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Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
“Vapor Barato” é o título do último livro do escritor, crítico e tradutor Wilson Alves-Bezerra. O autor de um engajamento social fremente e contagiante, encontrou o mote desse romance em uma carta do poeta português Herberto Helder para Maria Lucia Dal Farra. Helder escreveu em 31 de setembro de 1978 para a poeta brasileira:
“Com um psicanalista, passei eu tardes inteiras às voltas com a numerologia do ‘Apocalipse’, cujas revelações (chegamos a essa conclusão, aliás apoiados em certas correntes exegéticas), para terem um verdadeiro sentido de conjunto, devem ser procuradas num esquema numerológico. Incrível, mas o psicanalista suicidou-se passado um mês! Chamava-se Fernando Medina. Ele procurava conciliar uma quantidade de coisas inconciliáveis; suponho que morreu disso, de inconciliação. Como se morre de insolação. Há sóis demasiado fortes para as nossas cabeças”.
Wilson cria sua ficção situada no tempo em 2017, na terra da Esmerilhândia onde acontecem as sessões de psicanálise. Um ‘paciente’ sofre de uma raríssima doença, padece de um mal com sintomas devastadores, mal que é o próprio país onde nasceu e onde vive. Assistimos a um quadro de enfermidade eivado de desilusões políticas e sociais difíceis de engolir. Algo que positivamente afeta o âmago psíquico daquela sociedade como um vírus mutante e descontrolado. O paciente cogita um dilema tremendo. Ir-se embora ou permanecer. No primeiro capítulo, ou melhor, na transcrição da primeira sessão de psicanálise, lemos o início do diálogo entre o protagonista e o psicanalista:
“— Quero ir embora desta porra.
— ...
— Já deu para mim.
— Continue.
— Para mim este país acabou”. ...
A narrativa se desenvolve no ritmo das transcrições de 26 sessões de psicanálise. O paciente em verdade é a grande metáfora daqueles que não estão metidos em conchavos, em bandalheiras, em corrupções e que constituem o grosso da população. O paciente, portanto, é o povo que ainda ‘não viu país nenhum’. Como se estivéssemos no Brasil, reconhecemos ante o desfiar de acontecimentos escabrosos de amplo conhecimento público – portanto pautado na mais completa e estúpida realidade de cada dia -, entremeados de lúcidas análises sobre a história mais recente daquela pátria. A posição política de esquerda do paciente vai sendo transmitida ao tempo em que vamos tomando conhecimento de sua história pessoal. Homem de classe média, excelente nível intelectual e ascendência afro-indígena. Pronto, temos aí o barril de pólvora que é seu discurso explosivo mesclado de imprecações. Apesar de demonstrar transparência quanto às suas convicções políticas, o personagem caracteriza-se também e, sobretudo, por uma conduta ética e moral verdadeiramente digna:
“Eu nunca pensei que comigo, que com a história do meu país, poderia ser assim. Hoje me dou conta de que fui um burguês de ocasião, o penetra da festa. E que hoje não são os outros que me olham feio, sou eu mesmo, que tenho nojo da classe. A antiga narrativa triunfal de quem veio da pobreza vai se transformando na história amargurada dos derrotados, dos tortos, dos humilhados. É assim”.
Em dado momento o diálogo alcança de tal forma a realidade, dita muito democrática daquela nação que causa ao psicanalista uma fuga:
— Como são essas máscaras que caem?
— Elas atualizam, doutor, as posições: quem pode prender e quem só pode é ir preso. A gente vê nesta hora. E a gente entende com clareza, nessa hora, qual é o nosso lugar neste jogo.
— E qual é?
— Trabalhar feito escravo, tramando a queda dos chacais e sempre com medo da iminente prisão. Porque a gente tem um limite nesta gaiola. Na cordialidade, a gente nunca ultrapassa este limite. Até que...”
E o médico interrompe a sessão bruscamente simplesmente dizendo:
“— Até a próxima semana.”
Na terceira sessão o homem (o tal doente), que é também admirador das atitudes do guerrilheiro Marighella (soa como anacronismo exacerbado em 2017), começa a tomar consciência de que os tempos e os homens são outros:
“— Eu preciso gritar de algum modo, sabe? Não acho normal que os anos sessenta, de uma hora para outra, fiquem novamente atuais. É anacronismo demais. Retomarmos uma moda política. Atualmente, já não há nada a ser dito, porque no livro de areia virtual, todos já disseram tudo, ninguém leu e os babuínos já uivam em aprovação ou protesto, com igual veemência e convicção. Ninguém mais quer discernir”. Até porque: “A revolução, como ideia, não se sustenta num mundo sem utopia. Cinismo demais para qualquer revolução”.
Ninguém da Esmerilhândia escapa ás críticas.
“— Meus colegas, os poetas jovens, escrevem sobre os móveis novos da sala vazia, escrevem sobre o emprego adiado, sobre a prestação atrasada do financiamento, e sobre a gravidez ou o aborto da namorada por quem estão apaixonados há duas semanas ou há menos de um mês. Os poetas jovens pensam que a política se resolve em termos de uma nova eleição ou de uma conscientização poderosa obtida em passeata em frente ao Caetano de Campos. Meus colegas, os poetas cada vez menos jovens, acreditam na independência da literatura em relação ao mainstream do bar – absurdo, a cerveja em quantidade que já não é possível tomar”.
Outra questão que muito identifica aquela terra com o nosso querido Brasil, em número, gênero e grau:
“Mas, no cotidiano, a conversa, mais que nunca, virou miragem. Não há possibilidade de dialogar; pela gritaria, pela paranoia, pela surdez de quem antes conversava. As pessoas já não têm opiniões: há outra voz que grita pela boca delas. A voz que eu ouço na boca dos primos, dos amigos, é uma voz psicótica, urrante, das cabeças que assassinam”.
E tome-lhe desabafo:
“— Eu vim falando do meu desejo de fuga. Mas se vim foi para não fugir. Feito o suicida que liga para um amigo em vez de escrever o bilhete de despedida. E eu tenho sofrido com a política, com o noticiário da política, com as sessões do congresso. Uma caça às bruxas que não tinha visto antes, uma demonização feita por uma trupe de juízes, um golpe parlamentar. E a impossibilidade de reagir. A letargia do povo ou, o que é ainda pior, sua conivência ou apoio”.
Em um dos inúmeros sonhos que relata ao psicanalista, aflora profunda consciência do meio em que estamos:
“... Pensei no primarismo do desenho do nosso pensamento social, na inexistência do nosso debate público. Não temos consenso nem sobre os acontecimentos políticos recentes. Tudo é tão relativo que nem se sabe se o golpe que não se sabe se houve foi de fato um golpe ou não. E saímos como criancinhas perguntando aos velhos se o que a gente vive hoje tem ou não a ver com o que eles viveram nos anos sessenta”.
Esse personagem é um caso raro de loucura de lucidez estonteante, se é que tal coisa pode acontecer:
“— Se eu estou louco? Sim, mas não sou só eu. É uma loucura coletiva. Cada um dos meus conhecidos quase fica excitado se escuta alguém em público falando em golpe. Parece que somos crianças, ou que vivemos um delírio, que precisa ser confirmado por quem não seja da fraternidade. Se um cidadão gritar num evento público que a Terra do Esmeril vive sob um golpe parlamentar, para nós é quase a glória, porque justifica a nossa loucura, prestigia nossa lucidez, e aviva o nosso protesto”.
E claro, em um meio assim a violência social assume ares de epidemia incontrolável:
“Os porcos já podem fazer isso, por vontade própria. Aqueles dois que mataram o Índio, mataram automaticamente e de modo eficiente, do mesmo modo que muitos outros fariam. Ali eram os dois matando, mas poderiam ser outros a matar, poderíamos ser nós. Isso é o que realmente me assusta hoje. O porco pode ser qualquer um. Pois hoje já se morre e se mata por uma opinião, por uma posição política. Eu não preciso mesmo colocar a farda verde como empecilho, como inimigo nem mesmo como parceiro. Os naipes já estão expostos no veludo da mesa”.
Uma violência movida por puro e simples ódio ao próximo:
“— Isso. O ódio está saindo da internet. A exceção se espalha pela rua. Na surra mortal que deram no Índio. Na chacina do meu vizinho. Estas mortes não são sem sentido. Estes corpos que espancam e atiram têm a voz da rede social. Tem o esgar de ódio exercitado na mídia social. No vômito cotidiano dos opinadores. A seus próprios olhos, eles estão simplesmente eliminando o lixo. Agora que descobriram que não estão sozinhos. Eu tenho medo. Medo. Medo”.
No 13º capítulo lemos uma conversa inquietante:
“— Se eu fosse preso. Eu não seria preso nos anos sessenta ou setenta, seria preso agora, no século vinte e um, num país desgovernado. Se, e somente se, eu fosse preso, não estaria na mão dos milicos, que quereriam arrancar de mim confissões, nomes, endereços, dados. Eu estaria nas das facções que dominam os presídios. Eu, que passei a vida à margem dos partidos, dos movimentos sociais, dos coletivos, teria que tomar um partido na cadeia.
— O seu problema é tomar partido?
— Nesta noite, meu grande problema seria ter a minha cabeça arrancada por não fazer algo do tipo. Estar à margem de tudo foi o que sempre me permitiu manter a lucidez, a ironia e o senso crítico...
— E agora?
— Agora até minha fantasia vai ao chão. O desgoverno federal nos presídios da Esmerilhândia mostra, inclusive, que não há possibilidade de regime totalitário, porque não há Estado que possa dar conta disso. O Estado é incapaz de gerir uma jaula de homens trancafiados. E propõe como solução construir ainda mais jaulas”.
Mas de pensamento em pensamento, o protagonista confuso, pergunta ao doutor:
“— Uma metrópole é que é uma possessão demoníaca sobre a vida da terra dominada. Mas não vim aqui para discutir nem literatura nem história com você. Minha pergunta é outra, é bem outra: será que a tempestade total que se derrama agora sobre a Esmerilhândia será suficiente para dar cabo a tudo, de uma puta vez?
— É o que você desejaria?
— Não fui eu a botar abaixo o que ainda havia de democracia, coalizão e consenso no país em que vivemos”.
A isto segue-se mais adiante, num rasgo de lucidez, a conclusão:
“a vanguarda da esquerda tem perdido muito tempo discutindo os governos da última década e meia sem conseguir dar com nenhum programa factível, que não seja defender o subsetor da subcausa da minoria oprimida”.
Não temos dados concretos para afirmar se na Esmerilhândia aconteceu dessa forma. Mas no Brasil foi justamente o que parece ter acontecido. A dita esquerda, além de se meter na roubalheira generalizada, que impera desde o Brasil-colônia, apostou na tal “coalizão e consenso” que de fato nunca existiu num país onde os homens são movidos ex-clu-si-va-men-te pelos seus interesses pessoais. Perdeu os rumos, arremeteu o ‘vapor barato’ para as areias da praia. Talvez esses os “sóis demasiado fortes para as nossas cabeças” a que alude Herberto Helder na epígrafe da obra. Miguel conde que assina as orelhas da obra do senhor Wilson Alves-Bezerra conclui seu texto com: “Nem sempre é fácil dizer se aquilo que se lê diz respeito ao passado recente, àquilo que vai acontecendo naquele mesmo instante ou à imaginação de um futuro distópico. A indistinção entre fantasia e realidade deixa então de ser um problema interno à história que acompanhamos para tocar de modo perturbador nossa própria leitura”. É coisa para se refletir com vagar sem o açodamento vigoroso que nos assola, e mais ainda com profundidade.
Um dos momentos mais belos do texto é quando o psicanalista e o paciente parecem convergir num pensamento:
“— Não sei se volto. Tenho sentido fadiga desta análise. Desta fala que não conduz a nada. Enquanto eu sinto cheiro de merda, vejo os sonâmbulos na anosmia. [diminuição ou perda absoluta do olfato]. Não sou o profeta de nada, mas sinto que a gente já perdeu. Você e eu também, doutor, a gente perdeu. A gente tinha que fechar a psicanálise. Tinha que fechar a literatura. Tinha que fechar a cultura. Tinha que desistir e pronto.
— E como se fecha, eu lhe pergunto, como é que se desiste da única coisa que se pode fazer, insistir na linguagem?”
Que destino tomará este Policarpo Quaresma do século XXI? Fará como nos diz a canção “Vapor Barato” de Jards Macalé e Waly Salomão - referência do título da obra?
“Sim! Eu estou tão cansado / Mas não pra dizer / Que eu não acredito Mais em você / Com minhas calças vermelhas / Meu casaco de general cheio de anéis... / Eu vou descendo por todas as ruas / E vou tomar aquele velho navio / E vou tomar aquele velho navio / Aquele velho navio...
Sim! Eu estou tão cansado / Mas não pra dizer / Que eu estou indo embora / Talvez eu volte / Um dia eu volto Quem sabe! / Mas eu preciso / Eu preciso esquecê-la... / A minha grande / A minha pequena / A minha imensa obsessão / A minha grande obsessão... A Minha Honey Baby!”.
Afinal a pátria? Uma nostalgia em outra língua: “Honey Baby...” [um doce de bebê].
EM TEMPO: O texto do romance está datado de fevereiro de 2017 e esta resenha foi escrita em 18/01/2019, justamente no dia em que falece Marcelo Yuka, um dos fundadores da banda Rappa. Em 2000, Yuka ficou paraplégico ao tentar impedir um assalto. Não na Esmerilhândia, no Brasil mesmo.
Livro: “Vapor barato”, Romance de Wilson Alves-Bezerra. Editora Iluminuras, São Paulo – SP, 2018, 140p.
(*) Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 27 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.
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