O homem-onomatopeia

Em mais um texto, Charles Carmo escreve: “Era do tipo que não dividia simpatias, porque nunca as teve. Fazia da mesquinhez um exercício de fé”

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[caption id="attachment_137222" align="alignnone" width="1024"] Foto: Divulgação[/caption] Nos ônibus urbanos, os minutos são indiferentes. O que importa é o número de paradas, sinais fechados e ambulantes. Com eles medimos o tempo da viagem. E alguns medem tudo. Uma infinidade de produtos, sobe, desce, para. Deu graças por estar sentado e olhou tudo quanto podia, a confiar que a paisagem, ora bela, ora suja, encurtasse a viagem. À janela, sentiu-se privilegiado. Muitos estavam em pé, sacolas, mochilas, bolsas à mão, mas não ele. Através de seus olhos ele podia ver. Desejavam o seu lugar. Suados, invejavam sua posição. Quis o destino que encontrasse aquela vaga e ali, entre a segunda e a terceira marcha, uma brisa batia, dando trégua ao calor. Com certeza eles ambicionavam ficar com o seu lugar. Até mesmo levantou, a fingir consertar a carteira no bolso, somente para ver seus competidores em alerta, prontos a disputar seu assento ventilado, e sentou-se novamente. Sentiu um enorme prazer nisso. Era do tipo que não dividia simpatias, porque nunca as teve. Fazia da mesquinhez um exercício de fé, tornando-se devoto dessa mancha em seu caráter. Possuía uma vaidade oca, ancorada nela mesma, não havendo uma qualidade a lhe justificar. Compartilhava com os demais passageiros a lida diária da locomoção ao trabalho, mas nunca se viu como um igual. Em seu íntimo, acredita ser diferente e a vaga na janela reforçava seu ponto de vista. Conforme seu destino se aproximava, lamentou o fato de que inexoravelmente outra pessoa sentaria em seu lugar. Calculou o quanto ainda havia de percorrer, abrindo espaço entre os desprivilegiados a ocupar o corredor, antes de descer. Finalmente, tomou a atitude. Ergueu-se lentamente, postergando a entrega de sua posse arejada. Contorceu-se e, aos poucos, chegou junto à porta de saída. Um membro por vez. Ao menos metade dos passageiros desceriam ali, mas novamente ele queria ser o primeiro e, para ocupar a dianteira, pediu licença para passar e conversar com o motorista, o que era mentira. Nada perguntou ao condutor. A porta abriu. Deu a passada triunfante quando pisou em falso e caiu de cara no chão. - PUM! Percebeu a multidão que presenciava seu corpo estatelado junto ao asfalto e teve a sensação de que sua dignidade saíra correndo, envergonhada. Alguém zombou e lhe pareceu que uma onda de riso varria a cidade naquele momento. Quis se levantar, mas as chacotas, reais ou deduzidas, não lhe permitiam. Pensou em fingir um desmaio e quem sabe pusesse fim à tara humana que transforma as quedas apoteóticas em espetáculos de comédia, com gargalhadas diretamente proporcionais ao vexame alheio. Naquele momento sentia o planeta se contrair em risos. Alguém sorriu na China sem desconfiar do motivo. Um polonês gargalhou sozinho e, na Austrália, um vaqueiro esboçou um sorriso no canto da boca. O barulho da queda se espalhava na troposfera. Não que rissem todos, mas era esse seu sentimento. A chacota parecia universal. Sonhou em ser abduzido, levado suspenso para uma outra realidade cósmica em que a vergonha não existisse e a humilhação já estivesse superada. Da janela do ônibus partiu a derradeira gargalhada. Era a sua janela. Colheu no chão a vaidade destroçada e desapareceu na multidão. Não se sentia mais um favorecido.  Fora reduzido a uma figura de linguagem. Uma onomatopeia.