Pesquisadores do campo da ciência da tecnologia, redes e segurança de dados lançaram manifesto onde chamam a atenção para o fato de que "as tecnologias digitais não podem servir par ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional". Intitulado de “Programa de Emergência para a Soberania Digital”, o texto também contém propostas para a área.
"Nosso país não pode continuar tendo seu rumo tecnológico ditado pelas consultorias internacionais ligadas às Big Techs. As lutas no campo do desenvolvimento científico e digital não podem se resumir à mera garantia de alguns poucos direitos, “gentilmente” ofertados por plataformas e grandes empresas tecnológicas que se tornam a cada dia mais poderosas. A concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil", diz trecho da carta.
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Os signatários da carta afirmam que "na raiz dos arranjos de vigilância e coleta de dados, que guiam o modelo de negócio das grandes plataformas internacionais de tecnologia, estão processos de extração de conhecimentos e informações, os quais acentuam e potencializam relações de exploração do trabalho e de contratos comerciais".
"Nossas universidades, e muitas escolas, entregaram suas estruturas de informação, dados, e-mails, armazenamento de interações e documentos para empresas estrangeiras, que vivem do tratamento de dados. Este cenário é um reflexo mais imediato do desinvestimento na infraestrutura e em recursos humanos na área de tecnologia de informação, gerando um cenário de dependência crescente de corporações estrangeiras no setor. Assim, o que se entende como redução de custos na utilização de serviços, mascara funestas consequências a médio e longo prazos", denuncia o texto.
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Para os pesquisadores, tal cenário faz com que "o conhecimento e as informações produzida pelos cientistas brasileiros hoje correm pelas veias fechadas que irrigam o coração das empresas de tecnologia do Vale do Silício, colocando em grande risco a produção científica e o ecossistema tecnológico do país".
O texto também afirma que "cabe ao Brasil se inserir internacionalmente de maneira soberana, desenvolvendo de forma plena as capacidades e as potencialidades de sua população. A agenda de transformação digital brasileira precisa ser orientada ao bem-estar e ao florescimento humano de seus cidadãos, assim como ao enfrentamento da desigualdade, do racismo algorítmico e dos novos meios de segregação".
Em entrevista à Fórum, o pesquisador e professor Sergio Amadeu (UFABC), que é um dos organizadores da Carta em defesa da soberania digital, afirma que o cenário da pesquisa e ciência no Brasil é de "terra arrasada" e que o governo Bolsonaro "retirou recursos de áreas e de institutos fundamentais, além de ter reduzido drasticamente as bolsas de fomento à pesquisa e da bolsa de permanência, necessária para que os estudantes mais pobres permaneçam nas instituições de ensino superior".
Além disso, Amadeu faz questão de destacar um dado que está presente na Carta. "A extração de dados do país gera perdas econômicas que poderiam ser evitadas. Segundo relatório da consultoria RTI chamado ‘The Impact of Facebook’s U.S. Data Center Fleet 2017–2019’, para cada US$ 1 milhão em despesas de capital em data centers foram gerados US$ 954 mil adicionais em massa salarial (labor income) e US$ 1,4 milhão em PIB. Além disso, para cada US$ 1 milhão em despesas operacionais em data centers, a economia norte-americana registrou US$ 1,3 milhão adicionais na massa salarial e US$ 2,2 milhões em PIB", revela.
"É perceptível que a extração de dados da sociedade brasileira drena a base de negócios para fora do País, desprepara nossas infraestruturas digitais e enfraquece as possibilidades de treinamento de modelos de aprendizado de máquina controlados por empreendedores e organizações brasileiras", diz Amadeu reforçando trecho da Carta.
Amadeu também disse à Fórum que a Carta será entregue à Fundação Perseu Abramo e à coordenação da campanha de Lula à presidência da República.
Além de Sergio Amadeu, também assinam a carta Marta Kanashiro (Unicamp), Carlos Vogt – Unicamp (ex-reitor e ex-presidente da Fapesp), Rafael Evangelista (Unicamp), Ivana Bentes (UFRJ), Beatriz Tibiriçá (Coletivo Digital), Eugenio Trivinho (PUC-SP), André Lemos (UFBA), Laymert Garcia dos Santos (Unicamp), Anna Bentes (LAVITS), Fábio Malini (UFES) e outros pesquisadores de todo o Brasil.
O grupo também articula entregar o Programa ao ex-presidente Lula.
Confira abaixo a íntegra do Programa de Emergência para a Soberania Digital, que pode ser assinado clicando aqui.
“AO CANDIDATO LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
PROGRAMA DE EMERGÊNCIA PARA A SOBERANIA DIGITAL
As tecnologias digitais não podem servir para ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional.
Nosso país não pode continuar tendo seu rumo tecnológico ditado pelas consultorias internacionais ligadas às Big Techs. As lutas no campo do desenvolvimento científico e digital não podem se resumir à mera garantia de alguns poucos direitos, “gentilmente” ofertados por plataformas e grandes empresas tecnológicas que se tornam a cada dia mais poderosas. A concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil.
Dados sensíveis e de grande valor econômico de diversos segmentos da nossa população não podem continuar sendo extraídos do país para alimentar os sistemas algorítmicos das grandes plataformas digitais, que os utilizam para nos vender produtos e serviços em condições assimétricas e abusivas. Na raiz dos arranjos de vigilância e coleta de dados, que guiam o modelo de negócio das grandes plataformas internacionais de tecnologia, estão processos de extração de conhecimentos e informações, os quais acentuam e potencializam relações de exploração do trabalho e de contratos comerciais.
Nossas universidades, e muitas escolas, entregaram suas estruturas de informação, dados, e-mails, armazenamento de interações e documentos para empresas estrangeiras, que vivem do tratamento de dados. Este cenário é um reflexo mais imediato do desinvestimento na infraestrutura e em recursos humanos na área de tecnologia de informação, gerando um cenário de dependência crescente de corporações estrangeiras no setor. Assim, o que se entende como redução de custos na utilização de serviços, mascara funestas consequências a médio e longo prazos. O conhecimento e as informações produzida pelos cientistas brasileiros hoje correm pelas veias fechadas que irrigam o coração das empresas de tecnologia do Vale do Silício, colocando em grande risco a produção científica e o ecossistema tecnológico do país.
É preciso romper com a crença neoliberal de que não importa mais ser desenvolvedor e inventor de tecnologias, de que o importante é ser um bom comprador de serviços e produtos. Cabe ao Brasil se inserir internacionalmente de maneira soberana, desenvolvendo de forma plena as capacidades e as potencialidades de sua população. A agenda de transformação digital brasileira precisa ser orientada ao bem-estar e ao florescimento humano de seus cidadãos, assim como ao enfrentamento da desigualdade, do racismo algorítmico e dos novos meios de segregação.
Não podemos nos contentar com o bloqueio tecnocientífico de nossas capacidades criativas. Temos que colocar no centro de nossa proposta a expansão da tecnodiversidade, da luta contra o epistemicídio, do desbloqueio da inventividade de nosso povo.
Temos consciência da profunda crise que assola o país e dos desafios orçamentários diante da política de terra arrasada implementada pelo governo atual.
Por isso, propomos algumas poucas, mas imprescindíveis medidas que atuem nesse cenário, com o efeito de energizar e potencializar nossos arranjos tecnocientíficos voltados ao digital:
1- Criar uma infraestrutura federada para a hospedagem dos dados das universidades e centros de pesquisa brasileiros conforme nossa LGPD.
2- Formar, nessa infraestrutura federada, frameworks para soluções de Inteligência Artificial, seja para o setor público ou privado.
3- Incentivar e financiar a criação de datacenters que envolvam governos estaduais, municípios, universidades públicas e organizações não-governamentais, que permitam manter dados em nosso território e aplicar soluções IA que estimulem e beneficiem a inteligência coletiva local e regional.
4- Promover a instalação, no MCTI, de equipes multidisciplinares para a prospecção de tecnologias e experimentos tendo como princípios a tecnodiversidade e em busca de promover avanços em áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. Em articulação com o MEC, promover também a formação de recursos humanos criando mecanismos para que permaneçam no setor público de maneira a nos afastar da dependência das grandes corporações.
5- Incentivar e financiar a criação de arranjos tecnológicos locais para desenvolver soluções que visem superar a precarização do trabalho trazidas pelas Big Techs.
6- Garantir recursos para apoiar e financiar a criação de cooperativas de trabalhadores, que possam desenvolver e controlar plataformas digitais de prestação de serviços, assim como outros arranjos que evitem a concentração de poder tecnológico, tanto em empresas estrangeiras como nacionais.
7 – Lançar um extenso programa interdisciplinar de formação, inclusive ética, e de permanência de cientistas e técnicos, implantando e financiando centros de desenvolvimento para a criação e desenvolvimento de soluções de IA, de automação, robótica, computação quântica, desenvolvimento local de chips, redes de comunicação de alta velocidade entre outros.
8 – Utilizar o poder de compra da União para incentivar o atendimento das necessidades tecnológicas do país, bem como fomentar soluções interoperáveis com software livre, e outras formas abertas de desenvolvimento e compartilhamento de tecnologia.
9 – Resgatar e recuperar a Telebras, organizando um levantamento dos bens reversíveis que estão subvalorizados e em poder das teles e implementando uma política de redução das assimetrias e desigualdades digitais. Esta pode ser feita em parcerias de modo coordenado com estados, municípios e organizações não-governamentais, com tecnologias consolidadas mas também desenvolvendo opções de conexão inovadoras.
POR QUE DEFENDEMOS ISSO?
A extração de dados do país gera perdas econômicas que poderiam ser evitadas. Segundo relatório da consultoria RTI chamado ‘The Impact of Facebook’s U.S. Data Center Fleet 2017–2019’, para cada US$ 1 milhão em despesas de capital em data centers foram gerados US$ 954 mil adicionais em massa salarial (labor income) e US$ 1,4 milhão em PIB. Além disso, para cada US$ 1 milhão em despesas operacionais em data centers, a economia norte-americana registrou US$ 1,3 milhão adicionais na massa salarial e US$ 2,2 milhões em PIB. É perceptível que a extração de dados da sociedade brasileira drena a base de negócios para fora do País, desprepara nossas infraestruturas digitais e enfraquece as possibilidades de treinamento de modelos de aprendizado de máquina controlados por empreendedores e organizações brasileiras.
Atualmente, segundo pesquisa do Observatório Educação Vigiada, 79% das Instituições Públicas de Ensino Superior do país têm seus e-mails institucionais alocados em servidores privados, localizados fora do país, e que são gerenciados por empresas envolvidas no lucrativo mercado de coleta, análise e comercialização de dados pessoais. A Google (Alphabet, Inc.), o maior player desse mercado, armazena 72% dos e-mails institucionais das universidades públicas do país.
Nós acreditamos que esse cenário aponta para uma situação de extrema vulnerabilidade em relação à segurança da produção científica e tecnológica do Brasil. A maior parte das comunicações acadêmicas e de pesquisa produzidas nas instituições públicas brasileiras estão em data centers fora de seu controle institucional, boa parte nos Estados Unidos da América, alimentando um sistema de inteligência e lucros a partir de análise de dados que fragilizam nossa soberania e a própria autonomia universitária.”