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Já não há sentido em se criticar a inominável agressão de Caetano Veloso ao presidente Lula, chamando-o de “analfabeto, cafona e grosseiro” numa entrevista ao Estadão. As sátiras na internet já o fizeram. A melhor, de Rafael Galvão (disponível em http://rafael.galvao.org), é imperdível. Quando a própria mãe, Dona Canô, uma instituição baiana de 102 anos, vem a público pedir desculpas e recebe do presidente um telefonema e um afago carinhoso, já não há muito sobre o que tripudiar. A sequência dos fatos não deixa dúvidas sobre quem é o grosseiro na história. Desta vez, não vale pôr a culpa na imprensa, como Caetano fez depois. Referir-se a Lula com aqueles adjetivos numa entrevista ao Estadão e achar que o jornal não os exploraria em manchete é de uma ingenuidade da qual não podemos acreditar que Caetano seja capaz.
Na mesma semana em que concedeu sua infame entrevista ao Estadão, Caetano foi chamado pela Folha para escrever um obituário para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. A coincidência me pareceu curiosa porque, na entrevista sobre Lula, Caetano demonstra não ter entendido uma palavra de Lévi-Strauss, se é que o leu.
Comecemos o papo da forma mais clara possível: do ponto de vista da antropologia – e da linguística que a influenciou –, dizer que um falante nativo “não fala bem” ou “não sabe falar” não tem o menor sentido. A chamada “fala correta”, que a República Morumbi-Leblon adora evocar para atacar o presidente Lula, é uma sistematização de regras que se aplicam à língua escrita e, dentro dela, em especial, a uma variante que os profissionais de Letras chamamos de norma padrão. No Brasil, por motivos que têm muito a ver com a política, a norma padrão é defendida com sanha histérica para uma esfera onde ela não se aplica, a língua falada. Não importa qual o grau de instrução, é raríssimo que um brasileiro, comunicando-se em seu cotidiano, pronuncie todas as desinências do plural. Em determinadas situações de fala, aquele “s” cai mesmo, tanto para “doutores” como para “analfabetos”. Quando? Ora, ele tenderá a cair nas situações em que a pluralidade já estiver marcada de outra forma. Assim, em Minas Gerais, dificilmente alguém pronunciará o S de “carros” na frase “chegaram dois carros”. O fenômeno é chamado de apócope. É mais fácil tropeçar nele estudando a história das línguas do que encontrar um pão de queijo em Belo Horizonte.
No obituário a Lévi-Strauss, Caetano afirma que o antropólogo francês “esquentou seu coração”. É uma pena que os efeitos da leitura de Lévi-Strauss tenham parado ali, em vez de chegar à cabeça. Senão, vejamos o que diz Lévi-Strauss sobre os que desqualificam os outros como “analfabetos” ou “selvagens”. Num livrinho intitulado Raça e história, ele afirma (a tradução é minha): “A atitude mais antiga consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais mais distantes daquelas com as quais nos identificamos. 'Hábitos de selvagens', sendo uma reação grosseira, traduzem essa repulsa a maneiras de viver, crer ou pensar que nos são estrangeiras”. Mas Lévi-Strauss não se detém na afirmação da pluralidade das culturas humanas. Ele nota um paradoxo interessante: “Essa atitude de pensamento, em nome da qual se remetem 'os selvagens' para fora da humanidade, é justamente a atitude mais marcante e distintiva dos próprios selvagens”. Ou seja, a desqualificação de toda a diferença como algo “primitivo” é a característica mais marcante do pensamento que ainda se encontra em estágio primitivo. Por isso você não vê um único intelectual brasileiro de verdade juntando-se a essa agressão grosseira contra a “ignorância” de Lula. Por isso você não vê um único linguista dizendo que Lula “não sabe falar”.
Em seu finado blog, Caetano, um fã declarado dos Pasquales que infestam a mídia com declarações sobre o que é “correto” e “errado” na língua, escreveu: “Sou apaixonado pela língua portuguesa e por gramática (ao contrário de linguistas e demagogos em geral, acho o sucesso público de figuras como o Professor Pasquale um bom sintoma)”. Ao ser pego na ignorância por um leitor (afinal, que linguistas eram aqueles?), Caetano respondeu com outro texto, evocando um suposto argumento dos linguistas, de que “qualquer transmissão de conhecimento relativo à tecnologia da língua é opressão”. De novo Caetano foi pego na ignorância pelo leitor, que demonstrou por A + B que não há um único linguista no Brasil que diga que ensinar a norma padrão é, por si só, “opressão”. O que linguistas como Marcos Bagno têm afirmado é que a gramatiquice produz “um estereótipo tosco, rígido, estreito e, finalmente, mentiroso de 'língua certa' que não corresponde aos usos reais e efetivos nem sequer das nossas elites urbanas mais letradas”. Isso é bem diferente de afirmar que não há que se ensinar a norma padrão nas escolas ou que a aquisição dela não represente uma conquista real para as classes populares.
Caetano repetiu várias vezes a cantilena de que a linguística está tomada por um “esquerdismo demagógico”. Graças às maravilhas da internet, suficientes leitores puderam convencê-lo, com a delicadeza necessária, de que ele não tinha a menor ideia do que dizia. Encurralado, Caetano cedeu e foi ler Preconceito linguístico, obra em que Marcos Bagno analisa o fenômeno. O resultado? Cito: “Eu teria preferido me manter como o espírito de porco que, mesmo sem ser estudioso formal da matéria, toma a defesa dos comandos paragramaticais e escarnece dos esquerdismos triunfantes. Mas a leitura de Preconceito linguístico mudou meu mood. Agora prefiro festejar o sucesso desse grupo”. Trocando em miúdos, Caetano leu Bagno e reconheceu que suas declarações sobre a “linguística esquerdista e demagógica” eram asneiras sem tamanho. Esse reconhecimento aconteceu em seu blog, em fevereiro de 2009.
Em novembro de 2009, Caetano disse ao Estadão que Lula não sabe falar. Em nove meses, tinha esquecido a lição do livro que leu. A elegância e a generosidade não são as únicas diferenças entre Lula e Caetano. A outra é a prodigiosa memória de Lula.
Este artigo é parte integrante da Edição 81 da Revista Fórum
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