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Venho aqui falar sobre inevitabilidade. A crítica iluminista ao absolutismo não se tratava de uma questão pessoal. Não era uma crítica ao rei tal, ou ao nobre tal... Mas uma crítica municiada de uma filosofia da história baseada no progresso, na inevitabilidade do processo. Rousseau, por exemplo, achava “impossível que as grandes monarquias durassem muito tempo”.
Os prognósticos levantados por Voltaire e companhia não eram apenas um discurso contra o governo do momento, mas uma constatação de que aquele estado de coisas estava prestes a mudar, independente da vontade de Deus, do monarca, ou seja lá de quem fosse. Por isso, o historiador alemão, Reinhart Koselleck, chamou esses sábios de hipócritas, pois diziam-se apolíticos, apartidários, mas, no fundo, submetiam o poder político à crítica.
No início, o conceito de crítica estava relacionado à hermenêutica textual das Sagradas Escrituras, mas quando o Estado absolutista foi se apoderando de todos os objetos que a crítica criticava, ele acabou por se tornar o principal alvo desta. Embora os grandes pensadores, como Diderot, Voltaire, Bayle etc., dissessem estar acima de partidos políticos, passaram a eleger a moral como a gestora de tudo. Deste modo, até mesmo o rei, se não a respeitasse, seria considerado um tirano. Enfim, a crítica moral passou a ser o exercício da razão,1 e tudo passou a estar sob o critério da cultura e do que é civilizado.
Será que podemos fazer uma crítica dessa envergadura hoje? Acredito que, se não elaborarmos nossas críticas nesses parâmetros, dificilmente iremos avançar. Precisamos de uma crítica que seja racional, que estimule o raciocínio, que se apoie em uma filosofia que aponte para o inevitável.
O estado de crise que nos encontramos hoje nos levou a uma interpretação fantasiosa da política; de que há um conflito, em meio a uma situação de anomia, entre esquerda e direita. Mas na verdade, a nossa crise é a manifestação de forças retrógradas que se manifestam para impedir (ou talvez controlar) o avanço liberal – no sentido filosófico do termo.
As contradições liberadas pela sociedade industrial acarretaram em inúmeros problemas sociais, mentais e econômicos. A poluição, o conflito entre família e mercado de trabalho, o uso de agrotóxicos nos alimentos, a ideia de que todos são iguais e que possuem o direito de buscar a felicidade, enfim, são questões apresentadas pela segunda modernidade, mas que não buscam uma resposta, necessariamente, no socialismo, e sim nos próprios princípios liberais.
É inevitável que um futuro com menos racismo, com menos homofobia, menos machismo e outros “ismos” intolerantes, está por vir. Até mesmo um futuro com um acesso maior aos bens produzidos socialmente (embora sem pôr fim à desigualdade social), pode ser alcançado. Um mundo onde o aborto será legal, e que as drogas serão tratadas como uma questão de saúde e não mais como caso de polícia. Portanto, a crise que se instala mundialmente, que traz à tona estas questões dentre outras, é o suspirar de um organismo agonizante.
Minha posição pode parecer otimista para alguns, todavia não se trata de otimismo, mas do inevitável. Certamente é preciso destacar que não presenciaremos uma revolução, onde uma classe irá derrubar a outra, mas apenas a consolidação de um projeto utópico da burguesia. Os governos conservadores de hoje querem derrubar as leis que controlam o agrotóxico, em um momento marcado pelo avanço da conscientização dos orgânicos; querem retirar-se das instituições internacionais ligadas aos Direitos Humanos em meio a uma crise humanitária provocada por guerras brutais; querem precarizar as relações de trabalho, como vemos na uberização da mão de obra; até a amamentação foi condenada pelos EUA, contrariando a ciência para comprar a briga das fabricantes de fórmulas infantis;2 e o que falar da relação entre política e religião que vem se estreitando dia após dia? Mas isso não passa de uma tentativa de conter o avanço da Terceira Via, dessa “esquerda liberal”, que apresenta maneiras de superação dos riscos provocados pela industrialização3, maneiras estas que vem sendo adotada por muitos governos que se denominam socialistas.
As próprias forças dominantes sabem do inevitável e, portanto, querem conduzir, à sua maneira (lenta e gradual), as mudanças sociais e mentais. Elas têm medo de que as forças dominadas assumam as rédeas da mudança, pois temem a radicalização, a antecipação, o que desembocaria em uma revolução. Não é a toa que à medida que as classes dominadas ampliam seu acesso à educação, projetos que buscam enfraquecer o ensino, ou manipulá-lo em prol dos interesses dominantes, ganham força, como é o caso do “Escola sem Partido”, da queda no investimento em pesquisa e das propostas de privatização do ensino superior. A crise propõe soluções retrógradas quando os conservadores assumem as rédeas do inevitável. Retardam a vida, retardam as pessoas, retardam a transformação, mas os nossos dias como lagartas estão contados, e desse casulo que a crise, conduzida pelas forças reacionárias, nos enclausurou, surgirá um novo ser, uma nova humanidade.
Esse é o ponto nevrálgico da questão. Como o inevitável será conduzido? Quando as forças dominantes percebem que estão perdendo o controle, se embrutecem. Apoiam-se na natureza usurpadora do poder. Definem os prognósticos, enumeram soluções para as crises (reformas trabalhistas, leis de imigração etc.). Tudo, enfim, para desacelerar o tempo e nos prender em um museu de esculturas falsificadas, em um passado que serve apenas para retardar o novo.
Vivemos em um período de mudança, não social e econômico, ainda, mas um tipo de mudança que veio pôr fim, de uma vez por todas, aos problemas denunciados há 50 anos (1968). As pessoas querem mais liberdades, que, nesse primeiro momento, servirá apenas como uma razão para serem obedientes. A fórmula “liberdade em troca de obediência”, é o que vemos nos países avançados com um baixo índice de violência. Um tipo de realidade jurídica e social que só existe em nações que atingiram um nível menor de desigualdade social, mas que quer se fazer global.4
Evidentemente que não é o ideal, principalmente se levarmos em conta o fato de que em vários países - como no Brasil - a desigualdade social ainda é um tabu. As esquerdas desses lugares, portanto, precisam tomar cuidado em não cair no erro de importar algo que foge da realidade de seus respectivos países. As nossas contradições exigem lutas distintas das travadas pelos dinamarqueses, noruegueses e franceses de esquerda. Contudo, essa ideia de liberdade liberal de classe média é ainda melhor que um governo Trump, Temer, Putin e companhia.
Mas a questão é: o inevitável será conduzido por quem? Há um conflito pelo monopólio de controle do inevitável; do que está por vir. As classes dominantes estão fazendo de tudo para não perderem o controle do processo e estão convocando os seus cães de guarda, cada vez mais raivosos para atrasar o progresso.
1 KOSELLECK, R. Crítica e Crise. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. p. 96.
2 https://www-pragmatismopolitico-com-br.cdn.ampproject.org/v/s/www.pragmatismopolitico.com.br/2018/07/eua-condena-onu-incentivo-a-amamentacao.html/amp?amp_js_v=a2&_gsa=1&usqp=mq331AQECAE4AQ%3D%3D#referrer=https://www.google.com&_tf=Fonte%3A%20%251%24s&share=https%3A%2F%2Fwww.pragmatismopolitico.com.br%2F2018%2F07%2Feua-condena-onu-incentivo-a-amamentacao.html
3 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.
4 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad: Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 73.