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Eu já vi o filme tantas vezes que nem tem mais graça. A política estadunidense está corrompida até a medula por dinheiro, lobistas e megacorporações, a tal ponto que até o mais inovador movimento das últimas décadas não precisou de mais que um ano para ser triturado pela máquina. Obama assiste, impassível, enquanto morre à míngua no Congresso sua principal plataforma doméstica, a reforma do escabroso sistema de saúde do país. Tudo isso, caro leitor, com a Casa Branca nas mãos, e maiorias de 60 a 40 no Senado e de 258 a 177 na Câmara.
No momento em que esta coluna chegar aos leitores da Fórum, a reforma da saúde provavelmente já estará morta, de “morte morrida” ou de “morte matada”, como dizemos em Minas. Ainda não se sabe se será uma derrota política ou moral. Mas o fato é que a legislação que sobrou no Senado e que continua em tramitação no momento em que escrevo, no dia 16 de dezembro, já é um patético farrapo que não vale a pena apoiar, a não ser para preservar uma irrelevante vitória moral.
Por onde começar a relatar a longa agonia? Comecemos pela opção que Obama sequer colocou na mesa de negociação: a boa e clássica cobertura pública universal, conhecida nos EUA como single-payer e adotada por praticamente todos os países desenvolvidos. Pesquisa atrás de pesquisa demonstra que se trata de uma fórmula apoiada pela maioria da população. Em fevereiro, 60% dos americanos consultados pela CBS e pelo New York Times se mostravam a favor da cobertura pública universal, contra 32% que achavam que o sistema de saúde deveria continuar em mãos privadas. No entanto, o lobby da indústria da saúde já conseguiu tal controle sobre ambos os partidos que a cobertura pública universal aparece, na mídia e nos debates políticos, como se fosse uma opção ultraesquerdista. Este é um dos efeitos bizarros da política americana: as posições da esquerda do Partido Democrata – cobertura universal na saúde, fim das duas guerras – estão bem próximas das que defende a maioria dos americanos médios, mas no parlamento elas aparecem como se fossem o supra-sumo do extremismo. Invariavelmente, posições de ultradireita aparecem como se fossem centristas.
A maioria dos progressistas que apoiaram Obama não tinha ilusões de que se aprovaria um sistema de saúde público e universal em seu primeiro mandato. Mas, para um presidente negociador, foi um tremendo erro retirar a possibilidade da mesa antes que se iniciasse o processo. O lobby das companhias de seguro ganhou força para impor cada vez mais concessões, até chegarmos ao ponto em que estamos, com uma lei em tramitação que não muda praticamente nada.
As energias progressistas passaram a se concentrar na chamada opção pública, um sistema não-universal que criaria seguros estatais para concorrer com as seguradoras. A aposta era que, na medida em que fosse ficando claro que o sistema público não criaria o caos que a direita apregoava, o apoio a ele crescesse ao ponto de acumular forças para uma reforma mais profunda. A nova legislação aprovada na Câmara dos Deputados com o apoio de um único republicano (o representante de New Orleans) e várias defecções democratas continha a opção pública, com algumas restrições.
A lei não era nenhuma maravilha, mas, além da opção pública, ela continha regulações reais à brutalidade das companhias seguradoras, que hoje manejam o sistema como querem. Desde 1970, o número de médicos aumentou 200%, enquanto o número de burocratas nos hospitais aumentou 3000%, como consequência da necessidade dos hospitais de lutar para que as seguradoras paguem as contas que deveriam pagar. Equipadas com enormes aparatos jurídicos, as seguradoras escapam facilmente das suas obrigações. De cada dólar gasto na saúde estadunidense, 31 centavos vão para custos administrativos, em vez de cuidados médicos propriamente ditos.
A lei chegou ao Senado para negociação e emendas, e sua aprovação poderia seguir dois caminhos diferentes: um mais conciliatório, por maioria de 60% da casa, que é a necessária para evitar o procedimento do filibuster [obstrução], que permite a uma minoria de mais de 40% discursar indefinidamente para impedir a votação de uma lei. Estava claro, desde o começo, que os republicanos o usariam. A saída era uma só: passar a lei por meio da estratégia conhecida como reconciliation, que só exige maioria simples. Foi a forma usada por Bush, por exemplo, para aprovar seus cortes de impostos para os ricos com míseros 51 votos no Senado. Em busca da conciliação a qualquer custo, Obama e a liderança democrata se lançaram a uma sequência de concessões para conseguir votos republicanos que não eram necessários nem prováveis, além de tentar convencer os democratas mais alinhados com a indústria dos seguros. Um a um, os avanços embutidos na lei aprovada na Câmara foram sendo derrubados. Havia 51 senadores dispostos a votar. Na busca dos 60, perdeu-se quase tudo o que havia na lei.
A opção pública foi retirada da mesa. Também foi retirada da legislação a proposta do Medicare buy-in, que expandiria o sistema público do Medicare (hoje aberto só para americanos de mais de 65 anos de idade) para incluir uma parte dos 4 milhões de cidadãos de 54 a 65 anos que não têm seguro (e são sistematicamente rejeitados pelas seguradoras, claro, que preferem jovens saudáveis). Sumiu a possibilidade de compras de medicamentos de outros países, que ofereceria competição para a ultramonopolista indústria farmacêutica estadunidense. Sobrou pouca coisa, e mesmo o farrapo que resta ainda é objeto de negociação com democratas como Joe Lieberman e Ben Nelson, que receberam milhões em contribuições de campanha das seguradoras. A cada rodada, eles aumentam as exigências. Três ou quatro senadores mantêm reféns um país com 45 milhões de seres humanos sem seguro médico, e a uma simples fratura óssea da falência completa.
A vitória de 2008 mostrou que a energia da base democrata é o ingrediente central em qualquer vitória do partido. Essa base, bem à esquerda do establishment do partido, sente-se traída e boa parte dela ficará em casa nas eleições de 2010. Prepare-se para uma vitória avassaladora na direita nas parlamentares deste ano que se inicia.
Este artigo é uma parte integrante da Edição 82 da Revista Fórum
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