Mulheres também são vilãs na 2ª temporada de “Jessica Jones”

Em novo artigo, Tomaz Amorim escreve: "Mostrar o mal também como potência feminina não é uma recaída no machismo, como poderia parecer. Pelo contrário, é mais uma investida rumo a uma representação mais justa das mulheres como pessoas autônomas, responsáveis por suas ações e motivadas por desejos próprios"

Escrito en COLUNISTAS el
Atenção: Contém revelações gerais de enredo. Sempre foi um procedimento do gênero de super-heróis a transformação de imagens e conceitos em superpoderes, como fogo, água, eletricidade, sentimentos, animais etc. Em Jessica Jones, isso se passa com tipos e conceitos caros ao Feminismo. Kilgrave, vilão da primeira temporada, mantinha Jessica refém em um relacionamento abusivo através do poder da palavra e da manipulação da memória. Ele poderia ter se chamado “Super Gaslighting”. Já na segunda temporada, se o patriarcado continua operante e reproduzindo a opressão a partir de agentes masculinos, na linha de conflito principal homens e mulheres passaram a dividir os momentos de heroísmo e vileza. A “serial killer” que Jessica investiga durante metade da temporada é uma mulher. Na outra metade, é sua amiga íntima quem, num rasgo desesperado de narcisismo, complica a situação já quase solucionada. As ações dessas mulheres muitas vezes são influenciadas ou catalisadas por agentes masculinos, mas nunca determinadas, dirigidas ou causadas diretamente por eles. E isso é fundamental para que a série consiga ir além da representação feminina tradicional nos filmes e séries. Mostrar o mal também como potência feminina não é uma recaída no machismo, como poderia parecer. Pelo contrário, é mais uma investida rumo a uma representação mais justa das mulheres no audiovisual como pessoas autônomas, responsáveis por suas ações e motivadas por desejos próprios. Está muito mais próxima da ideologia machista a representação feminina angelical, sempre no polo oposto do mal, que carrega consciente ou inconscientemente também uma imagem desumana, dependente e passiva à vontade alheia. Se na primeira temporada elas lutam para não serem vítimas, na segunda elas lutam para não serem apenas santas imaculadas. O que une as duas é não ser mais definida por ações masculinas, autonomia para fazer o bem, como Jessica, mas também para fazer o mal. Bem e mal, polos tão importantes para o gênero super-herói, também ficam mais complexos. Mãe e filha agem de forma distinta, mas com motivos justificados e muitas vezes nobres. A própria Jessica, alcoólatra e violenta, não se encaixa no papel mais tradicional de herói, embora também não caiba na ideia já cansada de anti-herói, como o Batman ou o Wolverine. As deficiências e excessos de Jessica são construídos de forma inteligente a partir da sua condição contraditória e específica de mulher com superpoderes em um contexto patriarcal. Ela se distingue de outras heroínas mais divinas como a Mulher Maravilha e a Miss Marvel porque vive um cotidiano não glamouroso nas ruas da cidade grande. Experiência, assédio físico e psicológico como a maior parte das mulheres, apesar de seus superpoderes. Essa especificidade é um dos elementos que torna Jessica uma heroína de carne e osso, ou melhor, uma pessoa de carne e osso tentando sobreviver e fazer o melhor. O olhar específico das diretoras da série, todas mulheres, certamente contribuiu para esta representação entre o realista e o fantástico, dentro do qual se movimenta o maniqueísmo, transformando a série, novamente, na melhor do gênero da atualidade. Nessa segunda temporada, as mulheres, assim como os homens, aparecem como viciadas, violentas e traidoras. Os homens, assim como as mulheres, aparecem dedicados à família, cuidam dos entes queridos e são românticos nos relacionamentos. O patriarcado e suas injustiças continuam efetivos, não se trata de escapismo, mas a revelação das ambivalências mais amplas dentro dos gêneros é um contra-ataque tão importante à representação tradicional quanto a vilanização dos comportamentos misóginos. O roteiro não cai na sedução previsível de repetir o conflito da primeira, mais um namorado abusivo com poderes, mas dá mais um passo importante na ampliação das possibilidades femininas dentro da narrativa: não apenas donzela a ser salva, não apenas heroína, mas também vilã. Um dos índices psicológicos da complexificação das relações de gênero nessa segunda temporada são as relações familiares. As mães em Jessica Jones são em geral personagens violentas e manipuladoras, enquanto que os pais são ausentes. Trata-se de um tipo de Complexo de Elektra: a mãe é responsabilizada pelo desaparecimento do pai, que deve ser vingado. Esse arquétipo greco-psicanalítico orienta a série, mas vai sendo aos poucos complexificado e, como consequência disso, ruído, conforme os pais ressurgem (responsabilizados tanto por sua presença, quanto por sua ausência) e as filhas passam a compreender as ações maternas, identificando-se ou não com elas. O gênero super-herói segue a representação cristã ocidental das mulheres. As vilãs normalmente são sedutoras, como Eva e Salomé, Circe e as Sereias da Odisseia, que conduzem o homem à queda. Seu poder está na sensualidade, não na força. São exemplos Mulher Gato, Gata Negra, Viúva Negra, Mystica etc. Uma exceção complementar é a figura da bruxa que, apesar de feia, entre outros riscos à ordem e à masculinidade, também seduz através de feitiços, poções e outros métodos obscuros. Era Venenosa, inimiga-amante do Batman, mistura os dois arquétipos. Em Jessica Jones, por outro lado, as vilãs não são criadas do ponto de vista masculino, como um risco específico ao homem e, portanto, sedutoras, mas como um risco geral, como um risco a partir do próprio desejo da vilã, daí seus poderes estarem ligados também, embora não exclusivamente, à força e à agência. Não se trata, como muitas vezes é, de uma masculinização do feminino através da força, mas de uma feminização da força para além do modelo masculino. Em Outubro de 2016, o diretor de cinema Michael Moore fez um bem intencionado comentário no Twitter sobre como os grandes problemas da humanidade são causados por homens. Segundo ele, “nenhuma mulher inventou uma bomba atômica, construiu uma chaminé de fábrica, começou um Holocausto, derreteu as calotas polares ou iniciou um tiroteio em escola”. A mensagem de Moore foi, no entanto, criticada pela escritora Jessica Ellis que, não apenas deu exemplos diretos de mulheres que contribuíram para os males citados por Moore, como apontou os problemas no pressuposto angelical das mulheres do argumento. As palavras desta outra Jessica ajudam a entender a importância dos momentos vis das mulheres nesta segunda temporada: “As mulheres enfrentaram uma tonelada de opressão nas mãos do patriarcado, mas você não pode nos apagar. Nós não somos monumentos de mármore. E dizer às mulheres que não há lado sombrio nelas, que elas são puras como nata, é ruim para a saúde mental delas. Nós não somos melhores. Sugerindo isso você não apenas tira nossa agência e nos apaga da história, como cauteriza nossa habilidade de fazer escolhas. Ser eticamente boas não é mais fácil para nós do que para os homens. É tempo de parar de agir como se a bondade saísse de dentro das nossas vaginas. Nós escolhemos”.