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Quem não sente inveja, mente. Eu, por exemplo, invejo. Sem remorso, sem culpa, apenas invejo. Há quem diga que essa prática – vejam vocês – é deletéria. Imaginem por um segundo um mundo sem ela e verão, rapidamente, os avanços culturais e científicos desaparecerem.
As artes estão aí a comprovar. Um dia alguém resolveu pintar as próprias mãos nas paredes de uma caverna. Pouco se me dá a intenção, isso não vem ao caso. O fato é que aquilo despertou a inveja na era glacial. Rapidamente uma competição se instalou, para nosso deleite. Em Altamira, na Espanha, um invejoso talentoso resolveu pintar bisões, dez mil, quinze mil anos antes de Cristo. Na mesma época, em Lascaux, na França, outros pintaram cavalos. Na Serra da Capivara (Piauí), a moda continuou. E não paramos mais de pintar.
A Renascença Italiana, que nos deu Botticelli, Leonardo da Vinci, Michelangelo e tantos outros, é decorrente do incontrolável ciúme que eles nutriam pela arte da Grécia Antiga e de toda Antiguidade. De tanto invejarem, acabaram por superá-los. O rock é a inveja do country e do blues. Já a arquitetura, a somatória de milhares de anos de cobiça.
Ai de mim que invejo coisas simples, banais. Não posso ver alguém com boa memória. Basta ouvir um comentarista esportivo sacar de supetão a escalação de um time que jogou há vinte, trinta anos e a invídia me domina. Chega a ser cruel, desumano. A comparação é inevitável. Eu, que não recordo o nome dos meus professores da infância, que esqueço o nome dos colegas e até de amigos, sou obrigado a suportar o exibicionismo da memória alheia.
Passo por maus bocados. A pessoa vem em minha direção e o rosto é inconfundível. Sei quem é e de onde a conheço, mas o nome foge-me imediatamente. Se estou sozinho, menos mal, a não ser que ela insista para que eu anote, naquele mesmo instante, seu número de telefone na agenda. Se não, o aperto passa sem maiores traumas.
Diferente, entretanto, é estar acompanhado nessas horas. Por um imperativo de boa educação, temos que apresentar o amigo inominado a quem nos acompanha. É terrível. Vou de A até Z, a tentar recordar o nome, e nada. Experimento associações, e nada. Busco desesperadamente um apelido salvador; tudo em vão. A memória se vai, como o cesto que carregou Moisés, descendo um rio de esquecimento.
A conversa se desenrola e quanto mais íntimo é o papo, quanto mais calorosa a recepção, maior o constrangimento.
É por isso que as pessoas deveriam se apresentar imediatamente, sem intermediários. Um simples hábito, que não custa nada, evitaria todo o mal-estar. Mas não. Elas parecem pressentir o que está a acontecer e, em verdade, desconfio que sintam um prazer inconfessável diante da minha imagem em tal estado. Elas se aproximam, se olham e chegam a balançar a cabeça reciprocamente, esperando o momento em que eu cometa a fatídica grosseria; enquanto tudo se resolveria com um singelo “ele esqueceu de nos apresentar, meu nome é fulano”.
Numa dessas me dei mal.
Andava tranquilamente de mãos dadas com a minha namorada de então. A cena não podia ser mais banal. Dois jovens namorados passeando à luz magenta do final da tarde. Eis que avistei um velho amigo vindo em nossa direção. Para qualquer pessoa isso seria motivo de alegria, mas com o meu histórico, a vergonha era certa.
Comecei a percorrer todo o abecedário em busca do nome da criatura. Enquanto meu amigo já acenava com a mão e acelerava o passo em nossa direção, eu buscava desesperadamente uma escapatória.
Foi inevitável.
Nos abraçamos demoradamente, ele me falou as novidades mais importantes e eu retribuí, contando-lhe todas que eu dispunha. Ocorre que a amizade sincera desarma até os espíritos mais precavidos, e nem mais lembrava de minha aflição.
- Beto, essa aqui é...
Não teve jeito. O Beto deu risada. É meu amigo até hoje, mas a ex-namorada nunca me perdoou o esquecimento.