Rap: um elemento hip-hop como ritmo e poesia das periferias

Racionais MC’s, há 20 anos, já apresentavam diagnóstico, denunciando a criminalização das desigualdades, a relação do Sistema de Justiça Criminal como ponto central da manutenção de desigualdades baseadas em hierarquias raciais, que muitas teses, dissertações e ativismos só conseguiram sintetizar e transformar em discurso político robusto após 2006

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Me chamo Juliana Borges, sou filha de Claudia Borges, trançadeira; neta de Romilda Borges e sobrinha neta de Valdice Borges, lavadeiras; bisneta de Damiana, mulher indígena e doméstica. Gosto sempre de iniciar minhas participações em debates me apresentando e saudando minhas ancestrais e mulheres que me cercam. Porque ao nomear, estamos dando respeito e existência. Estamos dizendo de onde viemos e que sabemos para onde queremos ir. Sou fruto do trabalho, esforço, persistência e resistência destas mulheres, somadas às minhas tias maternas Selma e Simone, que decidiram que se uma não pode estudar, outra só pode fazer até a 4a série do fundamental e minha mãe só pode ter o ensino superior incompleto, eu seria a geração que carregava como projeto familiar a tarefa da universidade. Sou moradora da periferia de São Paulo, Jardim São Luís/Capão, bairro em que mais se mata e morre na cidade e onde está o cemitério que mais tem jovens negros enterrados, com mortes decorrentes de balas de fogo. A ativista e referência mundial para mulheres negras e à luta por uma sociedade sem prisões, revolucionária e comunista, Angela Davis sempre apontou em suas falas e seus escritos como a educação sempre foi um componente essencial para o povo negro em diáspora. Uma das ferramentas da escravidão, da instituição escravista, era a negação ao conhecimento, a ignorância, o desconhecimento de si mesmo e de sua história. Após o sequestro em África e comercialização, a saída para a travessia do Atlântico tinha em si um processo de fazer esquecer. E isso não é apenas figurativo, homens e mulheres negras africanas escravizados eram obrigados a, no porto em África, dar dezenas, centenas de voltas em torno de uma árvore, considerada sagrada para muitas das sociedades e povos africanos dos territórios foco e alvo da ação do comércio escravista, a ponto de não saberem mais quem eram, a ponto de esquecerem de si e dos seus. Era o apagamento do pensamento, da nomeação e da existência. Para terem ideia do quão cruel isto é, os gregos antigos, berço da civilização ocidental, fundamentais na construção do que nossas sociedades ocidentais são hoje tanto política quanto filosoficamente, acreditavam que nomear é dar existência. Ou seja, o ato de nomear algo, classificá-lo, intrinsecamente hábitos humanos, seja objeto, problema ou pessoa, é o que garantia a existência disso. Afinal, não se pode questionar o que sequer tem nome. Como incluir, considerar, construir política pública para o que não tem nome? E por que escrever de minha ancestralidade e sobre nomear, dar nome, para escrever sobre a importância do hip-hop como espaço de transformação? Porque a meu ver, o rap é o que, ao usar a palavra como instrumento, subverte a linguística, a gramática, a etimologia, ou seja, o sentido, o conteúdo das palavras. Língua e linguagem são instituições político-sociais e culturais e, portanto, expressam muito da identidade, ou das identidades, de um povo. Por isso que muitos acadêmicos  da Linguística, como ciência que estuda a língua, a palavra, dirão que nós não falamos simplesmente português, mas o Português Brasileiro. Ou, como eu prefiro, denomina a intelectual negra brasileira Lélia Gonzales de que nós falamos o “Pretuguês”. Ou seja, nós falamos algo que se aproxima mais do que nossas raízes afro-indígenas falam, e quando digo falam não é só o ato da fala, mas o modo de agir, pensar e ver o mundo. Ou seja, é pela língua e pela linguagem que refletimos, que externamos estas reflexões, que estabelecemos relação com o outro e com o mundo, que interagimos e nos colocamos como seres pensantes, como seres que existem. Nós, povos descendentes de africanos e indígenas, sempre fizemos poesia. A poesia é um estado de pensar, produzir e formular fala e escrita no mundo de modo lírico. É a capacidade de transpor, de ultrapassar o racional, duro e seco do real e construí-lo, em forma literária (seja o poema, a crônica, o romance, a fábula, etc.) o mundo. E este mundo pode ter muitas formas de ser. Ou seja, a Literatura, o estado de poesia, o estado literário, garantem a possibilidade do impossível. Porque é a partir desta capacidade humana que podemos construir o fantástico, o fabuloso, o ainda distante, o futuro, reconstruções do passado. A Literatura, o fazer literário, não está comprometida com o real, mas com uma construção, ou reconstrução, que parte do real, mas que o supera, que sublima o real. Um importante sociólogo e teórico literário brasileiro, se não o mais importante, Antonio Candido, dizia que a literatura é um direito humano. Eu não sei e não posso afirmar para vocês até que ponto o Professor Antonio Candido conhecia o rap, mas o fato é que uma das formulações mais importantes de sua trajetória como intelectual apresenta muito do que eu entendo como o que possibilita a existência, inventividade e o lirismo do rap. Ele diz: “O problema do direito à literatura é que a literatura é uma necessidade universal experimentada em todas as sociedades. O homem tem necessidade efabular, a efabulação (1). Eu, pessoalmente, estou convencido de que a literatura melhora muito o ser humano. A criação ficcional nos integra, ela passa a ser um componente da nossa visão de mundo, da nossa maneira de ser. Se ela existe em todas as sociedades, se ela é uma necessidade fundamental, ela é um direito de todo homem”. Quando eu fui reler este trecho do livro dele, um texto chamado “Direito à Literatura”, um clássico importante da Teoria e Crítica Literárias brasileiras, no trecho em que ele fala que a “literatura melhora muito o ser humano”, me pareceu como se ele estivesse falando para este momento de escrita. Ou seja, o rap, o ritmo e a poesia, são transformadores ao se apresentarem como elemento de uma cultura transformadora como o hip-hop. Parece até que Antonio Candido poderia ser um cara falando de como a gente entende o rap e a importância desta poesia, deste fazer testemunho-literário, nas nossas comunidades. Ou seja, utilizar de uma capacidade humana inata, que todos temos a necessidade seja de fazer seja de beber desta fonte de fabulação, como compromisso político e de mudança das vidas de jovens e de comunidades, principalmente negras. O rap, a junção de dois elementos do Hip-Hop, é uma abreviação de “rythym and poetry”, ou seja ritmo e poesia. E o ritmo e a poesia como elementos de difusão do conhecimento e expressão são muito antigos. As sociedades africanas e indígenas, em sua maioria orais, recorrem muito à construções que intercalam ritmo, métrica, rima e poesia como elementos de acesso ao conhecimento e a memória coletiva de uma sociedade. O rap apresenta o cotidiano das periferias em letras com caráter narrativo literário. Ou seja, o autor, aquele que compõe, escreve, narra histórias, constrói enredos baseado na realidade ou na construção fictícia brincando com as palavras, buscando tirar o leitor de sua posição, de fazê-lo sobressair do corpo físico, a observar e compreender sua vivência cotidiana. No fazer literário, o rap questiona silenciamentos, o desconhecimento, possibilita e dá voz, nomeia, dá existência ao que estava invisibilizado, ao que esta sociedade entende apenas como o que deve ser controlado, reprimido, subalternizado, preso ou morto: a vida periférica e preta. Ao fazer a relação entre o testemunho, a denúncia e o protesto, numa relação de indignação política periférica, articulada a uma moral (não no sentido religioso, mas de passar uma mensagem, um conhecimento), e se utilizando muito de elementos simbólicos importantes de relação das comunidades, como a religião – e isso fica muito evidente em várias músicas dos Racionais – o rap está trabalhando com linguagens que dialogam, que fazem com que o interlocutor reconheça seu entorno e a si mesmo. E por isso o rap é tão potente e temido. O rap tem a potencialidade de subverter hierarquias, de transformar palavra e, portanto, como vemos, entendemos e nos expressamos no mundo. Um exemplo é o uso da palavra “preto”. É a partir do rap, da cultura hip-hop, que mais fortemente subvertemos uma palavra usada, a princípio, para diminuir pessoas negras. “Preto” vira linguagem terna, de reconhecimento entre pessoas negras, se atrela a poder, quando o rap e a cultura hip-hop difundem o 4P (Poder Para o Povo Preto). Na semana passada, nós tivemos uma vitória importante. O disco “Sobrevivendo no inferno” dos Racionais MC’s foi definido como obra literária obrigatória do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das mais importantes universidades públicas do país. Isso é incrível e que devemos festejar porque significa mais uma subversão do rap e do hip-hop ao questionar como se constrói um cânone literário (2). Ou seja, ao colocar Racionais MC’s ao lado da poesia de Camões, dos maiores poetas da língua portuguesa, e de Ana Cristina César, poeta da poesia marginal dos anos 70, que já foi homenageada pela Festa Literária de Paraty há poucos anos, nós estamos dizendo que um álbum de rap é um marco reconhecido da literatura nacional. Ou seja, que o rap é constituidor da identidade brasileira. “Sobrevivendo no inferno” é um álbum de 1997 e que já apresentava um diagnóstico da violência no Brasil quando a área de pesquisa de estudos da violência, na Sociologia, ou mesmo construções de criminologia crítica, ainda estavam se estruturando. Além de literário, este é um álbum político, social, antropológico e filosófico. Hoje, nós temos debatido muito a prisão, principalmente após a aprovação da Lei de Drogas em 2006 que fez o número de pessoas em situação prisional no Brasil aumentar absurdamente em mais de 220% no caso dos homens e de 567% no caso das mulheres. E os Racionais estavam problematizando a prisão, questionando este que é um instrumento coercitivo e repressivo político da população negra, há 20 anos. “Diário de um detento” é excepcional literariamente, no conteúdo e que aponta muitas questões: tanto a construção de uma personagem baseada no real, um elemento que eu já demonstrei a vocês que é matéria-prima literária; quanto o próprio questionamento do que significa falar da favela e da condição de preso ao apontar em letra a desconsideração da sociedade, pelas estruturas de opressão, da voz de determinados grupos sociais; quanto do que significa o sistema prisional brasileiro, como um espaço em que a sociedade reprime e acha que as pessoas que ali estão podem ser alvo de toda e qualquer brutalidade, como foi o massacre do Carandiru, narrado na letra citada, e como é a realidade das prisões hoje; quanto de apontar o Estado como responsável pela lógica genocida, violenta e terrorista contra pessoas que só passam por esta situação porque são, em sua maioria, negras e periféricas. Ou seja, Racionais MC’s, há 20 anos, já apresentavam diagnóstico, denunciando a criminalização das desigualdades, a relação do Sistema de Justiça Criminal como ponto central da manutenção de desigualdades baseadas em hierarquias raciais, que muitas teses, dissertações e ativismos só conseguiram sintetizar e transformar em discurso político robusto após 2006. Com lirismo, ritmo, melodia, métrica, poesia, Racionais levaram às comunidades, em Literatura, efabulação e conhecimento, reflexão e questionamento. Esta é a potência do rap: diagnosticar, apontar a realidade com arte, utilizando aquele elemento de culturas orais, que com rima, ritmo, métrica e poesia garantem memorização e conhecimento. Quer mais alta literatura do que isso? Fico pensando no que Homero diria. (1) Efabulação: capacidade de alterar a verdade. Capacidade de Fabular, ou seja, de romancear uma série de fatos. (2) Cânone: é um termo que deriva do grego “kanón”, utilizado para designar uma vara que servia de referência como unidade de medida. Na Língua Portuguesa o termo adquiriu o significado geral de regrapreceito ou norma. Em determinados contextos, a palavra cânone pode ter significados mais específicos. Na literatura, é um conjunto de livros considerados como referência num determinado período, estilo ou cultura.