VIDA MARCADA

Na infância ele foi abusado por alguém como José Dumont: “Expor essa história é uma cura"

Claudio Rabelo, carioca de 50 anos, contou à Fórum o drama de uma existência marcada pelos estupros sofridos quando ainda era uma criança. Caso envolvendo o consagrado ator retomou o tema na sociedade

Créditos: Arquivo pessoal
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O Brasil foi surpreendido há poucos dias com um rosto famoso e respeitado diante de um painel da Polícia Civil do Rio de Janeiro, algemado e transmitido por todos os programas policialescos do fim de tarde. Era o ator José Dumont, artista consagrado na TV e cinema nacionais, com quase uma centena de atuações em filmes, séries e novelas. A acusação? Pedofilia, estupro de vulnerável e armazenamento de pornografia infantil. Suas vítimas seriam meninos pequenos, pré-adolescentes.

Não há alguém que diga que este tema não é um dos mais debatidos e abordados na sociedade, mas ver uma figura famosa e profundamente reverenciada profissionalmente sendo acusada de um crime tão atroz causou espanto em grande parte das pessoas. No entanto, registros da polícia e da Justiça mostraram que Dumont já vinha sendo apontado como autor de delitos semelhantes desde 2009.

O abuso sexual de meninos, tão grave e repugnante quanto o abuso cometido contra meninas, revela uma face problemática adicional: o tabu e o estigma. É evidente que uma vítima do sexo feminino está tão indefesa, apavorada e desesperada quanto um garoto, mas nos casos destes últimos, a sociedade marcadamente machista e heteronormativa impõe mais um obstáculo para que esses dramas devastadores sejam denunciados e resultem na prisão e punição de seus dantescos perpetradores.

Diante do caso de José Dumont, que novamente reacende as discussões sobre a prevenção, denúncia e a dureza necessárias à lei aplicada nas ações penais contra esses criminosos, um brasileiro comum, com uma história muito semelhante e que vem sofrendo há décadas pelos escombros emocionais e psíquicos deixados pela violência sexual, resolveu expor de forma definitiva todos os seus fantasmas.

À Fórum, o homem que carrega as marcas de devastação deixadas pelos estupros e abusos sofridos desde a infância resolveu fazer um relato visceral, dramático e minucioso de tudo que passou na vida em decorrência desses crimes cometidos contra ele, considerando sua iniciativa de falar como “uma cura”.

“Meu nome é Claudio Rabelo, sou projetista de construção civil, artista plástico e cênico. Eu nasci quando minha mãe era uma adolescente de 15 anos, em 1971, no Rio de Janeiro. Ela era de origem humilde e pobre. Minha vida até 1979 era feliz. Era uma época de infância sem internet e com crianças brincando nas ruas com outras crianças. Minha mãe foi mãe solo, já que meu pai abandonou a família e nos deixou desamparados. Agora, pense em como foi isso numa época em que uma adolescente grávida e sozinha era vista com maus olhos por todos, vista como uma mulher de vida fácil. Ela trabalhava honestamente para nos sustentar e enfrentou todo aquele machismo das décadas de 70 e 80”, começou dizendo.

Rabelo conta como era sua vida, desde o nascimento, até o momento em que esses episódios de violência sexual começaram a ocorrer e alteraram para sempre sua existência.

“Tudo ia bem normal na minha vida até março de 1979. Eu ficava com meu irmão, onze meses mais novo, na casa da minha avó, que era quem cuidava da gente, além de dois irmãos da minha mãe, enquanto minha mãe estava no trabalho. Um dia eu voltei da escola e fui pra casa da minha vó e lá só estava um dos meus tios, que já faleceu, vítima de câncer. Eu, inocentemente, aos 9 anos, vi uma revista em preto e branco em cima da penteadeira. Por não saber do que se tratava o conteúdo, fui mexer e me deparei com cenas de sexo. Era contada uma história e tal, mas nesse momento meu tio chegou e me viu com a revista na mão. Foi então que ele começou a me explicar o que ‘acontecia’ ali, porque eu não tinha a menor noção. ‘Você tá vendo essa piroca, vê como sai um leitinho de dentro dela, vou te mostrar como isso acontece’... E aí ele pegou a minha e pôs em seu pênis, que já estava duro. E relutei, mas ele fez chantagem emocional e dizia que eu ia gostar daquilo e que aquilo daria muito prazer pra ele. Eu só me lembro que ele pegou um liquido viscoso e banhou minha mão e seu pênis. Ele se contorcia de prazer... Antes de ir para casa, onde morava com minha mãe e meu irmão, ele me recomendou não falar nada, porque minha mãe iria ficar brava comigo e com ele, e isso o deixaria triste, e tudo seria culpa minha”, acrescentou.

Ainda confuso e desorientado com o que havia lhe sucedido, Rabelo relembra que aquela fora apenas a primeira sessão de violência sexual, já que o crime se estenderia por muito tempo.

“No dia seguinte, quando ficamos sozinhos outra vez, repetiu-se a cena, mas ele desta vez ele me mostrou na revista uma imagem de penetração anal. Dizia que eu ia gostar daquilo e que ele ficaria muito feliz: ‘Você tem uma bunda bonita e gostosa, quando bate a luz fico louco de tesão’ eram as coisas que ele falava... Senti dor e tristeza, mas já estava dominado pelos fatos. O tempo foi passando e as cenas de abusos continuavam, sempre com ameaças de culpa ou chantagens de não falaria mais comigo. As consequências chegaram e não demorou muito. Um ano após o ocorrido inicial, minha mãe foi chamada na escola pela diretora, eu não fazia a mínima ideia do porquê. Na reunião com ela, a diretora que já havia conversado comigo sobre minhas notas baixas e meu comportamento de isolamento, sugeriu que eu pudesse estar passando por abusos. Ao chegar em casa fui indagado, fui pressionado por minha mão e minha vó. Na minha mente eu era o culpado, poderia prejudicá-lo. Fui pressionado e não revelei o abuso, que continuou dos 9 até aos 12 anos. Nesse período desenvolvi a mania de me masturbar várias vezes por dia. Me tornei um pré-adolescente triste. Eu começava a ter entendimento dos fatos, mas não tinha coragem ou força para revelar a ninguém”, relembrou.

A vida da família se alteraria em seguida, já que a mãe se mudaria com os dois filhos para uma outra localidade. O então menino acreditou que estaria livre daquela verdadeira tortura, mas seu trágico pesadelo duradouro ainda entraria numa fase pior, agora com um novo algoz.

“Nesse período, minha mãe teve que se mudar e fomos para o bairro de Piedade, para um sobrado, próximo à Açúcar União, na rua Assis Carneiro. Lá conheci um homem que tinha uma oficina de ourives. Ele fez amizade com nossa família e eu me aproximei bastante dele. Achava lindos os cordões e alianças que ele produzia em sua oficina. Percebendo meu interesse, ele me convidou para ser aprendiz. Era 1984 eu já tinha 13 anos. Pedi autorização a minha mãe e ela achou uma boa ideia. Comecei então a aprender o oficio. Tinha uma bancada onde eu e um outro menino, que também era aprendiz, trabalhávamos. Um dia, quando eu já estava quase um ano na oficina trabalhando, eu morava ao lado do lugar e às vezes passava um pouco do horário, esse homem me chamou e disse que percebia que eu tinha uma tristeza no olhar e na alma. Ele, então, num outro dia, começou a me dar atenção, depois do horário de trabalho, e perguntou o porquê de minha tristeza. Eu então revelei que meu tio abusava de mim e ele teve empatia, me abraçando na hora e conversando comigo. Ele falou que não tinha nada demais nisso, que não era pra eu me sentir culpado, porque outros meninos faziam a mesma coisa por aí... Passado uns dias, ele me chamou pra ver um filme na TV depois do horário do serviço e eu aceitei. Sentei na beira da cama, mas passado alguns minutos aquele homem começou a me alisar, dizendo que queria brincar comigo, que eu era bonito e atlético, e que seria bom pra mim seu brincasse com ele na cama. Mais uma vez, comecei a sofrer abusos sexuais, com caricias e penetração. Ele falava que era gostoso fazer sexo anal comigo porque a namorada dele reclamava muito e não fazia”, disse Rabelo, revisitando suas dores emocionais.

Com os estupros em marcha e cada vez mais intensos, o hoje artista plástico e cênico conta que o sofrimento e a tristeza permaneciam e cada vez mais tornavam-se indisfarçáveis.

“Durante pelo menos dois anos ele abusou e depois eu mesmo me afastei, pois tinha tristeza era enorme dentro de mim. A idade e o entendimento foram me dando noção do abuso e acabei me isolando socialmente. Tinha dificuldade para entender o que eu era sexualmente, pois sentia atração por garotas e isso me dava um conflito angustiante e depressivo. Após esse período mantive os orgasmos compulsivos que aprendi serem o ‘normal’. O vicio por sexo tomava conta da minha mente e alma. Só que todas as vezes que eu tinha um orgasmo me masturbando, depois, parecia uma punição quando acabava. Depois nos mudamos de novo, agora para o bairro de Vista Alegre, onde dividíamos um apartamento com uma tia de consideração, irmã do meu padrasto. Foi uma época de guerra psicológica, já que as consequências dos traumas estavam instaladas na minha mente. Apesar de continuar os estudos, me isolava totalmente e tinha um olhar triste, que era visível. Muitas vezes, o tempo todo, eu era questionado por isso”, explicou.

A religião e a crença em Deus, em certo momento, diante de tantas agruras, serviram como um apoio e Rabelo admite que inicialmente tudo isso o confortou. No entanto, as recaídas eram ainda mais fortes e um dia ele se viu vivendo nas ruas.

“Nessa fase da vida conheci a doutrina espírita, com a qual eu me identifiquei muito, pois acolhia meus sofrimentos e desgraças e me tornava mais forte psicologicamente. Só que não durou muito, já que aquela tristeza voltou e se instalou como uma grande depressão. Um dia resolvi que não queria mais viver então tomei muitos calmantes na esperança de morrer. Fiquei muito mal e fui levado para o hospital. Quando cheguei, totalmente dopado, confessei para a médica o que tinha feito e ela imediatamente ela mandou fazer uma lavagem estomacal. Foi uma fase horrível de minha vida, eu tinha que procurar um sentido para voltar a viver, mas o fundo do poço ainda estava longe de ser alcançado. Algum tempo depois, me desprendi do mundo material e resolvi que iria viver nas ruas. Achava que era um voto de pobreza, então me enrolei num lençol branco e fui morar na Floresta da Tijuca. Levei algum dinheiro e comida, conheci outros moradores e comecei a catar coisas nas ruas para vender e sobreviver. Minha mente estava destruída”, prosseguiu.

Ele estava sempre sozinho com seu problema. Não poder revelá-lo era o que mais o fazia piorar. Sem apoio profissional e esgotado, Rabelo tinha dúvidas até mesmo sobre sua orientação sexual, já que se sentia atraído por mulheres, ainda que não conseguisse traçar um paralelo com tudo aquilo que havia vivenciado de forma traumática até então.

“Passaram-se anos e eu tive que sair desse buraco sozinho. Não tinha ajuda médica. Minha mãe não entendia o que se passava e eu não tinha coragem de revelar tudo que acontecera até aquele dia. Às vezes achava que tinha conseguido, mas a solidão era profunda demais e não percebia a depressão tomar conta de mim. Em 1992, eu conheci uma garota no trem, quando voltava de uma ida ao quartel para resolver minha situação no Exército, no alistamento militar, ainda que eu nunca tenha servido. Fiquei encantado pelo sorriso dela e criei coragem para abordá-la. Marcamos um cinema. Foi ali que entendi que eu gostava de me relacionar com mulheres, mas as consequências dos abusos e relações sexuais forçadas que eu tive eventualmente com aqueles homens já estavam impregnadas em minha mente e alma. Fiquei muito mal em outros momentos nos anos seguintes e tentei suicídio de novo”, contou.

Já com mais de 30 anos, ele voltou a estudar, iniciou uma nova carreira, constituiu uma família, mas os esqueletos continuavam no armário, o que só alimentava ainda mais a tristeza e a sensação de fundo de poço.

“Voltei a estudar em 2004 e passei para o Cefet-RJ, para fazer um curso técnico de construção civil. Estudei e me formei com louvor, em 2007. Fiz estágio em uma empresa que estava projetando uma refinaria, a Abreu e Lima, ganhei um bom dinheiro. Parecia que tudo estava sob controle, mas durante o projeto, era nítido que eu havia desenvolvido um déficit de atenção, era inquieto e não tinha paciência com outros colegas. Mesmo trabalhando, o passado me incomodava e me sentia triste, cansado. Com tempo a depressão voltou, mesmo aos 40 anos, e comecei a desenvolver um sentimento de culpa e baixa autoestima, tudo isso vivendo um relacionamento. Eu já estava casado, tinha dois filhos...”, lembrou.

O tempo passava, Rebelo já tinha passado dos 40 anos, e mesmo casado e com a vida profissional a todo vapor, a depressão e a agonia patológica o dominavam. Ele já não acreditava que aquele cenário mental pudesse melhorar.

“Foram aparecendo complicações no casamento e minha depressão voltou, e forte. O passado ainda me atormentava, mas não imaginei que iria mergulhar nos traumas outra vez. Comecei a idealizar mais um suicídio, me sentia fracassado, inferior, muito infeliz. Isso tudo já aos 45 anos, e foi então que resolvi pedir ajuda a uma médica que era amiga de minha esposa. Pedi sigilo e ela concordou. Contei minha vida e que precisava de um psicólogo e psiquiatra porque uma das consequências do abuso sexual na minha infância e adolescência foi fibromialgia. Eu tenho muitas dores em todo corpo, cansaço e depressão pós-traumática. Essa médica me indicou para uma reumatologista que identificou a doença e então começamos o tratamento. Essas dores eu já sentia com 15 anos, mas não dava muita importância achava que era poliartrite. Só que foram piorando”, recordou.

E quem diria que, por conta da pandemia, que tanto sofrimento trouxe a quase todos os seres humanos da Terra, uma iniciativa iria dar início a um processo de libertação, de corpo e alma, de uma tortura que o acompanhava desde tenra idade.

“Quando a pandemia chegou, eu decidi ajudar um grupo de pessoas idosas. Elas não tinham ninguém. Eu usava máscara e um carro emprestado, que pertencia a um dos idosos. Fazia mercado, feira, sacolão, todos os dias praticamente, no pico da Covid-19. Algumas pessoas me perguntavam por que eu me arriscava por esses idosos, já que eles estavam em idade avançada e eu não deveria pôr em risco minha vida. Só que ao meu ver, esses idosos davam tanto valor ao pouco de vida que ainda lhes restavam que isso disparou um gatilho em mim... Resolvi pôr um fim ao meu passado, percebi que não era para enterrá-lo, mas sim expor a minha história, só assim poderia haver uma cura... Foi então que retornei à casa onde eu havia sofrido os abusos sexuais e para minha surpresa está para alugar... Um morador do lado me informou que seu proprietário ainda era o homem que abusou de mim, do meu estuprador. Eu fiquei eufórico, vi naquela oportunidade uma chance de procurar ajuda no Ministério Público, na Justiça, mas aos pesquisar descobri que o crime já havia prescrevido. Mesmo assim eu gerei um protocolo pedindo reparo por danos psicológicos”, contou, com satisfação.

Rabelo explicou que resolveu inicialmente contar seu drama nas redes sociais, e agora expô-lo à Fórum, para que essa cura fosse completa. O caso envolvendo José Dumont também foi um marco, já que com uma nova exposição sobre o assunto, mais vítimas podem tomar a iniciativa de denunciar seus estupradores e abusadores.

“A partir daí, achei que deveria expor minha história nas redes sociais, pois poderia ajudar outros homens que foram abusados, assim como eu... Comecei a fazer ativismo pelo Twitter... Se eu conseguisse levar esse pedófilo à Justiça, claro, seria muito importante para minha cura emocional, mas isso não será possível. Então, expor isso publicamente, converteu-se assim num ato de cura” para mim, concluiu.