LAUDÊMIO

Petrópolis: A taxa imoral paga à “família imperial” numa cidade enterrada na lama

O laudêmio, cobrança sobre transações imobiliárias revertida para descendentes de Dom Pedro II, é uma aberração em plena República, proclamada há mais de 132 anos. Enquanto isso, Petrópolis conta seus mortos

Família imperial do Brasil e resgate de vítimas do temporal em Petrópolis (Wikipédia e Agência Brasil).
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A cidade de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, conta os mortos de sua última tragédia provocada pelas chuvas. Já são 122 moradores e moradoras que perderam a vida no dilúvio que fez o local histórico se esfacelar na última terça-feira (15) e o número oficial de desaparecidos saltou para 218. A referência “última” tragédia não é à toa, já que o município acumula desastres causados por enxurradas, ano após ano, muito por conta da precariedade da infraestrutura urbana local.

Sempre que ocorrem chuvas torrenciais e fatais na conhecida cidade encravada no meio das serras, políticos locais, estaduais e até federais correm para anunciar medidas, liberação de recursos e fazem promessas de melhorias, que nunca saem do papel. Mas por outro lado, tem gente que segue sendo beneficiada com dinheiro da população e por meio de um mecanismo absurdo e totalmente anacrônico.

O laudêmio, espécie de taxa paga por quem compra imóveis em grande parte da área onde está localizada Petrópolis, que equivale a 2,5% do valor do imóvel negociado, abastece os cofres dos descendentes da família imperial brasileira. Sim, você não leu errado. Depois de mais de 132 anos de República, cidadãos brasileiros que adquirem uma casa, ou um comércio, no perímetro mais central do município fluminense têm que dar parte do dinheiro a membros de uma dinastia de origem portuguesa que um dia foi "dona" do país numa monarquia tropical adaptada que durou 67 anos, no século XIX.

A relação do lugar com os Orleans e Bragança começa logo após a Independência. Dom Pedro I já havia estado por aquelas bandas em fazendas de colonos e, décadas depois, seu filho, o imperador Dom Pedro II, determinou por decreto a instalação de uma colônia de alemães por lá, assim como a construção de uma cidade planejada, inclusive com um Palácio Imperial, que existe até hoje e é uma das principais atrações históricas e turísticas de Petrópolis. Atualmente, os herdeiros da “coroa” têm até uma empresa que administra os ganhos com a taxa, a Companhia Imobiliária de Petrópolis.

O termo laudêmio não é específico para a taxa revertida aos nobres da antiga coroa brasileira, mas sim uma palavra genérica muito antiga que no caso do Brasil contemporâneo também se aplica a contribuições obrigatórias por lei destinadas, por exemplo, à Marinha, ou seja, à União, ou então à Igreja Católica.

“O laudêmio, como conceito, vem desde o tempo do Brasil Colônia, quando a Coroa Portuguesa percebe a necessidade de povoar as terras. Ocorre que para conseguir recursos ela passa a cobrar uma espécie de contribuição no momento de negociação das terras”, explicou o historiador Marcelo Cardoso da Silva, professor há mais de 20 anos em cursos preparatórios pré-vestibulares do Estado de São Paulo e formando na Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Mas por que uma previsão legal tão obsoleta, absurda e sem sentido segue em vigor no Brasil? Cardoso esclarece que há aí uma série de fatores que, combinados, permitem que a taxa absurda siga sendo paga pelos cidadãos de um regime republicano a representantes de uma monarquia abolida há mais de um século.

“O que ocorre é uma mistura de direito adquirido com falta de vontade de mexer com instituições que ainda têm uma força dentro dos meios políticos. Existe uma estrutura criada e que vai permanecendo até que haja uma vontade legislativa para interromper. O caso é que hoje existem centenas de ações judiciais que questionam a legalidade deste tributo”, disse o historiador.

Questionado se, como profissional da História, se indigna com uma cobrança esdrúxula e injusta como o laudêmio revertido a uma dinastia sem trono e sem coroa, Cardoso vai além.

“Acho que mais do que como historiador, como cidadão isso é um absurdo. Essa taxa é uma espécie de obrigação feudal como a ‘corveia, talha e banalidades’. Serve apenas a alguns grupos como igreja Católica e uma família real que não contribuem em nada com o país, mas que o exploram por uma razão de costumes, sem serem incomodados”, compara o professor.

Vereador também não se conforma

O vereador de Petrópolis Yuri Moura (PSOL), que nos últimos dias tem auxiliado nos trabalhos de resgate e recuperação do munícipio após as fortes chuvas, igualmente se mostra inconformado com a descabida taxa que garante grandes ganhos financeiros a descendentes longínquos de um clã monárquico que não existe mais na forma da lei desde 15 de novembro de 1889.

“Nós somos absolutamente contrários a essa cobrança, que além de tudo é injusta. Esse é um privilégio da família imperial em Petrópolis, o que em si já é um absurdo, uma vez que nós vivemos numa República, numa democracia, em construção, é claro, só que não é possível aceitarmos esse tipo de injustiça, muito menos quando ela acaba impactando nas transações imobiliárias de Petrópolis, que muitas vezes faz com que as pessoas percam parte do seu patrimônio com isso. Se levarmos em consideração o contexto de especulação imobiliária que existe, o laudêmio é um elemento que contribui ainda mais nesse processo”, protesta Moura.

Sobre a existência de alguma matéria na Câmara Municipal petropolitana para tratar do assunto, o vereador esclarece que há medidas relacionadas ao tema, mas não sobre a extinção da contribuição obrigatória, já que esse é um assunto de natureza federal.

“Na Câmara Municipal de Petrópolis, no final do ano passado, nós aprovamos uma lei municipal que altera o uso da terra nua, então, dessa maneira, a gente acaba conseguindo interferir no valor que será cobrado pelo laudêmio. Porém, esse instrumento do laudêmio precisa ser derrubado por leis federais, por decisões também de tribunais federais. Infelizmente, em nível municipal nós não temos poder para pôr fim a essa injustiça”, explicou o parlamentar. De fato, há vários PL's em tramitação no Congresso Nacional tentando acabar com a farra do laudêmio e de todos os beneficiados, sejam públicos ou privados, e a mais nova das propostas é o Projeto de Lei 553/2020, de autoria do deputado federal Rogério Correia (PT-MG).

Moura diz que a percepção de que a taxa é absurda e anacrônica é generalizada entre os moradores de Petrópolis, que se sentem, em grande maioria, explorados e subtraídos quando precisam vender ou comprar um imóvel na cidade.

“A sociedade petropolitana tem uma posição muito bem definida quanto a isso, e é majoritariamente contrária ao laudêmio, é óbvio. Todos têm consciência que esse mecanismo colabora para aumentar a especulação imobiliária da cidade e isso, naturalmente, contribui nessas tragédias que nós vivemos e o Brasil inteiro vê. Há espaço pra construir casa pra rico, mas não há espaço para construir casa para pobre e para dar infraestrutura digna para o povo, pro trabalhador. Tem laudêmio, mas ninguém faz nada por uma política de moradia decente”, concluiu.