A "piada" de Léo Lins sobre uma criança do Ceará com hidrocefalia e que motivou sua demissão do SBT pode ser interpretada como crime, previsto no artigo 88 da Lei 13.146/2015, que trata sobre os direitos das pessoas com deficiência.
Em show de stand-up no último final de semana, Léo Lins, que até então integrava o quadro do programa "The Noite", comandado por Danilo Gentili, fez um deboche cruel contra uma criança com hidrocefalia, condição em que ocorre um acúmulo de líquido em cavidades do cérebro, o que provoca um significativo aumento da pressão intracraniana.
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"Eu acho muito legal o Teleton, porque eles ajudam crianças com vários tipos de problema. Vi um vídeo de um garoto no interior do Ceará com hidrocefalia. O lado bom é que o único lugar na cidade onde tem água é a cabeça dele. A família nem mandou tirar, instalou um poço. Agora o pai puxa a água do filho e estão todos felizes", disparou Léo Lins na "piada" que motivou sua demissão.
O artigo 88 da Lei 13.146/2015 prevê reclusão de 1 a 3 anos e multa a quem "praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência".
Para a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), que divulgou nota de repúdio a Léo Lins e que está cobrando retratação do comediante, a "piada" pode ser enquadrada nesta lei.
O advogado Thiago Campos, especialista em direito sanitário e saúde, concorda. "Acho que o caso é claro de violação à dignidade da pessoa humana. E no contexto específico do adoecimento, acho que sim, essa conduta do comediante, por assim dizer, é enquadrada na lei 13.146. A gente tem vivido esses tempos bastante difíceis em que as pessoas acham que não há limites às liberdades. Nenhum direito é absoluto e irrestrito, eles encontram minimamente barreiras quando violam demais direitos. Até por conta da necessidade de viver em sociedade, se relacionar, e principalmente numa estrutura jurídica que construímos a partir de 1988 que presa pelo tratamento igualitário e valoração da dignidade da pessoa humana", analisou em entrevista à Fórum.
"Essa pessoa [Léo Lins] viola aquilo que nos faz minimamente humanos, que é respeitar a dignidade das pessoas, das pessoas que sofrem, sentem dor e que se veem numa situação em que sua deficiência é tratada como motivo de piada. Juridicamente, temos um amplo sistema de proteção às pessoas com deficiência. Uma brincadeira como essa não pode ficar sem represália e sem sanção porque há sim, claramente, uma violação aos direitos da pessoa com deficiência. É uma violação à lei", prossegue o advogado.
Danos morais
Também ouvido pela Fórum, o advogado Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama, considera que o comentário de Léo Lins "sequer pode ser classificado como uma piada".
"É um comentário jocoso e de muito mau gosto. É uma tentativa frustrada de se fazer humor a partir de uma situação dramática e, portanto, ele age com profundo desrespeito para com a criança e a sua família. A liberdade de expressão tem limites, inclusive quando se trata de manifestações pretensamente humorísticas", diz.
"Essa frase, inclusive, não ofende apenas as pessoas em particular, mas todos aqueles acometidos desta situação e, portanto, podem vir a ensejar uma medida no âmbito civil, buscando-se uma eventual indenização por danos morais sofridos", continua Caldas.
O advogado pondera, contudo, que na esfera penal pode ser mais difícil a atribuição de um delito a Léo Lins, mas que é possível, sim, que isso aconteça. "A legislação fala em praticar, induzir ou incitar a discriminação, e apesar do extremo mau gosto do comentário é possível que se entenda que ele não está propriamente fazendo isso, mas caberá ao Ministério Público e ao poder judiciário a palavra final sobre isso", avalia.
O que é hidrocefalia
A hidrocefalia é uma condição em que ocorre um acúmulo de líquido em cavidades do cérebro, o que provoca um significativo aumento da pressão intracraniana. O chamado LCR (Líquido Cefalorraquidiano) se acumula nos espaços existentes entre as várias partes do cérebro, os ventrículos, e ainda nas áreas subaracnoides, na camada externa do encéfalo, entre o órgão e a meninge.
Embora seja uma doença que possa ocorrer com qualquer pessoa, normalmente a hidrocefalia é mais recorrente em crianças e idosos, com maior prevalência nos primeiros. O nome da enfermidade vem do grego, hidro (água) e céfalo (cabeça), e é adotado justamente por existir um excesso de “água”, no caso o LCR, dentro da caixa craniana.
A hidrocefalia congênita, ou seja, que já está estabelecida no nascimento, pode ser observada e diagnosticada ainda antes do parto, por meio de exames de imagem durante o pré-natal. Não há uma certeza quanto ao que provoca a hidrocefalia nos bebês, mas a ciência já tem indícios de que são fatores genéticos hereditários. Doenças como a toxoplasmose, citomegalovírus, rubéola, sífilis e meningite, assim como o uso abusivo de entorpecentes como a cocaína e a heroína por parte da mãe também podem aumentar as chances de a criança nascer com a condição.
Já nos adultos, a forma adquirida da hidrocefalia decorre de problemas como infecções, tumores cerebrais, traumatismos cranioencefálicos, hemorragias, acidentes vasculares cerebrais (AVCs) ou por neurocisticercose, uma condição provocada pelo parasita popularmente chamado de “solitária”, a tênia, que entra no corpo quando a carne de porco contaminada é consumida de maneira inadequada.
No caso dos bebês que já nascem com a hidrocefalia e ela se expande nos primeiros meses de vida, o principal sintoma notável é o aumento exagerado da cabeça. A criança, inevitavelmente, acaba por sofrer danos nas estruturas cerebrais e com isso fica acometida por sequelas motoras e de visão, além de outros problemas neurológicos. Nos adultos, há dor de cabeça intensa, perda de habilidades motoras e prejuízos neurológicos sérios, assim como sono excessivo e crises de convulsão, levando em muitos casos, especialmente em idosos, a um quadro de demência.
Em pacientes com hidrocefalia leve, medicamentos podem ser usados para que ocorra a eliminação do excesso de líquido nas cavidades cerebrais, mas nos casos mais graves, invariavelmente a o tratamento é cirúrgico, por meio da introdução de um cateter intracraniano que retira o excesso de LCR e o dispensa em outras áreas do corpo, como a cavidade abdominal, de onde é posteriormente expelido. No entanto, em grande parte das ocorrências de hidrocefalia em crianças o prognóstico não é bom e o quadro leva à morte.