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A réplica rebelde ao Humanismo oferecida pelas criaturas do “Blade Runner” original recebem uma tréplica confusa e conservadora na sequência “Blade Runner 2049”. Leia na coluna de Tomaz Amorim
Por Tomaz Amorim*
AVISO: Contém revelações do enredo do filme
Se não é fácil fazer a sequência de um grande filme, menos ainda de um clássico do gênero, depois de tantos anos, como é o caso de Blade Runner (que foi analisado nesta coluna semana passada). As trilogias e sequências de fracasso compõem uma triste lista da qual, felizmente, Blade Runner 2049 não faz parte. Se não é um filme inovador, a ser relembrado nas próximas décadas, como foi o primeiro, não se trata tampouco de um fracasso ou mesmo de um filme ruim. Algumas das qualidades do primeiro se repetem com sucesso e já bastam para uma fruição prazerosa: a projeção distópica e realista da vida nas grandes cidades, a fotografia e os efeitos especiais instigantes e impecáveis, a excelente atuação, a atmosfera construída lenta e cuidadosamente, a trilha sonora envolvente e profunda, o quimerismo cultural de línguas e culturas, etc...
Mas muito também falta, principalmente em comparação com o primeiro. Seus pontos mais interessantes, aliás, são aqueles que se desenvolvem do primeiro. As tentativas de dar profundidade a partir de novos elementos infelizmente falham e acabam caindo em clichês, como as referências bíblicas do vilão Wallace, o namoro virtual do protagonista ou a frustrada relação familiar dos replicantes... O filme, que tem o dobro da duração do primeiro, acaba dizendo menos. O enredo levanta a todo tempo questões que apenas tangenciam a história principal e acabam ficando abandonados. O Grande Blecaute, a flor depositada sobre a árvore, a longa cena do monólogo patético e confuso de Wallace diante da replicante que nasce apenas para ser assassinada, os miseráveis no lixão e as crianças no “orfanato”, a eterna hipótese de que Deckard também é um replicante, o ressurgimento de vida orgânica com as abelhas, plantas e cachorro em Las Vegas, a questão das memórias reais e falsas, a rebelião replicante porvir, etc.
Todos estes elementos são interessantes por si só e poderiam dar força à narrativa se estivessem amarrados, mas acabam desaparecendo de cena da mesma maneira que entram, deixando o filme solto e, a partir de certo momento, confuso.
Nenhum filme de ficção científica pode reclamar que Blade Runner tome de empréstimo aqui e ali algumas ideias, já que ele deu tanto ao gênero. Mesmo assim, algumas apropriações são bastante reconhecíveis, o que faz com que o espectador que esperava por mais um filme de vanguarda do gênero, acabe tendo de se satisfazer com um mexidão de certos temas recentes. O romance de K. com o holograma de inteligência artificial Joy remete imediatamente à Samantha do filme Her (2012) de Spike Jonze. A tentativa do empresário Wallace de produzir replicantes que possam se reproduzir é uma repetição com menos talento dos esforços do androide David 8, interpretado brilhantemente por Michael Fassbender, em Alien: Covenant (2017). As fileiras de replicantes criados como bonecos para servir, inclusive sexualmente, lembram os androides do parque de diversões da série Westworld (2016).
Mas Blade Runner 2049 também desenvolve certas questões do primeiro filme, ainda que com alguma deficiência. O racismo leve que os replicantes sofriam no primeiro filme surge intensificado e sem disfarces nos mais diversos ambientes. Tratados como não-humanos, eles são chamados pelo termo pejorativo “skinjobs” não apenas na rua, mas também em ambientes oficiais e por colegas de trabalho. Na primeira cena em que K. entra na delegacia, ele é abertamente hostilizado pelos outros oficiais e precisa andar de cabeça baixa, o que certamente se refere à situação de negros ocupando posições oficiais nos EUA no começo do século XX. Se isso fala com o contemporâneo profundamente, por outro lado, o filme perde a chance de fazê-lo com mais profundidade, empregando atores e protagonistas negros. O silêncio do filme sobre o assunto, o estranhamento de ver apenas pessoas brancas discutindo sobre os sofrimentos da escravidão, acaba dizendo mais do que uma referência histórica no meio de um diálogo faria.
A prostituta, a líder rebelde e a menina milagre são as fracas exceções da representação feminina no filme que perde a possibilidade de tematizar a servidão a partir da situação histórica das mulheres e acaba reduzindo sua participação ao clássico papel de mãe morta ou de bonecas burocráticas, administrativas e holográficas.
Se em 2019, ano em que se passa o primeiro Blade Runner, os replicantes são uma réplica (no duplo sentido de reprodução e resposta) perigosa ao poder criador da humanidade, em 2049 esta tensão já está praticamente resolvida, com a maior parte dos modelos perigosos “aposentados” e a ampla nova maioria escravizada e submissa. O pequeno grupo de rebeldes que se mostra no fim do filme e que se organiza para uma pequena revolução parecem inofensivos em comparação com a fúria dos replicantes rebeldes liderados trinta anos antes por Roy Batty que faz diante de seu Blade Runner indefeso (o jovem Harrison Ford) o famoso discurso: “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi Raios-C brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Esta réplica grandiosa à humanidade, esta declaração de guerra, já não existe em 2049. A replicante mais interessante, única capaz de algo do tipo, é justo a que trabalha para a empresa de Wallace. O outro, K. (referência clara ao Josef K., protagonista de O Processo de Franz Kafka), não é mais um rebelde, vilão do filme, mas ele mesmo um “policial herói” que trabalha assassinando seus semelhantes. (Ryan Gosling o interpreta bem, no limite das possibilidades que oferece um personagem sem motivação própria, empurrado de um lado para o outro, de acordo com as ordens e sabotagens de que é vítima).
De rebeldes subversivos no primeiro filme, os replicantes são reduzidos ao papel de servos, ainda que com uma pálida promessa de libertação futura. A luta contra a humanidade é trocada por uma crença quase religiosa na possibilidade de gerar filhos. Os replicantes que buscavam ser “mais que humanos” se submetem agora à tentativa frustrada de mostrarem que “também são humanos”. São um tipo triste de tréplica do humanismo, regressão das potencialidades abertas pelo pós-humano. Se no primeiro Blade Runner os replicantes queriam matar o pai (e o matam), neste o solitário protagonista replicante está em busca do pai desaparecido. De um drama rebelde sobre o conflito entre gerações e sobre a própria mortalidade, à busca conservadora pela restauração da família e pelo direito à reprodução.
*Tomaz Amorim Izabel, 29, tem graduação e mestrado em Estudos Literários pela Unicamp e é doutorando na mesma área na USP. É militante da UNEAfro Brasil. Além de crítica cultural, também escreve poesia [tomazizabel.blogspot.com] e coedita o blog Ponto Virgulina de traduções literárias. Publicou traduções para o português de Franz Kafka e Walt Whitman