Os defensores do projeto de lei (PL 948/2021), que trata sobre a compra de vacinas contra a Covid-19 por parte do setor privado, argumentam que a proposta desafogaria a fila de imunização do Sistema Único de Saúde (SUS) e traria mais imunizantes ao país.
O texto base do PL foi aprovado na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (6) após forte resistência da oposição e, caso seja aprovado no Senado, se criará no Brasil um esquema de vacinação paralelo à fila do SUS. Apesar do texto prever que os empresários que adquirirem imunizantes devem doar a mesma quantidade comprada ao sistema público, eles poderiam se imunizar sem ter que esperar a vacinação de grupos prioritários. Ou seja, seriam privilegiados em detrimento dos desempregados, trabalhadores informais ou mesmo de donos de pequenos negócios que não têm condições de comprar imunizantes.
Segundo Thiago Campos, advogado especializado em Direito sanitário, medidas que aumentam a oferta de vacinas no país são vistas como boas iniciativas. Este, segundo ele, entretanto, não é o caso. "Esta é, justamente, a armadilha: o PL em questão não surge do interesse em disponibilizar mais vacinas aos brasileiros; fosse essa a motivação, todas as doses adquiridas por privados seriam entregues ao SUS. O vício do PL está em abrir frentes de imunização concorrentes ao sistema público, retrocedendo a um modelo em que a saúde pública era ofertada apenas aos trabalhadores formalizados, ou seja, a minoria", disse em entrevista à Fórum.
Segundo Campos, a própria tramitação do PL já demonstra "o desastre que vem sendo a condução do país na pandemia", citando que o governo demorou para buscar acordos de compra de vacinas e sequer as incluiu no Orçamento deste ano, conforme foi apontado em representação encaminhada ao Tribunal de Contas da União (TCU) e à procuradoria-geral da República (PGR) denunciando essa negligência.
O especialista chama a atenção também para o fato de que a maior parte dos brasileiros não será beneficiada com o projeto da vacinação privada, visto que nenhum grande fabricante de imunizantes tem os ofertado a empresas, e que além disso, se a proposta virar lei, vai se aumentar a insegurança, uma vez que o texto aprovado na Câmara dispensa a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a aquisição das vacinas.
Campos ainda alerta: "O que ele [o projeto] faz, na prática, é fomentar um mercado futuro, e milionário, de imunizantes, sem contrapartida para o Estado e a sociedade. Como está formulado, é um ataque direto ao SUS".
Distopia
A advogada e doutora em Saúde Pública, Lenir Santos, que preside o Instituto de Direito Sanitário (IDISA), também fez duras críticas ao projeto de vacinação privada em artigo publicado nesta quarta-feira (7).
"Num ambiente do salve-se quem puder, quem pode mais sai à frente em detrimento daqueles que só tem o SUS como salvaguarda sanitária. Isso revela uma sociedade distópica, que se deteriora em seus valores morais e éticos, inclusive quanto ao modelo socioeconômico brasileiro que deixa grande parte da população em situação de profunda desigualdade. Em pleno século XXI não mais se pode admitir sociedades que ainda mantém párias sociais", afirma Lenir.
"Vacina em pandemias e epidemias é assunto que se reserva ao Estado pelo interesse coletivo de seus efeitos. Por se tratar de uma das medidas de prevenção e proteção da saúde da coletividade, somente o Estado tem poderes para a sua coordenação e regulamentação. E nesse sentido, há de se observar os princípios do acesso universal e da igualdade de atendimento previstos na Constituição, artigo 196. Eles se impõem a qualquer programa de vacina, incluindo obviamente a sua aquisição, ainda mais quando há escassez no mundo, um dos motivos de não se poder facultar ao particular a sua aquisição, uma vez que não há excedente a ser vendido para quem possa pagar. Na preferência do particular sobre o coletivo estará se ferindo os princípios acima mencionados, em especial a igualdade de atendimento", completa a advogada.
Camarote
Também em entrevista à Fórum, o ex-ministro da Saúde, médico e deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) criticou duramente a proposta. “Isso é um escândalo, uma tentativa de uma certa elite empresarial que tem valores escravocratas de querer criar o camarote privado das vacinas”, disse.
Segundo o parlamentar, a ideia defendida pelos empresários bolsonaristas e que ganhou o apoio de Lira e também do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, “é ainda mais escandalosa” devido ao fato de que a proposta já havia sido barrada no Congresso. “Aprovamos um projeto que até permite a participação do setor privado, mas que só pode fazer a vacinação privada depois que os grupos prioritários do SUS tenham sido atendidos”, detalhou.
“Um dono de banco que tem 50 anos, 60 anos, vai poder ser vacinado antes que um idoso que tem 70 anos de idade. Se for aprovada essa lei, o dono do banco vai ser vacinado antes que o professor, que o agente de segurança”, alertou.
O PL agora seguirá para apreciação do Senado Federal.