Homens héteros também amam outros homens

No lugar das relações libertas e afetivas, a modernidade condenou a vida masculina a ser uma eterna simulação de virilidade e reprodução

Foto: divulgação
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A relação de amizade entre Arthur e o cantor Projota no BBB21 levantou uma série de discussões. Até mesmo a edição do programa nesta terça-feira (16), quando o rapper seria eliminado do programa com 90% dos votos, focou nisso. O que poderia servir como ponto de partida para uma discussão densa sobre a relação entre os homens na modernidade, obviamente resvalou para uma possível homossexualidade ou bissexualidade do Mister Espírito Santo 2016.

Não há problema que a discussão caminhe pela orientação sexual de Arthur, mas esse tipo de debate sempre se escora na vida sexual e privada das pessoas. E isso é um tipo de controle, um artifício mais sofisticado do que as técnicas repressivas de sexualidade. No mesmo momento em que estamos levantando uma suspeita de sexualidade não-hétera, estamos ativando uma série de conjuntos que, historicamente apontam as relações homossexuais como algo da esfera do patológico, daquilo que deve ser curado e eliminado do social.

Outra questão que pouco se traz a partir de episódios como esse dos brothers do reality show, é questionar se a relação entre homens, independente da orientação sexual, sempre foi assim, e se não foi, quando isso foi alterado e por quê. Bom, se aceitarmos as teses apresentadas por Michel Foucault, principalmente aquelas que sucedem o estudo sobre a loucura, a modernidade destruiu as relações entre os homens, principalmente no âmbito da troca de prazeres e de saberes.

Se no tempo histórico que antecede a modernidade os homens se deitavam e tinham a amizade como um ponto ético, com a ascensão do projeto político em torno do cristianismo, as vidas não reprodutivas, e principalmente entre os corpos masculinos, passaram a ser reguladas por uma rígida moral e isso na vida pública e privada.

Juntamente com o cristianismo temos a política colonial iniciada no território que hoje chamamos de Europa. Um bom exemplo para tal momento histórico é a série Vinkings: nela acompanhamos a ascensão da imposição do modo de vida cristão que passou a eliminar tudo aquilo que foi classificado como pagão. A mesma série, ainda que não se aprofunde nisso, também pincela as profundas relações entre os homens, que provavelmente seriam classificados como homossexuais. Mas à época foram tidos como selvagens e pagão, e por isso mortos.

O projeto cristão/colonial foi aplicado na América, em algumas partes da África e dentro da Europa. Antes de se tornar um território unificado, pelo menos geopoliticamente, o Velho Continente era povoado por uma miríade de grupos que viviam distintas regras sociais, não havia uma coesão social - e isso era bom -, todavia esses grupos viviam harmoniosamente entre si e as relações afetivas/sexuais entre os corpos iguais não era um problema para a grande maioria destes povos.

Corpos iguais que se amavam também não era uma questão para a grande maioria dos povos andinos e amazônicos. Será com a colonização que isso será transformado em algo diabólico e selvagem. Os povos originários da América, além de serem dizimados, também serão contaminados com uma filosofia de vida que não encontrava qualquer sentido. O cristianismo se tornou o que conhecemos depois de muito sangue e ódio à diferença.

Especificamente sobre as relações masculinas, os trabalhos de Maria Lugones e Anne McClintock sobre a vida masculina fora do padrão colonial são esclarecedores. Ao tomar contato com os povos amazônicos e andinos os homens foram tidos como lânguidos e desalmados, pouco masculinos. E esta consideração era construída tendo como base o homem branco europeu, conquistador, violento e reprodutor.

Mas podemos ir ainda mais longe, por exemplo, as relações entre os homens na Grécia Antiga e em Roma. Estes homens gregos e romanos, ainda que possuíssem companheiras do sexo oposto, também se deitavam e trocavam saberes. Há toda uma literutura sore os banquetes onde esses homens se encontravam e por noites a fio, regados de vinho e muita comida, faziam os seus corpos se encontrarem. Mas, não se trata de homossexualidade no sentido que esta palavra vai ganhar na modernidade, principalmente a partir do século XVII com o surgimento de certa teoria jurídica que visa construir uma topografia das anormalidades.

Este modo de vida entre homens gregos e romanos, mas também andinos e amazônicos, se dava a partir de tecnologias de Si muito distintas e que foram destruídas com as teses modernas do cristianismo, da família monogâmica, da criminalidade e, principalmente, da medicina psiquiátrica. No lugar do Ato de Verdade e da Coragem, a vida afetiva/sexual dos corpos masculinos foi encarcerada no mundo do controle e da normalidade.

O dispositivo da homossexualidade, assim como do crime, foi construído para inserir biografias fictícias em uma espécie de pré-vida. Quando tais dispositivos são ativados, há uma história que já aguarda por esses corpos, mesmo que estes nem pensem em vive-la. Os significantes da normalidade são trazidos à tona e basta estar próximos para ser enquadrado nos moldes da anormalidade.

É dentro deste conjunto de dispositivos normativos que relações como a de Arthur e Projota estão inseridas. Pode até ser que exista uma atração física entre eles, mas, por conta da biografia não vivida, mas que já são tidas como verdade, estes homens preferem renunciar à coragem e não viver o ato da verdade. E, sem o outro, não existe a menor possibilidade que essa verdade seja dita e muito menos vivida.

Referência:
FOUCAULT, Michel. A coragem da Verdade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
GINZBURG, Carlo. História noturna: Decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. São Paulo: Editora Unicamp, 2010.

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