A série exclusiva da Revista Fórum “Evangélicos Contra Bolsonaro” começa com a entrevista do pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho, do Rio de Janeiro. Figura conhecida das redes sociais, Vieira é também ator, escritor e poeta.
Ao crítico contumaz da política de morte do presidente Jair Bolsonaro, começo questionando sobre quais são, em sua perspectiva, as contradições entre ser cristão evangélico e ser bolsonarista. O pastor progressista utiliza exemplos práticos para ilustrar a incoerência entre as duas definições.
"Jesus Cristo apostou no amor, o bolsonarismo aposta no ódio. Jesus Cristo apostou na paz, o bolsonarismo faz uma aposta permanente na violência. Jesus Cristo apostou no perdão, na possibilidade de recomeço para todas as pessoas, o bolsonarismo aposta na vingança. Jesus Cristo denunciou o acúmulo de riquezas e sempre esteve ao lado dos pobres, o bolsonarismo tem uma política econômica que aprofunda a desigualdade social e que explora cada vez mais o povo. Jesus Cristo nunca usou armas, o bolsonarismo aposta no armamento da população. Na verdade, o que a gente observa é que a ética do Evangelho é completamente incompatível com a proposta bolsonarista de sociedade", explica.
Mesmo com o argumento de Vieira, é inevitável não mencionar que inúmeros líderes influentes, de denominações expressivas, mantêm-se fiéis ao extremismo bolsonarista. Para ele, o cristianismo hegemônico, institucional, aquele que foi "oficializado" ao longo do tempo, ainda na Igreja Católica, e por consequência também entre os evangélicos hoje, tem interesses que avançam sobre o modelo exploratório estrutural das sociedades, deixando a verdadeira verve cristã de lado.
"Há uma contradição entre o bolsonarismo e o Evangelho... Como é possível que determinadas lideranças sigam o Bolsonarismo? É porque já faz muito tempo que o cristianismo hegemônico, institucional, se afastou do Evangelho. Esse cristianismo hegemônico e institucional foi cúmplice e parte estrutural da colonização escravocrata, racista, patriarcal, genocida, violenta e sanguinária da América. Esse cristianismo tem uma formação doutrinária que não tem a ver com dignidade humana, que não tem a ver com a promoção da paz, com o respeito à diversidade. Esse tal cristianismo se alinha, infelizmente, a essa lógica de tortura, de execuções extrajudiciais e violações aos direitos humanos. Jesus foi morto pelo Império Romano. Três séculos depois, o cristianismo virou a religião oficial do Estado e é aí que começou a tragédia. Porque a mensagem que vinha dos oprimidos passou a ser interpretada pelos opressores e desde então temos essa contradição."
Diante da resposta, pergunto como é, então, para um evangélico não alinhado ao extremismo bolsonarista sofrer com o estigma de ser visto pelo resto da sociedade como ultraconservador e radical só por conta de sua religião. Vieira diz que para se derrubar esse paradigma é necessário fazer com que as pessoas entendam que os evangélicos são um campo popular, uma face da sociedade como outra qualquer, formada por trabalhadores, com aparentes paradoxos e conflitos, como os demais grupos humanos.
"Realmente é muito difícil essa nossa tarefa de mostrar que o campo evangélico é muito plural e que ele não se resume a Silas Malafaia, Edir Macedo e Valdemiro Santiago. Mostrar, primeiro, que ele é popular, é negro, que é comandado também por mulheres, por trabalhadores explorados do campo e da cidade. Ser do campo evangélico não significa dialogar com Silas Malafaia, Edir Macedo, ou Valdemiro Santiago. Significa dialogar com a classe trabalhadora, com suas contradições e com seus conservadorismos", desabafa.
Em relação a essa pluralidade enfatizada por tantas pessoas, a liderança carioca da Igreja Batista do Caminho concorda e reforça que é necessário que todos saibam que os evangélicos estão muito longe de serem um setor social homogêneo e que a padronização da figura do "crente" favorece Bolsonaro, que com isso cola sua imagem à dos fiéis, com interesses políticos.
"O campo evangélico é plural, é multiforme e não é um bloco monolítico. O que eu acredito é que o presidente Jair Bolsonaro busca de maneira fisiológica e oportunista se aproximar de determinados segmentos dentro do campo evangélico, pra sustentar seu projeto político."
Outro aspecto que dificulta dissociar a imagem dos seguidores desta religião das hostes mais radicais do segmento é a bancada evangélica. O grupo parlamentar ligado às poderosas igrejas pentecostais mantém posições muito conservadoras no Congresso e tenta barrar com grande energia qualquer política progressista. Em vias gerais, são criticados também pelo corporativismo e pelas propostas que beneficiam seus interesses, sobretudo financeiros, assim como pelo seu alinhamento com outras bancadas reacionárias, como a bancada da bala e a bancada do agronegócio. Sobre isso, Henrique Vieira fez críticas contundentes.
"A bancada evangélica é em sua imensa maioria contrária aos interesses do povo, e por isso automaticamente contrária aos direitos do Cristo, do Evangelho de Jesus. Ela se alinha à bancada da bala, à bancada do agronegócio, faz uma política fisiológica, populista e voltada para os seus próprios interesses. Faz uma política corporativista, elitista, alinha à lógica da política liberal que massacra o povo e retira direitos, que aprofunda a desigualdade social, ou que maltrata os trabalhadores. A minha avaliação é de que, num quadro geral, trata-se de uma bancada ultraconservadora, antiética, antipovo e contrária aos princípios do Evangelho de Jesus", considera.
Para encerrar, confronto o pastor com o fato de Bolsonaro viver declarando-se cristão e agir como se fosse um legítimo representante da doutrina e qual sua opinião no que diz respeito a essa autodeclaração. Vieira concordaria com isso?
"Se ser cristão significa crer no Cristo, se ser cristão significa atualizar a vida de Jesus, dar testemunho da vida de Jesus, humilde e corajosamente eu digo que não. Jair Bolsonaro não reflete a lógica do Cristo. Não reflete a lógica do Evangelho, muito pelo contrário. Agora, do ponto de vista institucional e hegemônico, de um cristianismo colonial e colonialista, violento, desse cristianismo sem Cristo, sim, Bolsonaro é a representação desse cristianismo sem Cristo. Bolsonaro é um cristão deste cristianismo que mataria Jesus", conclui.
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