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[caption id="attachment_145336" align="alignnone" width="700"] Foto: Divulgação[/caption]
“Shirkers” é um documentário de 2018, dirigido pela singapurense Sandi Tan, distribuído pela Netflix e vencedor da melhor direção de documentário no Festival de Sundance. “Shirkers” é um filme sobre outro filme de mesmo nome, filmado em 1992 em Singapura por um coletivo de adolescentes e nunca terminado porque foi roubado, em um gesto inesperado de traição, por seu diretor Georges Cardona. “Shirkers” é um filme complexo, leve, mas multifacetado, que opera em diversos níveis: metalinguísticos, sentimentais, históricos, coletivos. A intenção deste texto é menos ser uma análise aprofundada, do que uma série de perguntas quase impressionante sobre as diversas faces que o documentário, em seu movimento constante de ausência e presença, apresenta.
“Shirkers” é um filme sobre a perda. E sobre um tipo específico de perda, aquela inesperada, imprevisível. Mas “Shirkers” também é um filme (talvez como todo filme) sobre a possibilidade de fazer filmes. É um filme feito sobre um filme que não foi feito. É pedagógico, neste sentido, para a vida subjetiva mais ampla, para a própria História: depois do trabalho de luto, nunca completo, a tentativa de preencher o espaço deixado com algo de novo. Este novo, como se sabe, construído sobre as ruínas do ausente - talvez como todo novo.
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“Shirkers” é um filme que dá um exemplo, talvez raro, talvez sempre buscado, da transfiguração positiva de uma dor, do luto por uma ausência, em potência criativa. Não se trata de um filme alegre, de uma superação elegíaca do filme que nunca foi, mas de uma resposta possível, sim, uma resposta diferente, completamente diferente daquilo que foi perdido, mas ainda assim, uma resposta, uma maneira de, talvez, poder seguir em uma relação não apenas paralisada, incompreensível com o fantasma do filme roubado, um tipo de reencarnação, quem sabe, a defesa da possibilidade de continuar criando apesar do desaparecimento do primogênito.
“Shirkers” é um filme sobre um filme roubado. É um filme sobre apadrinhamento artístico, sobre mentores e sabotadores e a linha tênue entre ambos, um filme um pouco edipiano, neste sentido. “Shirkers” é um filme sobre um homem que talvez não tolere o sucesso alheio, o poder criador de um grupo de jovens adolescentes e decide bloquear, sequestrar, roubar, trair a confiança que lhe foi depositada - a de operar dentro do coração daquele sonho coletivo. O que teria sido do cinema de Singapura se “Shirkers” tivesse sido terminado e exibido? O que teria sido da vida, dedicada ao cinema, das três então adolescentes? Tudo teria sido diferente? Ou nada mudaria, o filme seria um fracasso, um capricho de meninas hipsters de classe média?
“Shirkers” é um filme que, para além de si, fala também, em sua lenda trágica, de uma Singapura que não existe mais. Que existe e que não existe, simultaneamente, como os dois filmes. Existe outra, construída sobre aquela primeira, vista a partir dos olhares devoradores e explosivos da adolescência criadora, a partir de toda a vida, de todas cores que elas enxergavam ali através do Super 8. Há uma semelhança melancólica, o drama do envelhecer, entre a Singapura colorida pelo Super 8 e a Singapura atual, mostrada pela lente digital, de cores um pouco lavadas, do documentário que se tornou “Shirkers”? Envelhecer é partir de um “road movie” sobre uma assassina indie em uma Singapura tropical para se tornar um documentário inteligente ao redor de três cineastas e premiado em Sundance?
“Shirkers” é um filme sobre o reencontro com um passado irremediavelmente danificado. “Shirerks”, o original, é reencontrado - mas sem som. Tivesse sido encontrado em sua forma completa, seria bem possível, que “Shirkers”, o documentário de 2018, nem existisse. Os dois “Shirkers”, de alguma forma se sobrepõem em um filme duplo, o segundo narrando, falando pelo primeiro que foi emudecido.
“Shirkers é um filme sobre a possibilidade da transformação das personalidades, do amadurecimento pessoal e criativo. Há algo na protagonista de “Shirkers” que reflete o sequestrador do primeiro “Shirkers”. Há traços de personalidade que eles compartilham, há uma obsessão criativa, uma instrumentalização dos outros, mas há também uma diferença fundamental que também distingue o “Shirkers” não acontecido do acontecido. Como em um tipo de superação dialética, no momento em que o diretor sequestrador foge, a diretora -protagonista se abre. O filme também é sobre ela, seus anseios, suas obsessões, sua relação, às vezes tensa, com as outras personagens. Onde o sequestrador não permitia a crítica alheia, onde surge o espaço de ação dos outros (seus alunos que, aos poucos, iam, também, se transformando em cineastas) que ele deliberadamente abandona, sabota, ali a diretora-protagonista do “Shirkers” documentário se permitia estar. Ali, no incômodo, ela soube se deter. Neste gesto, seu filme também se beneficia e dá um salto qualitativo, de uma investigação quase no estilo policial (o filme perdido como o cadáver a ser encontrado), para uma reflexão profunda sobre uma das questões fundamentais do tipo de arte que o cinema é: uma arte coletiva, que necessidade de um grupo, que é feita em conjunto - com todas as tensões humanas e sociais que isso envolve.
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