“A Casa que Jack Construiu”, de Lars von Trier, e o inferno na Terra

Tomaz Amorim: “Esse thriller alegórico, com pitadas de horror, é um passeio acompanhado pelo inferno, ao modo da Divina Comédia de Dante, com a diferença fundamental de que o inferno não é mais metafísico, no além-vida, mas é bastante material, é social, é presente”

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[caption id="attachment_143514" align="alignnone" width="700"] Foto: Divulgação[/caption] A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built, 2018) não é tão polido na imagem e no som quanto Melancolia (2011) ou Anticristo (2009). O diretor Lars von Trier retoma aqui a estética do Dogma 95 (com suas câmeras tremidas, sua resolução às vezes baixa demais para a tela de cinema, seu foco flutuante) e de filmes do começo de sua carreira como O Elemento do Crime (1984) e Europa (1991). O estilo de montagem do filme, com pinturas, referências à outras obras de arte, cenas de outros filmes, segue a estética anedótica de Ninfomaníaca, mas sem se completar. As imagens vão se amontoando, se reafirmando e se contradizendo. O epílogo da Divina Comédia poderia facilmente ter sido intercalado entre os episódios principais. Jack é e não é Dante. Trata-se de um gesto barroco, excessivo, apegado à transitoriedade das coisas, conta sobre a vida a partir da morte, sobre a criação a partir da destruição. O uso repetido das gravações de ensaios do pianista Glenn Gould encontra nele uma relação semelhante com a prática artística, tanto de Jack, quanto do próprio filme. Repete, enfatiza aqui e ali certos aspectos da obra, produz um resultado genial - apenas para ser contaminado por um murmurejo profano. Esse thriller alegórico, com pitadas de horror, e diálogos típicos do diretor desde Ninfomaníaca (2013), é um passeio acompanhado pelo inferno, ao modo da Divina Comédia de Dante, com o qual o filme dialoga todo o tempo, com a diferença fundamental de que o inferno não é mais metafísico, no além-vida, mas é bastante material, é social, é presente. Nas palavras de outro escandinavo, o sueco August Strindberg: o inferno é aqui. Mas não é apenas o inferno que é reterritorializado, a própria obra de arte, um dos temas principais do filme, também é apresentada em sua versão mais material. A obra deixa de ser ideal para retornar à matéria. Isso não fica claro desde o começo, pelo contrário, se dá justamente pela posição suspeita de quem defende uma obra de arte absolutamente separada da sociedade, salva dos sentimentos, das casualidades, da impureza do sentimento e da sociedade humana, da obra resguardada platonicamente no reino do abstrato. Este é o ponto de vista do protagonista, o serial killer Jack, ou, como ele se autointitula, Sr. Sofisticação, que tenta, em um diálogo dantesco com seu próprio Virgílio, defender a ideia de que o terror, o massacre e a morte calculada também podem ser vistos como obra de arte. A discrepância gigantesca entre a brutalidade das cenas e as alturas estéticas a que o frustrado arquiteto pretende levar seus assassinatos mostram de maneira inteligente o ponto de vista do filme sobre a questão. Hitler, como se sabe, além de mestre da morte, era pintor e arquiteto frustrado. A obscenidade, a profanação de certas cenas, de certas produções do serial killer que se quer artista denunciam, novamente, algo sobre o estatuto da obra de arte em sua relação com a sociedade. Arte e política, no corpo torturado da criança transformado em “obra”, são inseparáveis. A arte pela arte prepara, de alguma maneira, o caminho do fascismo, como explicou Walter Benjamin com palavras que poderiam descrever o filme de Von Trier: “Faça-se arte, pereça o mundo”, diz o fascismo, e espera a satisfação artística da percepção sensorial transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a consumação da arte pela arte. A humanidade, que outrora, em Homero, foi um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte” (‘A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica’, na tradução de Francisco Machado)”. É esse inferno social, em que qualquer horizonte comunista desapareceu, que a obra-horror de Jack apresenta. O filme pensa a obra de arte e a sociedade. Quer soar cínico, quer soar insensível às dores do mundo, mas se constrói, se justifica como denúncia da insensibilidade, da ausência de solidariedade no mundo. A moça grita desesperada na janela e ninguém na cidade a acode. Este mundo parece ser construído para o sofrimento, para sofrimento das vítimas, mas também do protagonista. O filme mostra o sofrimento cru como estratégia de denúncia, não de prazer perverso, de celebração da morte. Nesta visão negativa, só há transcendência como inferno, só há Deus como cúmplice do carrasco (como mostra a cena da chuva forte que lava o rastro de sangue). Novamente, o inferno é aqui, não há diferença entre o começo realista e o fim alegórico. Mas é claro que a recorrência da violência contra mulheres no filme deixa cansado qualquer espectador minimamente atento. É necessária? A saída de Von Trier parece ser abraçar intensamente, agarrar-se com a misoginia mais declarada até fazê-la mostrar os dentes. A narrativa é profundamente misógina ao mesmo tempo em que denuncia a misoginia escancaradamente. Afinal, o ponto de vista não é do sociopata, do serial killer? Como é típico do procedimento de Von Trier, seus filmes apresentam ciladas de compaixão, armadilhas de identificação. Em Dogville (2013), a narrativa é construída de tal maneira que no fim, para susto do próprio espectador, ele se vê celebrando o massacre de toda uma aldeia. Em Von Trier, como nos grandes autores, é importante lembrar do ponto de vista do narrador e a da tentação de se identificar com ele. Neste sentido, Virgílio funciona como, se não um tipo de superego, ao menos um tipo de antítese, de visão crítica do filme sobre si mesmo. “Por que você só me conta os casos das mulheres estúpidas que você matou?”, pergunta Virgílio. “Por acaso”, responde Jack. “Ou você acha que todas as mulheres são estúpidas”, responde Virgílio, denunciando não apenas o narrador Jack, mas, também, o próprio filme. Ele assume a misoginia como forma de denunciá-la. Porque não há nada mais ridículo do que a clareza de que ela é produto muitas vezes, como é o caso no filme, de uma impotência criativa, criadora. O homem não é capaz de produzir vida, apenas morte (ele não é acusado, como diz o protagonista, mas ele se auto acusa). Daí a necessidade de Jack de profanar a maternidade e as crianças, de profanar os seios que seduzem, mas também amamentam. Virgílio provoca lembrando da incapacidade do protagonista de terminar sua própria casa. O problema, segundo Jack, fica sendo o material, a mídia. E como não há material mais propício à arte do que o corpo humano, ele constrói uma casa de cadáveres. Casa, no entanto, para ser apreciada como obra, não para ser habitada. Casa que, neste sentido, é o negativo do útero - primeira casa humana, abrigo que produz seu habitante - casa produzida a partir dos mortos, limiar não de entrada para a vida, mas para o mundo dos mortos, para o inferno. Em Melancolia, a cabana rústica, precária, que a melancólica protagonista ergue para proteger sua família do cataclisma é também uma defesa da própria possibilidade de se fazer cinema, de se fazer arte, de contar histórias diante das tragédias presentes e iminentes. Gravetos que impedem uma aniquilação psico-astronômica. O fim de A Casa que Jack Construiu é menos otimista. A ponte, o salto para a redenção, a promessa de felicidade em cada obra de arte está interrompida. Resta apenas a denúncia do mal, sem Beatriz.