ASSISTÊNCIA SOCIAL

Governo Lula corta verbas para comunidades terapêuticas

Deputada Sâmia Bomfim celebra medida que atende a pedido de mais de cem organizações de saúde mental e ativistas anti-manicomial por alterações na política de saúde mental do governo

Créditos: Agência Brasília (Andre Borges) - Comunidade Terapêutica no Distrito Federal; modelo está na berlinda
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O governo Lula decidiu cortar fundos destinados às comunidades terapêuticas que lidam com dependentes químicos. Os registros dessas entidades devem ser cancelados dentro de 90 dias pelas autoridades estaduais e municipais.

A resolução que coloca essas entidades na berlinda foi divulgada na semana passada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), ligado ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) celebrou a medida pelas redes sociais. Em postagem nesta segunda-feira (29) no X (antigo Twitter), ela destacou a decisão do CNAS de não reconhecer as chamadas comunidades terapêuticas como organizações de assistência social.

Com a essa decisão, essas entidades, que Sâmia classifica como "verdadeiros manicômios contemporâneos" não podem mais receber financiamento por meio dos recursos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

"Há tempos, venho denunciando ao lado dos movimentos da luta antimanicomial, ativistas e pesquisadores da pauta da saúde mental, médicos, psicólogos, assistentes sociais e usuários do SUS [Sistema Único de Saúde] e do SUAS, o crescimento no número dessas instituições em todo território nacional, bem como das denúncias gravíssimas de violações de direitos humanos que parecem inerentes às CTs", escreveu a parlamentar.

Sâmia observa ainda que essas comunidades terapêuticas, supostamente destinadas ao tratamento de dependência química, são em geral vinculados a instituições religiosas, e não contam com profissionais capacitados e comprometidos com a ciência.

"Dentre as denúncias, são relatadas violações gravíssimas: trabalho forçado, ameaças, abstinência compulsória, tortura física, conversão religiosa impositiva", elenca.

A deputada comenta que durante o governo Bolsonaro foram criadas cerca de 5 mil unidades em todo o país, gerando um custo de quase R$ 1 bilhão à União, na contramão do fortalecimento do SUS, do SUAS, e da Rede de Atenção Psicossocial.

Já no governo Lula, compara a deputada, ao lado dos colegas de bancada na Câmara Fernanda Melchionna (RS), Glauber Braga (RJ) e Pastor Henrique Vieira (RJ), lutou contra a criação do "Departamento de Apoio a CT's", que atendia ao lobby dos fundamentalistas.

"Vocalizamos também a necessidade de interromper qualquer financiamento público às Comunidades Terapêuticas e pautamos, inclusive, ampliação da fiscalização dos crimes cometidos contra pacientes. Essa é uma vitória importante do fortalecimento da rede pública de saúde e assistência social, na garantia de direitos. Mas, acima de tudo, é fundamental que o Ministério do Desenvolvimento Social e o governo federal se comprometam a cumprir a resolução CNAS", afirma.

Na postagem, Sâmia faz referência à matéria veiculada pelo jornal O Globo na última sexta-feira (26) que registra da decisão do CNAS.

Entenda o contexto da decisão

Em agosto de 2023, mais de cem organizações de saúde mental e ativistas anti-manicomial, representando a delegação da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, redigiram uma carta-manifesto endereçada ao presidente Lula.

O coletivo exigiu alterações na política de saúde mental do governo em vigor, que continuava financiando comunidades terapêuticas, um modelo apoiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), mas contestado por psiquiatras devido à sua eficácia questionável no tratamento e violações de direitos.

Durante a entrega da carta-manifesto a Lula, o MDS estava financiando 14.948 vagas através de 602 entidades em todo o país.

Um artigo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2017, revelou que 82% das comunidades terapêuticas relataram ter vínculos com igrejas e organizações religiosas, com 40% delas sendo pentecostais e 27% católicas. A leitura da Bíblia era uma atividade diária obrigatória em 89% das comunidades, enquanto a prática de oração e a participação em cerimônias religiosas eram deveres em 88%.

Esse texto do Ipea mostra ainda que essas CTs representam um dos modelos de cuidado a pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas, presentes não só no Brasil, mas em diversos outros países.

Tal modelo desenvolveu-se e disseminou-se a partir de iniciativas da sociedade civil, muitas vezes articuladas a organizações religiosas.

As CTs configuram-se como residências coletivas temporárias, nas quais indivíduos que têm problemas associados ao uso de drogas devem ingressar voluntariamente, e ali permanecer por períodos de nove a doze meses, em total abstinência de quaisquer substâncias psicoativas e afastados de todas as suas relações sociais prévias.

A partir de sua entrada nestas residências, estes indivíduos passam a conviver entre um conjunto de pares (pessoas que igualmente têm problemas com drogas), realizando diversas atividades supostamente terapêuticas, sob a orientação e a vigilância de monitores
(pessoas que já passaram pelo mesmo tratamento e, ao serem bem-sucedidas, começam a cuidar dos novos internos).

Tortura e trabalho análogo à escravidão

Também em 2017, o Ministério Público Federal (MPF), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) realizaram inspeções em 28 unidades de CTs, distribuídas por 11 estados e no Distrito Federal.

Naquela ocasião, foi documentada a falta de eficácia do tratamento e as violações de direitos nesse modelo. Também foi constatada uma série de problemas, incluindo internações forçadas e não documentadas, instalações precárias, más condições de higiene, suspeitas de trabalhos forçados, intolerância religiosa, homofobia e até mesmo indícios de sequestro e cárcere privado com o consentimento da família.

As inspeções deram origem ao Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, lançado em 2018. Leia aqui.

Dilma criou e Temer e Bolsonaro turbinaram comunidades terapêuticas

A contratação pelo governo federal de vagas em comunidades terapêuticas, localizadas geralmente em áreas afastadas dos centros urbanos e que se baseiam na abstinência e no trabalho forçado como método de "cura", teve início em 2010, durante o primeiro ano do governo Dilma 1 como parte do programa "Crack, é possível vencer", do Ministério da Justiça.

Durante os governos de Michel Temer e, especialmente, de Bolsonaro, essa política pública foi expandida. Em 2020, mais de 27 mil pessoas foram acolhidas nessas comunidades, representando um investimento de mais de R$ 130 milhões naquele ano.

Apesar de discursos contrários ao modelo de tratamento e de revogações, especialmente por parte do Ministério da Saúde, a gestão Lula levou mais de um ano para retirar o financiamento público das comunidades terapêuticas.

Embate de modelos de tratamento

Em janeiro do ano passado, após abolir a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministério da Cidadania, o governo Lula estabeleceu o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas.

Meses depois, em maio, o nome foi alterado para Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (Depad). Esse departamento, vinculado ao MDS, tinha como objetivo principal a redução da demanda por drogas e recebeu uma verba orçamentária de R$ 273 milhões.

Sete meses depois, o MDS emitiu uma portaria que estabelecia a ampliação do número de acolhimentos em Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas contratadas pelo Governo Federal até 2026.

O incentivo ao acolhimento também foi contemplado no Plano Plurianual (PPA), apresentado por Lula em agosto, evidenciando o embate político dentro do governo entre os setores que apoiam o investimento nos equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e os que defendem o modelo das comunidades terapêuticas, cujo lobby está principalmente associado à bancada evangélica no Congresso Nacional.