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Por Viviane Pistache*
A conciliação entre negro-tema e negro-vida num cinema de assunto e autoria negra concomitante foi inaugurada por Zózimo Bulbul com o emblemático curta Alma no Olho (1973), realizado com as sobras do longa Compasso de Espera (1973), dirigido por Antunes Filho e protagonizado por Zózimo. Cinema sempre foi caro e o nosso começou na espreita, nas brechas, nos retalhos que caíram da moviola. Assim o cinema negro nasce com gosto de reinvenção e reaproveitamento, como feijoada ou pastel de angu. Desde Zózimo o cinema negro conhece as dificuldades e desafios para parir longas metragens de ficção. Depois de Zózimo Bulbul veio o mineiro Joel Zito Araújo, Jeferson De, a mineira Glenda Nicácio, e os mineiros André Novais, Gabriel Martins. Sim, se conta nos dedos o número de diretores/as negros/as que já estrearam longas de ficção de assunto negro.
Mais do que nunca precisamos falar do manifesto Gênese do Cinema Negro Brasileiro ou Dogma Feijoada puxado por Jeferson De em 2000, que dentre as sete prerrogativas diz sobre a urgência de se fazer filmes dirigidos e protagonizados por gente preta e a abolição de histórias e personagens cunhadas em estereótipos. Mas para superar a tese da Negação do Brasil, sagazmente diagnosticada por Joel Zito Araújo em 2000, realizadores/as negros/as precisam ter acesso a financiamento.
Ainda que percentualmente ínfimas, essas narrativas têm incomodado e interpelado o status quo, conforme se viu no Festival de Brasília em 2017 diante da polêmica ensejada pelo filme Vazante da diretora Daniele Thomas, que amplificou as poucas vozes negras no evento. Conforme questionou a cineasta negra Viviane Ferreira na ocasião: Por que raios a presença de pessoas negras na 50ª edição do Festival de Brasília tem causado mais incomodo do que nossa ausência histórica do circuito de distribuição de recursos, prestígios e status do audiovisual?
Um saldo positivo do festival de Brasília foi a denúncia das ausências, das invisibilidades e da celebração dos/as pouquíssimos/as jovens negro/as que estouraram a bolha, como a mineira Glenda Nicácio que compartilha a direção dos seus longas com Ary Rosa. Ao fazer cinema no interior da Bahia, inventando assim um cinema “baianeiro”, Glenda traz o debate não apenas da direção negra feminista, como atualiza a discussão das desigualdades regionais. Cinema tem sotaque. E esse óbvio ululante vem à tona com o cinema negro mineiro.
Filhas do Vento (2005), primeiro longa de ficção dirigido por Joel Zito, mineiro de Nanuque, inaugura o cinema de assunto e autoria negra com sotaque mineiro. A trama se passa em Lavras Novas, cidade vizinha a Ouro Preto. É uma história de fuga e reconciliação com as raízes mineiras, de tentativa cura das dores da infância assombrada pelo passado escravocrata e patriarcal.
André Novais e Gabriel Martins têm elevado o cinema negro mineiro à sua potência máxima. Gabriel Martins faz em Rapsódia para um homem negro (2015) um encontro melódico entre a música negra mineira e o cinema negro mineiro. Em Belo Horizonte existe um festival de música chamado IMUNE, Instante da Música Mineira Negra. O cinema mineiro também vive esse instante IMUNE de um cinema que começa com M de movie e movimento que leva Minas para o mundo. Os filmes de André Novais já foram selecionados em mais de 200 festivais no Brasil e no mundo como o Festival de Locarno (com Temporada), a Quinzena dos realizadores em Cannes (com Pouco mais de um mês em 2013 e Quintal em 2015), Festival de Rotterdam, FID Marseille, Indie Lisboa, BAFICI, Festival de Cartagena, Los Angeles Brazillian Film Festival, Festival de Cinema de Brasília e Mostra de Cinema de Tiradentes, ganhando mais de 60 prêmios, como a Menção Especial do Júri na Quinzena dos Realizadores em Cannes (Para Pouco mais de um mês, Prêmio Especial do Júri no BAFICI e os prêmios de Melhor Filme pelo Júri Oficial na XI Semana dos Realizadores do Rio de Janeiro, no XI Panorama Coisa de Cinema de Salvador e no III Olhar de Cinema de Curitiba (Para Ela volta na quinta) e os prêmios de Melhor Longa Metragem, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (Para Temporada). Gabriel Martins está na edição de 2019 do Festival de Roterdã na Holanda para a estréia de seu longa No Coração do Mundo co-dirigido com Maurílio Martins.
[caption id="attachment_164991" align="alignleft" width="226"] Reprodução[/caption]
Os longas Ilha e Temporada e o média-metragem Vaga Carne são as três produções com direção negra mais celebradas nos dois primeiros dias da 22a. Mostra de Cinema de Tiradentes, a primeira grande janela anual do cinema brasileiro. Cada um a seu modo, tematiza a necropolítica e a necropoética. Necropolítica é um conceito cunhado filósofo e teórico político camaronês Achile Mbembe para as políticas e instituições que ditam quem deve viver ou morrer. O poder de determinar a vida e a morte provendo o status político de alguns sujeitos e negando o status político de outros. Diz sobre a intencionalidade e racionalidade meticulosa no controle e extermínio de determinados corpos. Tal conceito tem sido fundamental no debate sobre todas formas de genocídio a que a população negra tem sido assujeitada. E isso inclui a negação da negritude nas telas do cinema.
Daí a possibilidade de pensar em necropoética. O neologismo foi criado por Juliano Gomes no debate sobre o filme Vaga Carne na Mostra de Tiradentes. Juliano dizia sobre a relação entre samba, poesia e morte como formas de resistência; citando Nelson Cavaquinho e sua intimidade com a morte para trazer lirismo à dura sobrevivência. E o média-metragem Vaga Carne traz a voz (des)encarnada, a voz entidade, corpo etéreo de um lugar no limbo, num estado intermediário entre a vida e a morte.
Ilha por sua vez, tem um quê de é doce morrer no mar depois do torpor que toma corpo de um corpo negro e masculino cuja vida foi nadar contra corrente e contra a morte até abraçá-la. Ilha tem o azul de Moonlight. E assim como a lua abraça a estrela, também derrama sua luz na pele dos meninos negros para que o azul de suas almas resplandeça. Ilha traz o argumento latente de que todo menino negro precisa do mar para que sua alma possa brilhar incontestavelmente azul. Assim, todo menino-homem negro merece um oceano de oportunidades para estar no meio do mundo e poder navegar pelo menos com confiança. Ilha traz diversas faces do homem negro que usa máscara musculosa mas que precisa apenas de um bom prato de afeto e cidadania. Nesse poético retrato sobre masculinidades negras, Ilha nos oferece a chance de sairmos do clichê homem preto, heteronormativo falocêntrico, criticando assim a hiperssexualidade negra. Merecidamente Ilha levou os prêmios de melhor roteiro e melhor ator para Aldri Anunciação no Festival de Brasília em 2018. Assim, Glenda Nicácio milita por um cinema regional que celebra a negritude a partir da fraternidade dos sotaques mineiro e baiano com os premiadíssimos Café com Canela (2017) e Ilha (2018).
[caption id="attachment_164992" align="alignleft" width="215"] Reprodução[/caption]
Temporada traz uma potente crônica da vida preta na periferia que se vê cercada da ameaça da morte em sua face moderna chamada de epidemias como dengue, zika, chikungunya, dentre outras. O diretor André Novais disse no debate sobre o filme na 22a. Mostra de Tiradentes que já foi agente de saúde e o filme é uma releitura das precariedades do mundo do trabalho a partir de sua própria experiência. O longa é protagonizado por Juliana magistralmente encarnada em Grace Passô que levou o prêmio de melhor atriz no último festival de Brasília e em Locarno na Itália. É um sensível olhar sobre a solidão da mulher negra que busca caminhos para a liberdade e a solitude. Um melodrama que sabe ri do exagero e do inesperado, que traz o onírico e a ficção científica para fazer realismo fantástico, que pedi licença respeitosamente para entrar nas casas da periferia para falar de vida e de morte.
O cinema mineiro está tecendo a poética da morte para tensionar privilégios e debater acessos cada vez mais ameaçados. Ao passo que reverencia a ancestralidade mineira, satiriza a (im)possível aposta negra na ascensão liberal no audio-visual. Neste sentido, vale arriscar lembrar o impacto do discurso da apresentadora Oprah Winfrey na cerimônia de entrega do Globo de Ouro, quando escancarou as lacunas e potências num discurso sobre representatividade negra para além da indústria do entretenimento. Sua fala soou tão necessária que rapidamente Oprah foi apontada como possível panaceia para sanar as enfermidades da combalida democracia norte-americana. Assim, uma mulher negra, que fez carreira na indústria do entretenimento, ao passo que denuncia as desigualdades de raça e gênero na representatividade no audiovisual, ocupou também um complexo papel de bússola para uma nação sem rumo. Apesar do desconforto de saber que o traje do sistema é uma camisa de força com estampa neoliberal; dentro das margens opressoras, talvez seja possível considerar que Oprah e um conjunto de artistas e diretoras/es negras/os estejam ajudando a esgarçar alguns limites, colorindo de gênero e raça correntes ideológicas do entretenimento que são hegemonicamente brancas e masculinas.
Se por um lado é sintomático destes tempos a noção de que devemos nos adaptar ao mundo em mudança, e não mudar o mundo em que vivemos; por outro, os poucos nomes negros e mineiros da atual cena do longa-metragem brasileiro nos convocam a atentarmos para os papéis das estruturas políticas, econômicas e sociais para o enfrentamento da lógica da necropolítica. Ainda que tenhamos orgulho desse cinema negro mineiro que tem asa na palavra; buscamos a terceira margem do rio.
O cinema negro mineiro está fazendo história. Apesar da potência transformadora das narrativas negras no audiovisual, o tripé racismo, machismo e capitalismo continua sendo um grande obstáculo para a realização a efetiva escrita de outra história. De fato, ainda que a indústria cultural exproprie o fazer artístico no sentido de reduzi-lo a meros produtos comerciais, mensagens potentes podem eventualmente infiltrar nas brechas da maquinaria capitalista e contrariar as correntes que reificam valores racistas e sexistas. E já que o protagonismo não é dado, ele deverá ser tomado. Essa tem sido também a estratégia de realizadoras/es negras/es mineiros que têm negritado o quão racista e machista é nossa produção que insiste na falácia da neutralidade de sotaques.
*Viviane Pistache é psicóloga, roteirista e crítica de cinema. Preta das Gerais com mania de ter fé na vida