Um jantar oferecido ao presidente Jair Bolsonaro por empresários e figurões endinheirados no último dia 7, em São Paulo, em plena semana com mais mortes de toda a pandemia, teve a participação de duas personalidades muito influentes da comunidade judaica do Estado mais rico do Brasil: Claudio Lottenberg, presidente do Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein, e David Safra, um dos herdeiros do espólio bilionário do banqueiro Joseph Safra, falecido há poucos meses.
A presença de figuras judias da mais alta relevância num evento de ovação ao homem que colocou o país num caos social e econômico jamais visto na História despertou críticas de vários setores da sociedade brasileira (assim como na própria comunidade israelita) e deixou algumas perguntas no ar:
Como, de fato, a comunidade judaica vê o governo e a figura de Jair Bolsonaro? Há segmentos desta comunidade que não apoiam o presidente? Por que alguns judeus fazem questão de manifestar alinhamento com um homem que fala abertamente em favor de práticas que violam os Direitos Humanos?
É inevitável não mencionar que estamos falando de um povo que foi vítima de uma das maiores atrocidades da História da humanidade: o Holocausto.
A reportagem da Fórum foi ouvir quatro membros da comunidade judaica brasileira para tentar compreender este recorte tão peculiar de nosso mosaico social. Todos os entrevistados têm posições marcadamente contrárias a Bolsonaro.
Guilherme Cohen, membro do coletivo Judeus Pela Democracia, Liana Lewis, antropóloga e professora da UFPE, Noemi Jaffe, escritora e crítica literária indicada ao Prêmio Jabuti, e Michel Gherman, historiador e coordenador do Núcleo de Estudo Judaico da UFRJ, explicam seus pontos de vista e mostram por que os judeus não devem ser vistos como um grupo unificado e parceiro incondicional de Jair Bolsonaro.
Afinal, quem são (e quantos são) os judeus no Brasil (e no mundo)?
Segundo dados do Censo do IBGE de 2010, no Brasil existiam 107 mil judeus, o que coloca o país em 9° lugar na lista de maiores comunidades desta origem no planeta. A maioria deles vive em São Paulo.
No mundo todo, segundo estatísticas de órgãos judaicos, há algo em torno de 11 milhões de judeus, sendo que 40% deles estão em Israel e outros 40% nos EUA.
Religião monoteísta mais antiga do mundo, o Judaísmo tem sua origem na região do Levante, no Oriente Médio, aproximadamente 4 mil anos atrás. Por conta de perseguições de caráter religioso, em diversas ocasiões, se dispersaram pelo mundo num evento histórico que ficou conhecido como Diáspora.
O senso comum consagrou a ideia de que os judeus são homens de negócios natos, o que é reforçado na prática quando constatamos o expressivo número de banqueiros, joalheiros e grandes empresários desse grupo social.
Uma das páginas mais sombrias do povo judeu foi registrada no século XX, quando foram vítimas do mais emblemático genocídio da História, o chamado Holocausto.
Perpetrado pelo Nazismo, a corrente ideológica implantada na Alemanha por Adolf Hitler na década de 1.930 e que levou o mundo à guerra, a perseguição resultou no extermínio de 6 milhões de judeus, que em sua maioria foram alojados em horrorosos campos de concentração espalhados pela Europa.
Desde então, o mundo vem aprendendo a reconhecer a importância e o valor da tolerância. O morticínio e o horror impostos aos judeus pelos nazistas serviu de bússola para a conquista gradativa de mais respeito aos Direitos Humanos em nível mundial.
Como poderia, então, um povo que carrega as marcas da intolerância e da barbárie dar sustentação a uma figura política deplorável que usa justamente a intolerância e a barbárie como combustíveis para se manter no poder?
A Revista Fórum traz para o leitor uma perspectiva diferente da parte de judeus que contrariam a ideia que se propagou de uma união robusta entre o Judaísmo e o bolsonarismo.
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Guilherme Cohen: “Bolsonaro cresce no medo, no ódio. Precisa de um inimigo para eliminar”
A primeira entrevista da série Judeus e Bolsonaro é com Guilherme Cohen. O carioca é coordenador do coletivo Judeus pela Democracia, psicólogo, tem 31 anos e é filiado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), legenda pela qual disputou uma vaga na Câmara de Vereadores da capital fluminense na última eleição.
Logo na primeira pergunta, sobre o perfil político do judeu brasileiro, Cohen procurou desmistificar a ideia de que todos são conservadores e alinhados com visões reacionárias.
"A comunidade judaica é plural e bastante heterogênea. Parte dela, infelizmente, viu em Bolsonaro um aliado, já que ele se colocou como um suposto ‘amigo’ de Israel. Outra parte, na qual me incluo, tem a convicção de que Bolsonaro é o pior presidente de toda a História do Brasil", esclarece.
O histórico de Bolsonaro, assim como sua realidade presente, já no Palácio do Planalto, é suficiente para que Cohen afirme que, de maneira alguma, ele possa representar os judeus em sua totalidade.
"Um sujeito que minimiza a pandemia, atua contra a democracia e persegue diversas minorias não nos representa. Para mim, aliás, se ele persegue outras minorias, de certa forma me persegue também", explica.
Sobre todas as vezes que Jair Bolsonaro proferiu discursos de ódio contra setores sociais minoritários, inclusive durante o período eleitoral que culminou com sua vitória, há quase três anos, o integrante do coletivo Judeus pela Democracia, afirma que essa é a forma como o presidente faz política e que foi por meio do ódio que ele conseguiu se destacar, escolhendo alguém para perseguir.
"No 2º turno das eleições de 2018, participei de uma caminhada com outras lideranças religiosas no centro do Rio de Janeiro e, à época, disse que era inaceitável que um povo que já passou por tudo que a gente passou, apoiasse um indivíduo que diz, por exemplo, que as minorias têm que se adequar às maiorias, ou desaparecer... Bolsonaro é autoritário e fanático. Ele cresce no medo, no ódio e na violência. Ele precisa de um inimigo para eliminar. É assim que ele sempre fez política", lembra.
Ainda no que diz respeito a perseguições, inevitavelmente menciono o Holocausto, o genocídio cometido pelos nazistas contra o povo judeu durante a 2ª Guerra Mundial, e pergunto se um evento trágico como esse não colocaria os judeus, em geral, automaticamente contra uma personalidade como a de Jair Bolsonaro e seu governo. Cohen responde:
"Eu acredito que é nosso papel aprender com a História, para que ela não se repita nunca mais. Não se repita conosco e não se repita com nenhum outro grupo. É bastante óbvio que a posição da comunidade judaica em relação a isso deveria ser de repúdio total. Felizmente, mesmo que tarde, o número de indignados com o atual presidente vem aumentando."
Um episódio que marcou muito a relação dos judeus com Bolsonaro foi sua palestra no clube Hebraica, em 2017, no Rio de Janeiro, quando ainda era pré-candidato a presidente. Foi naquela noite, para uma plateia de judeus, numa agremiação judaica, que Bolsonaro fez um de seus discursos mais racistas e extremistas na carreira política.
Referiu-se aos quilombolas (negros) como animais, em arrobas, dizendo que não serviam "nem para procriar", e desfilou todo tipo de ódio contra minorias e setores sociais em condições vulneráveis, mirando sua metralhadora de intolerância inclusive em organizações e entidades que atuam em diversas causas. Cohen estava lá, mas do lado de fora, protestando contra o que classificou como um "show de horrores".
"O episódio da palestra de Bolsonaro na Hebraica foi um grande divisor de águas em nossa comunidade. Muitos, infelizmente, lembram-se das centenas de pessoas que aplaudiam um dos discursos mais violentos e criminosos do então pré-candidato Jair Bolsonaro. O que muitos não se recordam é que nesse mesmo dia, durante o show de horrores que acontecia lá dentro, algumas centenas de judeus estavam do lado de fora do clube protestando e gritando: ‘Judeu e Sionista não apoia fascista’ e ‘Judeu sem memória’... Tenho muito orgulho de ter ido à porta do clube aquele dia, junto com Carlos Minc, Silvio Tendler, jovens de movimentos sionistas e tantos outros que não aceitaram calados tal absurdo. Lembramos também dos judeus mortos na Ditadura Militar, entre eles o jornalista Vladimir Herzog."
Questiono também se não há um desconforto entre judeus pelo fato de alguns membros do governo Bolsonaro terem simpatia por nazistas e supremacistas brancos, como nos casos do ex-secretário Nacional de Cultura, Roberto Alvim, que emulou um discurso de Goebbels (pai da propaganda nazista) e mais recentemente do assessor especial para assuntos internacionais Filipe Martins, que fez um gesto usado por grupos racistas norte-americanos, durante uma sessão no Senado Federal.
"Não posso falar em nome de toda a comunidade judaica, mas estão cada vez mais evidentes esses laços de integrantes e simpatizantes do governo com supremacistas. Importante lembrar que grupos supremacistas e neonazistas têm ideias em grande medida similares", esclarece.
Para Guilherme Cohen, a intenção de Bolsonaro ao se aproximar de judeus, mesmo com todo seu histórico de ódio e intolerância, é criar um canal com os evangélicos. Mas não só. A aproximação também seria uma espécie de álibi para disfarçar sua fama.
"Bolsonaro, no período pré-eleitoral, resolveu estabelecer esse vínculo com Israel e a comunidade judaica. O batismo no rio Jordão e a palestra na Hebraica são exemplos disso. Ele fez isso por alguns motivos, dentre os quais um deles é a conquista de uma base evangélica muito numerosa. Além disso, utilizou essa aproximação para higienizar a sua imagem de preconceituoso", relaciona.
Vale lembrar que os evangélicos formam uma base muito sólida do bolsonarismo e que esse segmento cristão estabelece uma relação confusa entre símbolos do Judaísmo e do Estado de Israel e o Cristianismo.
O último acontecimento envolvendo o presidente da República e personalidades judaicas foi um jantar oferecido pela elite paulistana, há duas semanas (no auge da pandemia), no qual estiveram presentes Claudio Lottenberg, presidente do Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein, e também David Safra, herdeiro do espólio bilionário do banqueiro Joseph Safra, falecido há poucos meses. No convescote, Jair Bolsonaro foi ovacionado pelos anfitriões e recebeu elogios embaraçosos, já que a homenagem foi justamente no período mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, com quase 4 mil mortes diárias pela doença. Cohen fez considerações sobre a festa.
"Eu sempre defendi o diálogo institucional. Nesse sentido, em tempos normais, Claudio Lottenberg, que é presidente da CONIB, teria o dever de sentar com o chefe de estado, seja ele quem fosse, de forma republicana. E olha que isso já não era tão simples mesmo antes da pandemia. Afinal, desrespeitar princípios básicos dos Direitos Humanos, exaltar torturador, menosprezar a democracia, não podem ser vistos como valores normais de um presidente de um país democrático... Acontece que não vivemos tempos normais. Estamos no meio de uma pandemia totalmente fora de controle, que tira a vida de mais de três mil brasileiros diariamente, com a conivência do presidente da República, que minimiza o vírus, não usa máscara e provoca aglomerações. Diante disso, participar desse jantar com alguém que colabora com o genocídio e o negacionismo da pandemia é lamentável."
Quis saber se outros setores do Judaísmo no país também se constrangeram, ou se indignaram, com a presença de Lottenberg e Safra na recepção exclusiva oferecida ao presidente, ao que Cohen respondeu completando:
“A reação veio de muitos coletivos judaicos. O coletivo Judeus pela Democracia, a ASA – Associação Scholem Aleichem –, a Casa do Povo (SP), o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, entre outros se posicionaram de forma contundente repudiando a participação em tal jantar. Felizmente o número de judeus indignados e que lutam contra esse governo desde sempre não é pequeno."
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Liana Lewis: "Apoio é falta de leitura histórica e rigor ético. É indigência intelectual"
A segunda entrevista da série especial Judeus e Bolsonaro, produzida pela Revista Fórum, é com a antropóloga e professora da UFPE Liana Lewis. A pesquisadora trabalha com temas como o racismo e o genocídio da população negra.
Natural do Recife (PE), cidade onde vive até hoje, Liana começou falando um pouco sobre sua origem judaica, histórias que ouvia sobre perseguição e a comunidade na capital pernambucana.
"Cresci ouvindo narrativas de sofrimento e perseguição em casa e na escola. Parte de minha família migrou do Leste Europeu para os Estados Unidos fugindo dos Pogroms (perseguição institucionalizada aos judeus) e outra parte migrou da Alemanha para lá antes da 2° Guerra Mundial, felizmente. No Recife há uma comunidade judaica significativa e bem organizada", explica.
A primeira abordagem tratando diretamente do apoio de grupos judeus ao presidente Jair Bolsonaro fez Liana organizar uma breve reflexão sobre o quanto o fato parece absurdo.
"Veja... Eu estudei minha vida inteira numa Escola Israelita em Recife e ao longo da minha formação relembrávamos o Holocausto como uma atitude pedagógica de prevenção da violência sofrida na 2ª Guerra Mundial. O Holocausto é uma memória muito forte que opera como uma construção comunitária a partir do imenso horror vivido. Bolsonaro, não apenas com seu governo baseado claramente em um necropoder, em uma política genocida, mas através de atos estéticos claramente nazistas, deveria ser visto como alguém a ser fortemente combatido por um povo que sofreu violentas perseguições ao longo de sua história", enfatiza.
Na sequência, a acadêmica afirma que o apoio de judeus a uma figura que suscita tanta repulsa é algo que deve ser visto como um sério desvio.
"Para um povo que constrói sua identidade especialmente através do sofrimento e perseguição, apoiar Bolsonaro é falta de leitura histórica básica e rigor ético. É uma profunda indigência intelectual."
Ela acrescenta que, de um modo geral, essa é também a perspectiva que nota por parte dos acadêmicos de origem judaica com quem mantém contato.
"Alguns professores que conheço concordam que Bolsonaro representa o horror e que suas posturas em muito se assemelham aos pressupostos nazistas", completa.
Menciono o jantar oferecido ao atual presidente, do qual participaram figuras importantes da comunidade judaica paulista, no início do mês, que gerou tanto mal-estar, para questionar, então, sobre esse apoio que vem se costurando já há algum tempo. Para isso, relembro a repulsiva palestra de Jair Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro, um ano antes da eleição da qual saiu vencedor, salientando que o acontecimento gerou uma forte turbulência na comunidade judaica, com protestos vindos de todos os lados.
"Muitos judeus protestaram fortemente (contra o evento de 2017). O problema foi o silenciamento conivente de muitas instituições judaicas. O que a conivência com aquela cena infame revelou é que a identificação de classe e pertencimento racial são muitas vezes mais importantes do que uma ética pregada por quem sofreu opressão. Para os judeus que participaram daquele evento horrendo, onde negros foram chamados pelo atual presidente da República de animais (gado), sob risos criminosos de uma plateia execrável, a experiência histórica de aniquilação, o Holocausto, e o potencial que esta experiência tem de fazer com que seus herdeiros se identifiquem com grupos subalternizados, foram deixados de lado", disse, subindo o tom.
Liana continuou denunciando a controversa visita de Jair Bolsonaro ao tradicional clube judeu do Rio de Janeiro. Para ela, o evento, que acabara de classificar como "horrendo", reforçou a inaceitável desumanização do povo negro por parte da elite brasileira, da mesma forma como ocorrera com os judeus na Alemanha Nazista.
"O que aconteceu ali foi um evento de exclusão do outro: judeu, branco, classe alta, ‘versus’ negro e pobre. Lembremos que o povo negro vive um genocídio sistemático por parte da sociedade e Estado brasileiros. Aqueles risos infames foram um claro ato de desumanização do povo negro. Além deste episódio ter provado que alguns judeus não tomaram os horrores do Nazismo como um compromisso ético em relação aos outros. Para mim, espelhou a complacência histórica de alguns judeus para com elementos característicos do Nazismo, algo tão bem revelado por Hannah Arendt, nossa judia mais proeminente. Se para os nazistas éramos porcos, no Brasil de Bolsonaro os negros e quilombolas são alegremente transformados em bois. Rimos tragicamente da desumanização da qual outrora fomos vítimas", desabafa indignada.
Questiono a antropóloga sobre a definição “genocida” dada à política de Bolsonaro e estabelecida por vários segmentos sociais, da academia e da comunidade internacional, por conta das sistemáticas mortes ocorridas durante sua gestão, sobretudo ocasionadas pela pandemia descontrolada no país, um resultado direto da negligência, irresponsabilidade e, em alguns casos, de ações deliberadas operadas pela gestão do atual presidente.
"Precisamos lembrar que o termo genocídio foi cunhado logo após a 2ª Guerra Mundial pelo jurista judeu polonês Raphael Lemkin, que associou o termo grego “genos” (que significa raça ou tribo) ao termo latino “cide” (que significa assassinato). Para Lemkin genocídio diz respeito à destruição de um grupo, não apenas através do extermínio físico, como também de sua cultura, instituições políticas, língua, religião, segurança, saúde e liberdade. Lemkin ressalta que, ao passo que as ações do genocídio são dirigidas aos indivíduos, não são estes, enquanto entidades isoladas que são seu alvo, e sim enquanto membros de um grupo nacional. Neste sentido podemos afirmar que o governo Bolsonaro está implementando um verdadeiro genocídio contra o povo brasileiro através de atitudes deliberadas de incitar a população a ir ao encontro da Covid-19, além de sua recusa na compra de vacinas, um exíguo Auxílio Emergencial".
Por fim, Liana Lewis explica, ressalvando as diferenças óbvias entre os dois acontecimentos históricos, que a simpatia por Bolsonaro, de maneira acrítica, é parecida com a ovação e ascensão do Nazismo na Alemanha, no início dos anos 1.930.
"Vivemos na atualidade um movimento muito semelhante aos primórdios da Alemanha nazista: uma simpatia da parte de quem se tornaria vítima do horror. Como judeus, não sofremos perseguição do governo Bolsonaro, mas como brasileiros somos todos fortes candidatos a morrermos asfixiados num leito solitário de UTI (quando existem vagas disponíveis). Enquanto na Alemanha nazista éramos colocados em câmaras de gás, hoje somos todos candidatos a sofremos a tortura de sermos entubados sem anestesia, ou morrermos asfixiados. Mas nenhum judeu, assim como nenhum brasileiro, foi ludibriado por Bolsonaro. O discurso dele sempre foi um discurso de morte, da aniquilação do outro. Quem lhe rendeu o voto ou anulou é diretamente responsável pelo horror que vivemos. Assim como os judeus que na Alemanha nazista não se opuseram aos prenúncios do horror", compara, encerrando.
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Noemi Jaffe: "Atitude de Bolsonaro contribuiu para as mortes e o colapso sanitário. Genocida!"
A escritora e crítica literária Noemi Jaffe é a terceira entrevistada da série Judeus e Bolsonaro, realizada pela Revista Fórum, que foi ouvir o que ela pensa sobre a proximidade de segmentos da comunidade judaica com o governo extremista do atual presidente da República.
Noemi é filha de uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, um dos maiores símbolos do horror e da crueldade do Nazismo. Profissional respeitada no universo editorial, ela carrega no currículo uma indicação ao Prêmio Jabuti, um dos mais importantes da língua portuguesa.
Numa pergunta direta, começo questionando como ela vê o apoio de judeus (influentes, inclusive) ao governo e à figura de Jair Bolsonaro, um político que construiu sua carreira, durante décadas, em cima do discurso de ódio contra minorias, com declarações racistas, machistas e homofóbicas.
"Na minha opinião, vejo só duas possibilidades para esse apoio: 1 – conveniência com interesses financeiros e políticos envolvidos... Ou 2 – ingenuidade inicial devido à pretensa defesa que o presidente faz do Estado de Israel. Passados dois anos e, portanto, descartada a segunda hipótese – pois já não se pode mais alegar inocência sobre nenhuma ação desse senhor – só resta a primeira", dispara.
Peço então para que a escritora detalhe essa percepção em relação aos grupos judeus que dão suporte político ao governo de extrema direita do ex-capitão desligado do Exército. E Noemi prossegue:
"Vejo ou como conveniência política e econômica, ou em função, como disse, da defesa que o presidente faz do Estado de Israel, contra os palestinos. Nesse sentido, como em todas as comunidades, há uma parte da comunidade judaica que é bem conservadora e que votou contra o PT e a esquerda. Mas tenho certeza, também, que grande parte desses eleitores se arrependeu. Quem não se arrependeu ou está fora da realidade, ou tem interesses escusos envolvidos."
Cito o fato dela ser filha de uma sobrevivente do Holocausto, de uma mulher que viveu o terror e a banalização da morte no inferno de Auschwitz, e então pergunto se esse apoio, de alguma maneira, a toca de uma forma especial.
"Sim, me toca em especial. E me manifestei quanto a isso desde o momento em que o atual presidente defendeu Ustra (Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército e notório torturador da Ditadura Militar) em seu apoio ao impeachment de Dilma Rousseff. É absolutamente impensável, para mim, que pessoas pertencentes a um povo que foi perseguido e torturado num dos eventos mais bárbaros e violentos da História da humanidade possam apoiar um homem que defende torturadores. Trata-se de uma espécie de repetição, embora não seja exatamente a mesma coisa, do comportamento de parte do povo alemão que apoiou o Nazismo durante a 2ª Guerra e também da parte que silenciou, ou se omitiu.", explica.
Voltando à conexão que fez anteriormente, sobre o ódio de alguns judeus ao PT ter relação com a posição do partido e de seus governos no conflito árabe-israelense, Noemi argumenta que isso não pode servir como desculpa para o absurdo que é dar sustentação a um governo radical e que persegue grupos sociais.
"A desconfiança a respeito da possibilidade de o PT apoiar os palestinos contra Israel não justifica o ódio que parte da comunidade judaica dedica ao PT. Sou judia, eleitora de partidos da esquerda e, assim como eu, há milhares de judeus que assim se identificam. Sou favorável à existência de dois estados, Israel e Palestina, e tenho certeza de que essa também é a posição defendida por grande parte da esquerda", revela.
Por suas respostas, é possível deduzir que há várias incoerências entre ser judeu e apoiar uma gestão e uma ideologia edificadas sobre a morte. Pergunto qual é a maior de todas essas incoerências, ao que Noemi responde:
“Vejo incoerência entre ser humano e ser bolsonarista. Mas, para ser mais precisa, o judaísmo é, além de uma religião, uma cultura toda baseada em um pensamento humanista, de aceitação do outro, de liberdade e de igualdade. Entre seus principais pensadores estão nomes como Martin Buber, Gershom Scholem e Emanuel Lévinas, além de Spinoza, para citar apenas alguns, todos articuladores de uma filosofia de abertura e recepção. Ser bolsonarista, por outro lado, é apoiar todo tipo de discriminação, é defender a violência armada, o sectarismo étnico e religioso e a hostilidade ao outro.”
Para encerrar a entrevista, entramos no mundo da linguagem e das palavras, terreno com o qual Noemi Jaffe está acostumada. Recordo a ela que há uma celeuma linguística quanto ao uso das expressões “genocídio” e “genocida” para se referir ao que vem ocorrendo no Brasil durante a pandemia e ao presidente da República, respectivamente. Alguns especialistas condenam o uso do termo, que teria um sentido muito restrito, enquanto outros afirmam que é possível considerar o que vem ocorrendo no país, especialmente na condução do caos sanitário, como genocídio. Seriam os acontecimentos presentes um genocídio, e Jair Bolsonaro um genocida?
“Sem dúvida. O próprio Hitler, provavelmente, não se envolveu pessoalmente no assassinato de ninguém, mas foi um genocida. O presidente nunca ordenou, como Hitler e outros, a morte de centenas de milhares de pessoas. Mas permitiu que elas acontecessem e, eu poderia dizer, estimulou. Sua insistência patológica na adoção de remédios comprovadamente ineficazes, seu negacionismo sobre a gravidade da doença e sobre a importância da ciência, sua recusa em comprar vacinas, a não utilização de máscara e suas demonstrações recorrentes de falta de empatia representam uma atitude que, sem dúvida, contribuiu para as mortes e o colapso sanitário que estamos enfrentando. Genocida.”, finaliza.
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Michel Gherman: "O genocídio não ensina nada! Não é pedagógico, nunca foi"
A última entrevista da série Judeus e Bolsonaro, uma produção da Revista Fórum, dá a palavra a Michel Gherman, historiador e coordenador do Núcleo de Estudo Judaico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Gherman transita por vários aspectos do tema e afirma que o fato de os judeus terem sido vítimas de uma atrocidade como o Holocausto não faz com que os integrantes da comunidade automaticamente tenham consciência das incoerências que um apoio a uma figura como Jair Bolsonaro acarreta, já que o genocídio do povo judeu (e qualquer outro), segundo ele, não tem caráter pedagógico, e seus únicos legados seriam o trauma e o sofrimento.
Começo questionando o historiador sobre a relação que se construiu entre extremistas brasileiros, além de alguns setores neopentecostais radicais, e a simbologia que representa o Judaísmo e o próprio Estado de Israel em si. Para ele, há uma subdivisão entre esses entusiastas não judeus que veneram a religião e Israel, que deve ser compreendida da seguinte maneira:
"Há uma representação de um Judaísmo imaginário, de um Israel imaginário, que faz com que ocorra uma coalizão de movimentos que acaba se consolidando em torno de uma candidatura de extrema direita... A percepção que esses caras têm de Israel é vista pela perspectiva desses extremistas de direita, no Brasil e no Mundo, a partir de uma lógica da branquitude. São quatro os grupos contidos nesse movimento. Para o primeiro, Israel representa a luta contra a incivilização e a barbárie. Para eles, ser israelense, em última instância, é ser branco", diz.
O entrevistado dá continuidade à explicação e mostra que os radicais que se apropriam de elementos do Judaísmo formam uma massa bem diversificada.
"O segundo grupo é o grupo armado. É o grupo que vê em Israel um estado superarmado e supermilitarizado e que figura como um projeto a ser seguido. Já o terceiro grupo é o dos ultraliberais, que enxerga em Israel uma perspectiva econômica. Eles veem uma ausência de Estado, um exemplo de capitalismo, um exemplo de liberdade de mercado. Por fim, há um quarto grupo, que percebe Israel e o judeu como representantes do Israel imaginário, vinculado ao reino de Judá, ao reino de Davi, que é o grupo religioso, fundamentalista", completa.
Ele completa ainda salientando um fato sobre esses não judeus que veneram o Judaísmo:
"É interessante que a veneração a Israel imaginário e ao judeu imaginário ocorre sem a participação do judeu real. O judeu real não faz parte desse conluio."
Para Gherman, a vinculação aos setores de extrema direita que ocorre no Brasil não é comum em outros países, onde judeus habitualmente se posicionam mais ao centro.
"As comunidades judaicas espalhadas pelo mundo costumam se vincular ao centro político. Isso é muito claro por exemplo na França, na Áustria, na Hungria, países onde ocorreu essa apropriação dos símbolos judaicos (não na intensidade como ocorreu com o bolsonarismo no Brasil, claro). Nos EUA, pra você ter uma ideia, não teve nenhum setor social que votou menos em Trump do que os judeus. Os muçulmanos, inclusive, votaram mais nele do que os judeus", compara.
Para o coordenador do Núcleo de Estudo Judaico da UFRJ, o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro passou por um processo de limpeza em sua imagem, para que se tornasse aceitável para amplos espectros da sociedade brasileira, escondendo sua verve autoritária e violenta.
"Aqui houve uma higienização de Bolsonaro produzida por setores muito centrais da sociedade brasileira. O empresariado, os setores religiosos, enfim, transformaram um potencial genocida, um fanático, um homem que celebrava a violência e a morte nos últimos 30 anos em alguém palatável. Só que a gente precisa compreender que o judeu é também um brasileiro e que ele também passa a aceitar esse homem como palatável. E pior: pensam assim "esse homem é palatável e é a nosso favor", o que faz com que os judeus que não tenham uma perspectiva ideológica mais à esquerda, mais democrática, que não se enojam com o que Bolsonaro representa, o aceitem".
Ele faz questão de frisar que é absolutamente absurdo tentar colar nos judeus uma pecha de apoiadores de Bolsonaro, já que foi a maioria do total da população do país que o escolheu.
"Há que se lembrar que os judeus votaram menos em Bolsonaro do que os seus vizinhos, até porque os judeus no Brasil são pouco mais do que 100 mil pessoas. Eu fico enojado é com o apoio a Bolsonaro de todos os setores da sociedade brasileira. Mais de 50% dos eleitores votaram em Bolsonaro e isso já é assustador", argumenta.
Na sequência, Michel Gherman lembra que um outro fenômeno que contribuiu para a aceitação de um extremista no cenário político foi o fato de a esquerda ter o naturalizado como um candidato "de direita, comum".
"Há aqui uma questão voltada à esquerda. Pois me parece que não se conseguiu perceber Bolsonaro como um fascista, um nazista, de extrema direita, até porque nas eleições esse não foi o tom, não se vendeu a ideia de que ele representa o fascismo. Vendeu-se a ideia de uma disputa entre um candidato de direita e um de esquerda, mas Bolsonaro é um extremista que está fora do arco do que podemos chamar de uma direita democrática", critica o acadêmico.
Quando lembro da famigerada palestra de Jair Bolsonaro na Hebraica, no Rio de Janeiro, em 2017, e questiono sobre nada ter sido feito para que se evitasse o evento, Gherman discorda e reage com muita firmeza.
"Foi feito! A comunidade judaica é a comunidade, dentro do Brasil, com a maior diversidade que eu conheço. Houve muitas rupturas. A primeira manifestação pública contra Bolsonaro, ainda em 2017, foi na porta da Hebraica e foi feita por judeus. Por algum motivo, a esquerda preferiu olhar para dentro da Hebraica e não para fora. Aí as pessoas perguntam: “mas vocês não fizeram nada para impedir isso por quê?” Como não fizemos? Estávamos lá na porta protestando! Eu estava lá!", protesta.
Com relação à lógica estabelecida pelo senso comum entre o passado do Holocausto e uma consciência em relação aos movimentos extremistas, o historiador é enfático e diz que isso não existe. Para ele, a simples ocorrência do genocídio não confere aos judeus, nem a outros povos, uma percepção crítica e consciente quanto a posições políticas.
"A história não ensina nada... Muito menos uma história construída com um genocídio, com sofrimento, com morticínio. O genocídio não ensina nada a ninguém. A gente tem, sim, que trabalhar os genocídios pra entender como chegamos até isso. O genocídio não é pedagógico, nunca foi!", opina.
Para ele, a questão é outra no caso da ascensão de Bolsonaro e não se resume apenas ao papel dos judeus nisso.
"A pergunta não é como judeus votaram em Bolsonaro, mas sim como brasileiros votaram em Bolsonaro", indaga.
A discussão surgida nos últimos tempos sobre Bolsonaro estar conduzindo ou não um genocídio no Brasil, assim como o emprego do termo, também foi explanada por Gherman.
"Há aí critérios muito claros que possibilitam... Veja... O que a gente está vendo aqui, e que tem a ver com que a Hannah Arendt pressupunha, é que o Estado mudou a sua percepção em relação ao seu povo e deixa de dar a ele as melhores condições de vida, passando a dar condições de morte", teoriza.
Na sequência, ele cita fatos e ações do governo federal na condução da pandemia que comprovam, de acordo com sua análise, a tese que apresentou sobre o papel do Estado em relação à sua população.
"Nós temos um caso claro aqui: um governo, em meio a uma pandemia, fazendo propaganda de um medicamento que não tem nenhuma eficácia, ou então fazendo boicote à vacinação. Ou seja: está implementando uma política de morte para seu povo, quando deveria, na verdade, implementar uma política de vida."
Por fim, Michel Gherman diz o que espera com relação à responsabilização de Bolsonaro e de membros de seu governo na tragédia da Covid-19, que já deixou mais de 375 mil brasileiros mortos.
"Em relação a esses crimes, isso tudo vai ter que ser investigado lá, na CPI... Que não é CPI da Covid, é CPI do Genocídio... Porque a questão que eu tenho levantado e insistido é sobre esses caras terem sido fomentados por algum Ministério... O caso do oxigênio em Manaus... Até que ponto aquilo foi deliberado?", finaliza.
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