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Por Juliana Borges*
O que é ser mulher negra para você? Digo, quando você pensa nestas palavras, ditas ou escritas, conjuntamente, “mulher negra”, o que vem à sua cabeça? A qual imagem você associa essas palavras?
Não é uma surpresa quando nos deparamos com um programa de auditório em que uma das convidadas diz que queria ser negra, mas que nasceu apenas com a “bunda grande” de uma mulher negra. Não ser uma surpresa, não significa que não indigne. As mulheres negras são historicamente estereotipadas seja no físico seja no psíquico. São ditas e vistas como instáveis, incapazes para o trabalho intelectual, quentes, lascivas, desconfiadas, brutas, impacientes, braçais, bravas, etc. Em “Dicionário da Escravidão Negra do Brasil”, Clóvis Moura nos traz qual era a visão sobre a “mucama” no período escravocrata brasileiro:
“Escrava doméstica, negra ou parda, escolhida, quase sempre pela senhora, para os serviços domésticos, especialmente nas casas grandes do Nordeste. Acompanhava a cadeirinha na qual a senhora saía a passeio e podia ser ama-de-leite, cozinheira, copeira, confidente das filhas do senhor, alcoviteira ou objeto de uso sexual do seu dono ou de outros membros da família. Transformou-se em símbolo erótico para uma certa tendência literária. Dava crias na casa-grande sem que isso causasse espanto, mas os seus filhos, mesmo sendo do senhor ou dos seus filhos e parentes, continuavam escravos. Esta sexualização da imagem da mucama é responsável por muitas lendas e fabulações, especialmente no tocante aos ciúmes das suas senhoras em relação aos maridos (...)”.
[caption id="attachment_108914" align="alignleft" width="550"] Discursos e estereótipos: exemplo de propaganda de cerveja que reproduz a erotização da mulher negra[/caption]
A imagem de uma mulher negra disponível para os desejos eróticos de homens é resultado de um processo e construção de estereótipos com propósitos exploratórios e de subjugação. O processo colonial e as relações de poder têm, como um de seus matizes, o questionamento de identidades. Neste processo de hierarquização e constituição de estruturas de poder, o colonialismo tem interseccionado, e como imprescindível em si, a racialização de características físicas e aspectos culturais dos povos explorados. Os discursos e estereótipos construídos sobre o corpo e as culturas foram cruciais para o êxito e aceitação do processo colonial. Segundo a antropóloga Avtar Brah, a racialização do poder opera em e através dos corpos. Ou seja, este discurso e representação são indissociados do poder político e econômico que se constituem. Sem a racialização, o processo colonial e a hierarquização política e econômica teriam, sem dúvidas, maiores dificuldades de serem apreendidas e instituídas. Isto significa que não há hierarquia de opressões. Elas agem interseccionadas e de modo indissociado para a manutenção da estrutura de dominação.
Um dos exemplos mais simbólicos desta exploração e hipersexualização da mulher negra é de Sarah Baartman. Uma mulher do povo khoisan, que foi exibida em “shows de aberrações” pela Europa. Mais conhecida como “Vênus hotentote” (sendo hotentote, hoje, um termo pejorativo dada a carga deste processo de racialização e opressão), Saartjie era servente de uma fazenda de holandeses na Cidade do Cabo, na África do Sul. Foi persuadida a ir para a Europa e, chegando ao velho continente, descobriu o seu verdadeiro destino. A Vênus foi vendida, em 1814, para um francês e sua exploração foi ainda maior. Sarah foi estudada por cientistas naturalistas e obrigada a se prostituir. Segundo a ciência da época, o corpo de Saartjie era como que paradigma da “exuberância” do corpo feminino negro, tipo como anormal em relação ao corpo branco. Após sua morte, seu corpo foi enviado para o laboratório do cientista George Cuvier, do Museu Nacional de História Natural. A teoria de Cuvier era de que os órgãos genitais mais protuberantes eram mais “primitivos” e, por isso, com maior desejo sexual. Seu esqueleto e órgãos genitais ficaram expostos até 1974 no “Museu do Homem”, em Paris. Seus restos mortais só retornaram para África em 2002, após pedido de Nelson Mandela.
Neste sentido, perpetuar estes discursos e senso comum, produtos não apenas de discurso, mas de opressões sentidas e vividas fisicamente, é também um modo de manter vivo e alimentar um sistema baseado na opressão e na hierarquização de pessoas e saberes. Reduzir as mulheres negras a partes erotizadas do corpo é, para além de objetificar a mulher negra, desautorizar discurso e potência política.
Por isso que indigna que, em pleno século XXI, ainda vejamos em programas de auditório a propagação de uma lógica de subalternização e de estereótipos que reforçam na sociedade que mulheres negras servem apenas para serviços braçais e para a erotização. Surpresa não há, pelo histórico de opressão. Mas o desconforto e a indignação tomam espaço porque nunca foi e agora menos ainda aceitável que se desumanize seres humanos deste modo.
Uma das marcas do processo racista de colonização é a desumanização do outro. As mulheres negras, ainda hoje, são as que recebem piores salários, estão em ocupações mais precarizadas, inclusive em relação às mulheres brancas.
Nossa autoestima é confrontada todos os dias por não nos enxergarmos em nenhuma revista, programa de TV, comercial. E mais que isso, nossa autoestima é confrontada todos os dias porque, por muito tempo, o amor nos foi negado.
Ser mulher negra é um processo de reencontro cotidiano, de reconstrução da identidade que nos foi tomada e negada. Bell Hooks, em um de seus textos mais notórios, fala sobre a vivência do amor para os negros e, principalmente, para as mulheres negras. Sobre essa experiência roubada, a de amar. O feminismo negro tem em uma de suas facetas essa subversão de imagens e construções históricas, que se apresentam na especificidade mais totalizante que podemos ansiar na luta que travamos pela justiça e pela igualdade. É a transformação em potência máxima da resistência e da libertação não só das mulheres negras.
Com isso, temos a possibilidade de bravamente amar e, assim, destruir e transformar qualquer realidade opressora à nossa frente.
Somos muito mais do que bundas, peitos ou qualquer outra parte do corpo. Somos seres pensantes, intelectualizadas, que produzem saber pela vivência, que transpõe este saber em “escrevivência” e não toleraremos mais sermos referidas como pedaços, como partes. Mulheres negras são inteiras, potências inteiras de (re)existência e de conhecimento.
Nos reinventamos cotidianamente, de carnes mais baratas do mercado a vozes altissonantes e que cantam até o fim.
Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013).
(Foto de capa: Agência Brasil)