo papel chave na prevenção. Essas organizações comunitárias monitoram cotidianamente a situação dos bairros e da saúde dos moradores. Quando tem um caso suspeito, o paciente entre em contato com a comuna local e os líderes comunitários acionam o sistema público de saúde para receber a visitar da equipe médica a domicílio.
[caption id="attachment_217494" align="aligncenter" width="700"] Organizações comunitárias monitoram cotidianamente a situação dos bairros e da saúde[/caption]
Além disso, existe um número de telefone 0800, que é uma linha direta com a equipe de triagem do Ministério da Saúde. Qualquer pessoa pode ligar e comunicar seu estado de saúde. Essa é uma opção mais utilizada pela classe média, já nesses bairros a organização comunitária é menor.
Além disso, o governo venezuelano assinou um convênio com a China e recebeu no início desse mês a visita de uma comitiva de médicos e cientistas chineses, que visitaram hospitais, postos de saúde e centros de diagnósticos para depois orientar o governo Maduro sobre as medidas que precisam ser ajustadas. O convênio também prevê uma ponte aérea entre a Venezuela e a China, com envio de insumos médicos da China pelo menos uma vez por semana.