Chegando a quase 4 mil mortes em decorrência da Covid-19 por dia e com mais 332.700 vidas perdidas desde o início da pandemia, o Brasil atravessa seu momento mais agudo da crise sanitária. É neste cenário macabro que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) indicado por Jair Bolsonaro, Nunes Marques, atendeu a uma associação de juristas evangélicos e liberou a realização de missas e cultos religiosos presenciais, eventos que geram aglomerações e que vão contra todos protocolos e recomendações de especialistas para cessar a transmissão do vírus.
A liberação determinada de forma monocrática por Nunes Marques passará ainda por uma análise do plenário do STF após divergência do ministro Gilmar Mendes, que analisou uma outra ação e proibiu a realização das cerimônias coletivas.
O bolsonarismo, bem como as igrejas cujo os líderes são bolsonaristas, estão comemorando a decisão. Há, porém, outras instituições religiosas e lideranças que não fazem essa falsa dicotomia entre prevenção ao contágio, respaldada pela ciência, e a fé.
É o caso, por exemplo, de Marcos Jair Ebeling, Pastor Sinodal do Sínodo Sudeste da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Segundo o religioso, a decisão de Nunes Marques de liberar os cultos presenciais no auge da pandemia é um "equívoco" e o ordenamento jurídico de que a restrição para a realização de cultos estaria ferindo a liberdade religiosa, que baseou a decisão, não o contempla.
"A minha liberdade religiosa ou a livre manifestação da Igreja Luterana não está cerceada ou violada por conta da não realização de cultos presenciais no auge da pandemia. Ela continua sendo possível como sempre foi por outras formas e meios, os virtuais sobretudo", disse Ebeling em entrevista à Fórum.
O pastor argumenta que é "equivocada a compreensão de que a manifestação de Deus se dá, exclusivamente, no altar dos templo". "Invocá-lo em casa, numa oração e culto familiar, é tê-lo presente e presença. Deus não está vinculado a espaços específicos. Ele é Onipresente", pontua.
"Igrejas de mercado"
Ebeling, que é bacharel em teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, analisa também que a pressão de parte do setor evangélico pela manutenção dos cultos presenciais se dá pelo fato de estar ligada o que chama de "igrejas de mercado".
"Entendo que existe uma grande diferença entre as igrejas no seu modo de viver a fé: há as igrejas que privilegiam a comunhão, normalmente formadas por comunidades de fé com vínculos históricos e afetivos bastante consolidados entre as pessoas. A pandemia não desfez estes vínculos e eles foram levados momentaneamente para o modo virtual; por outro lado há as igrejas 'de mercado', nas quais a fé é um produto que precisa a cada dia ser de novo oferecido numa ciranda que não tem fim. A Igreja Luterana está no primeiro grupo", sentencia.
"Deus veio para que tivéssemos vida abundante (João 10.10). Esta premissa teológica é importante para a Igreja Luterana. Preservar a vida, neste momento de hospitais lotados e recordes de mortes por COVID19, não aglomerar é fundamental. Este é nosso compromisso e, entendemos, sem prejuízo para a vivência da fé", completa o pastor.
O líder religioso também cita, ao avaliar a decisão de Nunes Marques, as disputas políticas e ideológicas que envolvem o STF, em que "um determinado grupo religioso se associa a elas e tenta tirar proveito próprio".
"Temo que outros grupos da sociedade civil invoquem direitos semelhantes à luz da constituição e então a religião será causa de escândalo e incentivo disseminador do coronavírus contrariando uma de suas missões que é cuidar e defender a vida", alerta.
Falta de competência
Também em entrevista à Fórum, Lusmarina Campos Garcia, que além de pastora luterana é teóloga e pesquisadora de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chamou a atenção para o fato de que a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), autora da ação acatada por Nunes Marques para liberar os cultos, sequer tem competência para fazê-lo.
"Esta matéria foi decidida pelo plenário do Tribunal em fevereiro deste ano. O rol de quem tem legitimidade para demandar no STF está no art. 103 da Constituição Federal. Em segundo lugar, no momento mais crítico desta pandemia no Brasil, o que precisa ser lei é o isolamento rígido, não a flexibilização dele. Flexibilizar o isolamento no período do maior número de mortes no país, é viabilizar a contaminação em massa", afirmou.
A pastora considera a decisão de Nunes Marques "uma adesão à política de aniquilamento presente no governo federal".
"O genocídio da população, que está em curso no Brasil, só é possível porque há covardes que compactuam e insensatos que avalizam", pontua Lusmarina, adicionando ainda que a Anajure é "o braço jurídico do bolsonarismo evangélico".