Transições, Transações, “Lawfare”: Brasil, Brasil

A instabilidade política brasileira é derivada de posições autoritárias e das negociações – das transações – realizadas de maneira equivocada: a) a ditadura militar fortaleceu um Estado de Lei sem Lei; b) as rupturas com a ditadura militar falharam e terminaram em eleições indiretas, em ausência do povo na Constituinte de 1988; c) não houve “justiça de transição” adequada – com um levantamento amplo da memória política, com a revisão da Lei de Anistia, com o julgamento dos violadores dos Direitos Humanos seguido de condenações dos responsáveis.

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A instabilidade política brasileira é derivada de posições autoritárias e das negociações – das transações – realizadas de maneira equivocada: a) a ditadura militar fortaleceu um Estado de Lei sem Lei; b) as rupturas com a ditadura militar falharam e terminaram em eleições indiretas, em ausência do povo na Constituinte de 1988; c) não houve “justiça de transição” adequada – com um levantamento amplo da memória política, com a revisão da Lei de Anistia, com o julgamento dos violadores dos Direitos Humanos seguido de condenações dos responsáveis Por Leandro Seawright Alonso* Não poderíamos ter outro resultado – posto que a “transição política” foi uma “transação”. Outra transação se impôs entre as décadas de 1970 e 1980. Tivemos a transação colonial, imperial e a dita republicana. Já faz tempo que o sociólogo Florestan Fernandes usou a expressão “transição transada”, de Jânio de Freitas, para escrever sobre a “abertura política” no Brasil. A tese incrementada por Fernandes é simples: depois do Regime Militar houve uma chamada “abertura democrática” por meio da “situação história de ‘conciliação nacional’, isto é, uma conciliação conservadora”. É que, para Fernandes, a “transição” foi uma “transação” – uma negociação. Mais uma. Claro que a sociedade brasileira está dividida, está fraturada: nunca fizemos transição histórica, filosófica e jurídica da sociedade dos crimes imperiais aos crimes republicanos; na República, não fizemos a transição do Estado Novo à democracia; não fizemos a transição da ditadura militar à chamada “Nova República”. A polarização não provém da correlação de forças partidárias – entre PT e PSDB, por exemplo. É mais antiga. Em 1979 a Anistia nasceu de luta por um lado e de “auto-anistia” dos militares por outro. Interessou aos militares. Sabemos que a “anistia” representou a impunidade dos crimes da ditadura militar. Em 1983 a 1984 houve um movimento reivindicatório de Eleições “Direitas Já”. O historiador Carlos Fico disse que as “Diretas Já” foi uma espécie de “anticlímax”, pois houve eleições indiretas. “Indiretas Já”. Risível. Em 1988, promulgou-se a “Constituição Cidadã” – que tinha de ser promulgada mesmo. Mas, esperava-se por uma participação ampla da sociedade. Não houve. A cidadania era coisa de cidadãos de elite. Não se deve, porém, negar os avanços da “abertura política” apesar dos “anticlímax” – que foram variados. Florestan não os nega, porém critica a transformação que não foi. Não houve transição. Houve transação. Uma mostra clara de que nós continuamos atuando na dinâmica dos pactos e das transações atualmente, bem como das “políticas conciliatórias”, mesmo quando em bem-estar político, foi a negociação que houve em torno no PNDH-3 para criar condições à “justiça de transição”. Imagine que, mesmo com negociações, a Comissão Nacional da Verdade do Estado Brasileiro foi criada apenas em 2012. Estamos na vanguarda da ditadura e na vanguarda do atraso histórico, filosófico, jurídico. A nossa “justiça de transição” não foi. Agora, vivemos um “Depressive State” (Estado Depressivo). Agora? Que o vivemos, vivemos! Mas não é de agora (os oportunistas gostam de quando o Estado fica Deprimido e as pessoas – com certa razão – não confiam mais nas instituições). Veja o “nascimento” extemporâneo e a agonia da “Nova República” que conseguimos: • Fernando Collor de Melo foi o primeiro presidente eleito por voto direito depois de 25 anos. Ele sofreu Impeachment (não quero entrar no mérito do Impeachment); • Dilma Rousseff foi a última presidente legítima, eleita por voto no Brasil, e sofreu Impeachment. Aliás, ela foi a primeira presidente mulher. E sofreu Impeachment em razão de arranjos do Congresso Nacional para impedi-la. Também há, entre as várias leituras possíveis, misoginia no Impeachment de Dilma. Um dos principais brasilianistas em atividade é o historiador estadunidense Scott Mainwaring – que tem, entre outros textos, um artigo publicado no periódico “Lua Nova: Revista de Cultura e Política”, cujo título é: “Estado, Reformas e Desenvolvimento”. Neste texto, publicado em 1993, Mainwaring disse: “Quando os presidentes são populares, políticos de todas as colocações e matizes os apoiam, mas quando perdem popularidade frequentemente encontram dificuldade em encontrar apoio até mesmo em seus próprios partidos. Defecções em períodos de adversidade tornam difícil aos presidentes implementar medidas coerentes que poderiam redirecionar substancialmente as políticas do governo — precisamente o que é necessário em tempos de crise”. Não somente isso, mas, para o autor mencionado acima, o Brasil é um país que só se governa quando se tem a maioria no Congresso Nacional. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, de diferentes maneiras e estratégias, foram os únicos que tiveram – não sem tensões e dificuldades – a maioria no Congresso Nacional. A “frouxidão negociada” de partidos políticos brasileiros, segundo Mainwaring, produz instabilidade democrática. Mas também a “transição transada”, negociada, produziu instabilidade democrática. A instabilidade política brasileira é derivada de posições autoritárias e das negociações – das transações – realizadas de maneira equivocada: a) a ditadura militar fortaleceu um Estado de Lei sem Lei; b) as rupturas com a ditadura militar falharam e terminaram em eleições indiretas, em ausência do povo na Constituinte de 1988; c) não houve “justiça de transição” adequada – com um levantamento amplo da memória política, com a revisão da Lei de Anistia, com o julgamento dos violadores dos Direitos Humanos seguido de condenações dos responsáveis. Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional está quase todo desmoralizado – ruralistas impetuosos, crentes fundamentalistas e políticos antidemocráticos promovem uma “bolsonarização” do debate. A “Nova República” culminou, portanto, com a ocupação do espaço político pelo judiciário: alguns juízes são as estrelas do momento – como se sabe. Eles atuam no “vazio moral dos políticos”. Porque existe uma proliferação da corrupção (pauta sempre aderente às classes conservadoras), o judiciário ocupa um papel que já foi dos coronéis mandões, dos messiânicos salvadores, dos militares redentores e até dos presidentes populares: salvar o Brasil do Brasil; restabelecer a ordem; “moralizar” a nação. No entanto, criam-se mecanismos para a atuação do judiciário. Entre eles, a operacionaliza-se o “Lawfare”. Isto é – entre outras definições, do uso da lei como uma “arma de guerra” contra os adversários políticos. Por meio da relação aproximada entre promotores de justiça e juízes, bem como de beneficiários de aparatos legais que os permitem falar, impõem-se mais instrumentos de supressão, de condenação a priori, de desestabilização ética, moral, política. Associado ao “efeito mídia”, o “Lawfare” faz parecer que a palavra do corruptor tem poder de documento, de prova, e, por conseguinte, sobrepõe-se à palavra e à ampla defesa de um réu. Um levante do Estado contra o Estado para privar de Estado aqueles que querem exercer cidadania e política livre. Por lógico, os crimes devem ser apurados e punidos indistintamente. Mas não se pode mobilizar as forças – e as capas pretas do Estado – contra os opositores políticos. Não se impressione: as negociações políticas, morais e estratégicas no país são maiores do que as pérfidas, deploráveis e corrompidas negociações entre a Odebrecht e muitos. Muitos mesmo. Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil * Leandro Seawright é historiador e professor universitário. Pós-doutorando e doutor em História Social pela FFLCH/USP. Foi pesquisador da Comissão Nacional da Verdade  (CNV). É autor de diversos artigos acadêmicos e livros, entre eles “Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro”.