Ajuda humanitária: a hipocrisia do imperialismo

Raphael Silva Fagundes: “O desejo de se romper com o imperialismo, objetivo da política de Maduro, gera uma intervenção extremamente agressiva do capital internacional”

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[caption id="attachment_166041" align="alignnone" width="700"] Foto: Reprodução/ETV/YouTube[/caption] “...Não haverá baixas, nem bombardeios, nem batalhas. Haverá apenas uma faca que não corta, um fogão que não cozinha e uma casa que congela no inverno. Será irritante, e as pessoas vão começar a resmungar. Sutt disse devagar, ponderando: - É nisso que você está depositando suas esperanças, homem? O que você está esperando que aconteça? Uma rebelião de donas de casa? Um levante súbito de açougueiros e donos de mercados com suas facas e cutelos gritando ‘Devolvam nossas Lavadoras Nucleares Automáticas Super-Kleeno!’ - Não, senhor – Mallow disse impaciente. – Não espero isso. O que eu espero é um fundo geral de irritação e insatisfação que será engrossado por figuras mais importantes, posteriormente. - E que figuras mais importantes são essas? - Os fabricantes, os donos de fábricas, os industriais de Korell...” Embora seja uma mera passagem da obra “Fundação”, de Isaac Asimov, é extremamente curioso como tudo parece com o que está acontecendo na Venezuela dos últimos meses. O governo de Trump vem assinando ordens para sancionar os que executarem operações com o petro e outras criptomoedas venezuelanas. E o povo está sofrendo bastante devido a essas investidas imperialistas que visam corroer a soberania do país sul-americano. É um absurdo os países oferecerem ajuda humanitária depois de terem causado tanta desgraça no país. Maduro está consciente quando disse que a oposição precisa de “ajuda mental”. E tem razão ao afirmar: “Não se pode fazer à Venezuela uma promessa falsa de uma suposta ajuda humanitária, é preciso convocar a Venezuela ao trabalho, à produção, ao crescimento da nossa economia, não somos mendigos de ninguém”. Quando os EUA aumentam os impostos das importações chinesas, a mídia internacional faz um reboliço, mas quando se trata da Venezuela, surge um pingado de notícias aqui e outro ali, sempre com uma pitada de distorção para, por fim, formatar a opinião pública. A conclusão é unânime: Maduro tem que cair! (desculpe o trocadilho que isso possa gerar na língua portuguesa). A revolta da burguesia local é estridente, principalmente a ligada ao capital internacional, que se enriqueceu com o petróleo venezuelano. É a “irritação e insatisfação” dessas “figuras importantes” que constroem a imagem externa do país e, por conseguinte, a interpretação sobre o cenário político conturbado. Contudo, se não fosse a politização das massas, promovida pelo governo de Chávez, poderíamos ver a classe trabalhadora em peso nas ruas exigindo a queda do governo de Maduro, e não é o que está acontecendo. O povo venezuelano resiste... O desejo de se romper com o imperialismo, objetivo da política de Maduro, gera uma intervenção extremamente agressiva do capital internacional, que não se importa em provocar fome e matar pessoas, além de dissimular os acontecimentos. Episódios de um filme antigo... E agora vem com essa de ajuda humanitária. É muita hipocrisia. E antes de dizer que se está testando a fidelidade do exército em relação ao povo venezuelano, essa oposição deveria ter pensado antes de provocar a crise. Eles, sim, são os verdadeiros traidores do povo. Como destaca John Bellamy Foster, “os ideólogos do capitalismo global, dedicados em demonstrar o caráter benigno do imperialismo norte-americano, insistem que a globalização e a liberalização conduzirão à igualdade econômica entre nações, grandes e pequenas” (1). Ora, isso nunca se concretizará. É uma ideologia esdrúxula que qualquer pesquisa histórica comprova a incompatibilidade da teoria com a prática. Inclusive, a China, que vem se tornando cada vez mais imperialista, vai forçando os países sob seu domínio a ficarem cada vez mais inferiores a ela, além de promover uma desigualdade cada vez maior em seu próprio território. A Venezuela busca uma perspectiva mais local. Um grande incentivo à agricultura familiar e a nacionalização de empresas confirmam essa posição. Não que o país latino-americano pretenda se isolar do mundo, mas pensar o global a partir do local e não o contrário, como fomos ensinados. É o que o antropólogo Arturo Escobar, partindo das observações de Arif Dirlik, chama de “glocalidade”, isto é, alternativas ao capital, apreendendo a globalização do local através da localização do global (2). Colonialidad del poder Podemos somar a isto o conceito de “colonialidad del poder” de Aníbal Quijano (3), que compreende a tentativa forçosa das elites independentes latino-americanas em introduzir um modelo de Estado-nação moderno europeu nestas terras. Desde 1492, quando a Europa impõe o seu padrão de desenvolvimento sobre os diversos povos do planeta, a América Latina é forçada a deixar suas preocupações internas para fazer parte do mundo europeu e se preocupar com os problemas impostos por ele. A prata, o ouro e as diversas riquezas naturais serviram de combustível para a consolidação do capitalismo. Deste modo, os colonizadores impuseram suas noções temporais, religiosas etc., estabelecendo novos objetivos a serem atingidos que, por sua vez, não faziam parte da dinâmica interna das gentes que habitavam este lado do Atlântico. Foi obliterando sua realidade que a América Latina passa a fazer parte do sistema-mundo administrado pela Europa. Segundo Quijano, após as independências, as antigas elites do poder agrário colonial se identificaram com os interesses da burguesia estrangeira e se empenharam, de forma bastante expressiva, em colocar seus respectivos Estados no rol das nações mais desenvolvidas do mundo, vilipendiando novamente suas contradições internas. Os donos de escravos e de latifúndios passam a ser os novos colonizadores. Na verdade, o que houve foi um processo de independência sem a descolonização da sociedade em que as antigas elites coloniais tomaram o controle sem alterar as relações de poder existentes. Todo o projeto e movimento contrário a esse processo são respondidos violentamente, por meio de uma guerra econômica e ideológica que não se importa com as pessoas. Como disse o próprio Maduro: “Somos perseguidos por tentar criar uma nova fonte de desenvolvimento para nosso povo”. O bloqueio que os EUA fazem ao governo venezuelano, como uma espécie de retaliação por não seguir a política imperialista que enriquece as elites locais aliadas ao capital internacional, é a face verdadeira do capitalismo. No entanto, a mídia e as instituições ligadas à política tradicional, tentam sempre colocar um véu sobre o rosto monstruoso de uma entidade que devora, sem pestanejar, tudo que ouse se opor ou se distanciar de sua vista. Se continuar desse jeito, o modelo econômico e político já está pronto para quando os outros mundos da Galáxia forem desbravados, exatamente como a estória descrita no primeiro volume do clássico de Asimov. (1) FOSTER, John B. “O redescobrimento do imperialismo”. In: BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (orgs.). “A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas”. Trad. Simone R. da Silva e Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007, P. 444. (2) ESCOBAR, Arturo. “El lugar de la naturaleza y la naturaleza del lugar”. LANGER, Edgardo. “La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales”. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLASCO, 2000. p. 80. (3) QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. In: LANDER, Edgardo. “La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales”. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLASCO, 2000.

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