A pouco mais de duas semanas da chegada de 2022, muitos brasileiros se perguntam, e se angustiam com isso, sobre o cenário que se instalará no próximo ano, quando uma tensa, e provavelmente violenta, corrida eleitoral se iniciará. As escatologias do pleito de 2018 ainda estão muito frescas na memória dos cidadãos que não se alinharam à lógica de banditismo político aplicado pelas hostes bolsonaristas.
A reportagem da Fórum foi ouvir o cientista político Rafael Moreira, doutor pela Universidade de São Paulo (USP), para tentar traçar um horizonte sobre a violência política que muito possivelmente deve se agravar a partir dos primeiros meses de 2022. Para o acadêmico, antes de compreender esse fenômeno, é necessário perceber que a violência no Brasil está em tudo, não só no meio político.
“Toda vez que nós vamos discutir uma situação de violência inserida num espaço específico, como por exemplo na política, ou como o futebol, ou ainda qualquer outro tipo de ambiente, temos que levar em consideração que essas esferas não estão à parte da sociedade como um todo e elas são reflexos daquilo que está acontecendo no país. Nós somos marcados por uma sociedade extremamente violenta e isso vai se refletir em todas essas esferas. Nós temos índices de homicídios altíssimo, nós temos índices de feminicídios altíssimo, crimes relacionados a LGBTfobia também são muito altos no Brasil quando comparados a outros países. Tudo o que ocorre no ambiente político reflete aquilo que acontecem no todo, num sentido mais amplo”, explicou.
A naturalização da violência no espaço político é uma das preocupações de Moreira, que usou como exemplo a forma "pouco chocante” como foi noticiado um caso de agressão a integrantes da imprensa por agentes do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), que atuam como guarda-costas de Jair Bolsonaro.
“Nó somos uma sociedade violenta, mas essa violência vem sofrendo uma escalada de uns anos para cá. Ela tem se tornado uma forma de expressão desse campo político da extrema direita. Isso é grave porque parte das pessoas acaba até naturalizando algumas formas de violência, como foi por exemplo este caso ocorrido nos últimos dias numa viagem do presidente Jair Bolsonaro à Bahia, por conta de uma enchente que tinham ocorrido por lá, que aliás parecia muito mais uma viagem de campanha. Lá houve um caso de agressão de seguidores dele e de seguranças dele também contra alguns jornalistas, e isso só foi falado por alto na imprensa, e se não me engano nem o próprio SBT noticiou (um dos repórteres agredidos era de uma afiliada da emissora), enfim. As pessoas tomam como algo comum um segurança do presidente da República agredir jornalista no exercício de sua profissão”, exemplificou.
Um caso recente, e até inusitado, que igualmente mostra um grau elevado de naturalização da violência política foi o do prefeito do município de Borba, no Amazonas, que marcou uma luta de MMA contra um ex-vereador da cidade que fez críticas à sua gestão, sem que os dois sequer fossem praticantes do esporte. As cenas soaram muito mais como um acerto de contas a chutes e pontapés do que propriamente como uma competição, ainda que ambos tenham tirado proveito político do grotesco evento.
“Eu penso que a situação ali, além de naturalizar a violência como uma forma de manifestação política cada vez mais frequente, há também um processo de institucionalizar isso, usando o aparato do estado. E foi até uma questão de estratégia e de marketing políticos deles, de tentar surfar na onda do MMA, uma prática bem popular no Brasil e que tem uma grande audiência entre a população brasileira”, comentou.
Os áudios vazados de uma cerimônia de formatura de servidores da Agência Brasileira de Integência (Abin) que mostram o general da reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI, falando sobre “atitudes drásticas” de Bolsonaro contra o STF e sobre um delirante cenário de uma imaginária extrema esquerda que planeja matá-lo, para o cientista político, também ilustram esse cenário de violência política, embora não seja incomum no histórico brasileiro esse tipo de discurso voltado para determinados ouvintes.
“No caso do áudio vazado do general Heleno, há uma coisa que a gente deve levar em conta: o público para o qual ele está falando. Se do ponto de vista de qualquer pessoa racional esse tipo de fala é um completo delírio, para aquelas pessoas para quem ele está falando não é. Se levarmos em conta que órgãos de espionagem, como a Abin, ou como foi o caso do SNI (Serviço Nacional de Informação) durante a Ditadura Militar, formado por gente do próprio regime, afinal não era um órgão descolado do regime... Enfim, ele parece tentar deixar isso enraizado nessas pessoas, nesse público, porque para eles é algo completamente plausível e não algo de uma total insensatez como soa para nós”, disse.
Moreira crê que tudo não passa de uma disputa pelas tais “narrativas” tão ditas e condenadas pela extrema direita. Haveria a intenção de manter uma “hipótese pronta” no caso de ocorrerem eventos fora da normalidade, para justificar determinados posicionamentos e posturas desses grupos políticos radicalizados.
“É preciso se levar em conta que a disputa de narrativas faz parte da política nacional. Então, se ele anuncia isso para aquele público que está ali na frente dele, da Abin e tal, ele está preparando o terreno para que lá na frente, uma entre infinitas possibilidades, no caso essa de um atentado... E por quê? Embora improvável, isso é salientado para que, caso isso ocorra, a narrativa já esteja pronta. É aquela história: “ah, é a esquerda promovendo atentados contra o nosso presidente, o nosso salvador”, enfim. Isso é parte dessa disputa de narrativas, preparando o terreno para que seja mais fácil de se conduzir a linha narrativa que você quer, lá na frente, dentro de um universo de inúmeras possibilidades do que pode ocorrer”, lembrou.
Por fim, o doutor em Ciência Política pela USP diz que o cenário pode sim se agravar, tendo em vista o próprio comportamento de Bolsonaro e de seus seguidores desde a última eleição presidencial. Ele argumenta também que, embora haja discursos de que atos extremos possam ser praticados de lado a lado, historicamente é a extrema direita quem rifa a democracia brasileira e parte para atos de ruptura com contornos violentos.
“Há sim a hipótese de radicalização, mas parece muito claro que é, historicamente, a extrema direita quem sempre caminha nessa direção da violência. Historicamente é sempre ela que abre mão da democracia quando acredita que a democracia está ameaçada. Isso deve continuar dando a tônica daqui pra frente. Nós temos um cenário eleitoral, até pelo que as pesquisas indicam, com Lula disparado na frente, com Bolsonaro em segundo lugar tentando se garantir num segundo turno, que não há por que a gente imaginar que as coisas serão diferentes daqui em diante, já que a campanha e a eleição dele em 2018 tiveram essa característica da violência e esses três anos de governo também. Por que no último ano de mandato dele, quando ele justamente vai disputar uma reeleição, ele mudaria isso, esse comportamento? O fato é que essa violência deve continuar fazendo parte do cotidiano e, quanto mais tempo ela faz parte do cotidiano, mais as pessoas vão naturalizar qualquer prática de violência política”, concluiu.