Na sexta-feira (19) completa um ano do trágico e revoltante episódio de racismo que tirou a vida do soldador gaúcho João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte numa unidade do hipermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS), na véspera do feriado do Dia da Consciência Negra.
As imagens de um homem sendo agredido com repetidos golpes na cabeça por dois seguranças do estabelecimento, um deles policial militar, gritando alto enquanto era filmado por clientes, para depois ser lançado no chão e ter seu corpo pressionado pelos algozes, até sofrer uma parada cardíaca, chocaram o Brasil e repercutiram até no exterior, criando um paralelo com o caso do norte-americano George Floyd.
Agora, no primeiro aniversário do horrendo caso de racismo, a família de Beto Freitas, como era conhecido o soldador, exige Justiça e pede para que o caso não caia no esquecimento. Dos seis acusados pelo crime, apenas dois seguem presos aguardando julgamento, os seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva. O último era integrante da Brigada Militar, a força pública gaúcha equivalente à Polícia Militar.
Adriana Alves Dutra, fiscal da loja e que acompanhou toda a ação sem fazer nada para cessar as agressões, está em prisão domiciliar, enquanto Paulo Francisco da Silva, que impediu a viúva de Beto de ajudá-lo, e Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende, que auxiliaram na imobilização da vítima, seguem aguardando o andamento do processo criminal em liberdade.
Milena Freitas, companheira de Beto, fez questão de assinalar na véspera da trágica data que marcou para sempre sua vida o apoio às duas entidades que criaram o Coletivo de Advogados Cidadania, Antirracismo e Direitos Humanos, que atua de forma enfática acompanhando o andamento do caso. Ela disse ainda que deseja a criação de uma fundação sem fins lucrativos para preservar a memória do marido e do abominável caso de racismo que tirou sua vida e chocou o país.
“Que a violência, cujas vítimas, quase sempre são pessoas negras como Beto, alvos de preconceitos, discriminação e estereótipos seculares, e a impunidade não se naturalizem nem se repitam. É o que esperamos. O Brasil todo espera”, diz a nota divulgada nesta quarta-feira (17) pelo escritório dos advogados Hamilton Ribeiro e Carlos Barata e assinada pelo pai de Beto, João Batista Rodrigues de Freitas, e a viúva Milena Freitas.
Mas para a criação da fundação tão desejada por Milena, os R$ 115 milhões envolvidos num Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) precisaria ter outro destino e não o questionável fim que está sendo dado a ele.
Imbróglio sobre a "indenização" no TAC
O Coletivo Cidadania, Ação Antirracista e Direitos Humanos, composto pelos advogadosOnir Araújo, Hamilton Ribeiro, André Moreira, Cláudio Latorraca, Rodrigo Sérvulo e Dojival Vieira, que representam a Sociedade Soueuafrobrasileira e o COADE (Coletivo de Advogados para a Democracia) está questionando, e tentando invalidar, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões assinado entre o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos, em julho deste ano, relativo ao caso do assassinato de João Aberto Silveira Freitas, ocorrido numa das lojas da multinacional francesa em Porto Alegre, às vésperas do Dia da Consciência Negra de 2020. Freitas, que era negro, foi morto por asfixia, após receber vários golpes na cabeça, por dois seguranças do supermercado, um deles policial militar, quando saía do estabelecimento.
A Educafro, entidade que faz um importante trabalho de propiciar acesso à educação de qualidade a jovens negros, promovendo inclusão, e que atua em várias regiões do país, surgiu como parte interessada logo após a ocorrência do homicídio de viés racial que abalou o Brasil, conforme explica um dos advogados que questionam o TAC.
“O caso Beto Freitas ocorre na véspera do feriado do Dia da Consciência Negra, uma quinta-feira (19/11). O dia seguinte era uma sexta, feriado, e na sequência um sábado e um domingo. Na segunda-feira, dia 23, primeiro dia útil após o trágico ocorrido, a Educafro já protocolou uma Ação Civil Pública manifestando interesse no episódio”, explicou Dojival Vieira.
A ação que pede a revisão do TAC, ajuizada em 30 de setembro, de acordo com as entidades que a impetraram, afirma que o Termo de Ajustamento de Conduta firmado pela rede de varejo e as entidades, uma ligada à educação de jovens afrodescendentes e a outra de promoção e defesa dos Direitos Humanos, vinculada à Arquidiocese de São Paulo, orientado e com a participação da Defensoria Pública da União, da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, do Ministério Público Federal e do Rio Grande do Sul e do Ministério Público do Trabalho, não estaria respeitando a Lei da Ação Civil Pública (7.347/85), ao destinar os valores milionários especificamente à Educafro e ao Centro Santo Dias, em vez de dirigi-los ao Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), ou a conselhos do mesmo tipo em nível regional, como prevê o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/10), que alterou a Lei da Ação Civil Pública, legislação que determina, em ações de outras naturezas (assim como previa para questões étnico-raciais até a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010) que recursos provenientes de indenizações deve ser depositados em nome do Fundo de Defesa de Direitos Difusos.
O Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, um organismo vinculado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, é composto por inúmeros setores do governo e representantes de entidades civis que, reconhecida e oficialmente, representem os segmentos sociais afetados por esse tipo de conduta discriminatória e criminosa. No texto legal, este deve ser o destino de valores oriundos de ações e acordos judiciais em casos do tipo, ficando o órgão responsável pela destinação dos recursos em prol de um determinado setor social, com exceção dos litígios envolvendo racismo e discriminação, amparados pelo Estatuto de Igualdade Racial.
Dojival Vieira questiona qual foi o entendimento dado não só pela Educafro, mas por todos os órgãos públicos envolvidos na assinatura do TAC, para que os valores referentes ao caso Beto Freitas tenham ido parar num fundo privado.
“O que me causa curiosidade é saber qual é a explicação técnica, ou qual foi o drible, de todos os envolvidos, para que o montante que deveria ser revertido para um fundo público fosse gerido por um fundo totalmente privado”, questiona o advogado.
Onir Araújo, outro advogado que representa os grupos que lutam por direitos da população negra, segue na mesma linha e explica que a lei é clara com relação à destinação de recursos provenientes de casos como o de Beto Freitas.
“É importante que claro que as ações promovidas por não têm o condão de questionar a legitimidade que entidades têm de assinar termos de ajustamento de conduta, ou de ajuizar ações civis públicas, o que nós estamos questionando, além da cláusula que praticamente isenta o Carrefour de culpa, é a destinação dos valores, como está apresentado no TAC. O artigo 13° da Lei das Ações Civis Públicas, com a inclusão, em 2010, do parágrafo 2°, prevê que valores oriundos de acordos ou de TAC’s, como esse, ou ainda de sentenças, têm que ir obrigatoriamente para um fundo ou nacional, como o Conapir (Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial), ou a conselhos estaduais, como existem aqui no Rio Grande do Sul”, esclarece Onir.
Os advogados que contestam as tratativas também alertam para uma prática referida como “ato simulado”, que se configura numa tentativa de tergiversar e driblar o próprio propósito da Ação Civil Pública, uma vez que o TAC assinado transformou o que seria uma indenização em “doação”, permitindo que o Carrefour deduza esses valores do seu imposto, além de eximir a empresa de responsabilidade pelo trágico e repugnante episódio, abrindo caminho para que esta decisão sirva de prova futuramente na ação penal que corre na Justiça e que tem por objetivo apurar a culpa da rede de supermercados no homicídio.
Pelo TAC assinado entre o Carrefour, a Educafro e o Centro Santo Dias, R$ 68 milhões seriam destinados a bolsas de estudos para jovens negros, enquanto os advogados que realizaram o acordo representando as duas entidades receberiam R$ 3,4 milhões, embora os defensores pleiteiem agora na Justiça o recebimento de um valor muito maior, que ficaria entre R$ 11,5 e R$ 23 milhões. À viúva de Silveira, Milena Borges Alves, caberia apenas R$ 2 milhões, mesma quantia destinada a empresas de auditoria que acompanharão o trajeto legal percorrido pelo dinheiro. Cabe salientar que a companheira da vítima já recebeu uma indenização paga pelo multinacional, que se especula ser entre R$ 1,8 e R$ 2 milhões, visto que as tratativas que definiram o montante são confidenciais.
O problema não seria só esse: o “ato simulado”
A questões envolvendo o destino dos R$ 115 milhões não seria o único litígio a deflagrar a guerra judicial entre as entidades representadas pelo coletivo de advogados do movimento negro, a Educafro e o Centro Santo Dias, conforme relatado no início da reportagem.
Nos termos do texto assinado pelo Carrefour e pelas entidades beneficiadas, há dois pontos que despertaram a indignação dos autores do questionamento. Eles seriam, tecnicamente, um “ato simulado”, que ocorre quando o propósito de um acordo ou negociação disfarça seus verdadeiros propósitos e seu real objetivo.
O primeiro deles refere-se ao ponto número 5.2 do TAC, onde se lê que “Todas as obrigações assumidas pelos compromissários neste Termo não importam ato de racismo, discriminação ou violência e não poderão ser interpretados nesse sentido”. Ou seja, o instrumento acordado entre a rede de supermercados e as duas entidades, assentido pelo Ministério Público em várias esferas e pela Defensoria Pública, praticamente reconhece a inocência da multinacional francesa sob o ponto de vista penal.
“A Clausula 5.2 desse Termo de Ajuste de Conduta implica, e para perceber isso basta uma leitura singela, o não reconhecimento de qualquer responsabilidade por ato de discriminação ou racismo por parte do Carrefour”, denuncia Onir.
Para juristas e advogados, o trecho certamente pode ser utilizado pelo Carrefour em sua defesa na esfera penal, quando o Judiciário apurará se a empresa envolvida incorreu em crime e em qual grau, caso seja considerada culpada.
O outro ponto diz respeito ao pagamento dos R$ 115 milhões, que pelo TAC não seria a título de indenização, mas sim uma doação. De acordo com os representantes da Soueuafrobrasileira e do coletivo Advogados Pela Democracia, que buscam a revisão do termo, o Carrefour poderia, em face da legislação, enquadrar os valores como uma forma de renúncia fiscal, permitindo deduzir esse valor do Imposto de Renda da gigante do varejo.
Se tal possibilidade se concretizar, na prática, o Carrefour teria um termo assinado e anuído por várias esferas do Ministério Público e pela Defensoria Pública, que tem caráter executivo extrajudicial e indiscutível previsão e validade legais, para se declarar criminalmente inocente no caso do brutal assassinado de João Alberto Freitas e ainda encerrar o episódio sem desembolsar um centavo, uma vez que os R$ 115 milhões previstos no TAC seriam descontados do imposto recolhido pelo fisco brasileiro.
“Os desdobramentos técnico-jurídicos em função disso, implicam em que esses valores de R$ 115 milhões, distribuídos naquelas cláusulas do TAC, podem levar à conclusão de que não há ali uma indenização pela ocorrência de um ato ilícito, envolvendo a questão étnico racial, mas sim assumindo um caráter de doação. O que ocorre? Tecnicamente, no exercício dos próximos anos fiscais, o Carrefour, que só no 2° semestre de 2020, em plena pandemia, teve um lucro líquido em torno de R$ 2 bilhões, ele vai poder abater até 2% de seu imposto de renda. Na prática, o contribuinte é que de certa forma é vai arcar com o pagamento desses valores. Se você levar em consideração o lucro líquido médio do Carrefour, em menos de dois anos já terá deduzido esse valor e o contribuinte é ficaria com essas despesas”, conclui o advogado.
Órgãos públicos envolvidos no TAC se manifestam
Todos os órgãos públicos envolvidos na assinatura do controverso Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) se manifestaram por meio de uma nota conjunta, que é subscrita pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS), Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS) e a Defensoria Pública da União (DPU).
Leia a íntegra da nota:
É de amplo conhecimento que o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS), o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS), a Defensoria Pública da União (DPU) firmaram Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com Carrefour Comércio e Indústria LTDA, Comercial de Alimentos Carrefour LTDA. e Atacadão S.A., em 11 de junho de 2021, que totalizou o valor de R$ 115 milhões para estabelecimento de políticas internas de enfrentamento ao racismo e de reparação coletiva.
A atuação dos órgãos públicos se deu em razão da morte de João Alberto Silveira Freitas, no dia 19 de novembro de 2020, no Carrefour da zona norte de Porto Alegre (RS). Vale lembrar que João Alberto, um homem negro, fazia compras com a esposa quando foi abordado violentamente por dois seguranças no estabelecimento. Ele foi agredido com chutes e socos por mais de cinco minutos, sufocado e não resistiu. O espancamento foi registrado em vídeo por uma câmera de celular. A morte violenta de João Alberto ganhou destaque na mídia porque ocorreu às vésperas do Dia da Consciência Negra, 20 de novembro.
Após o fato, os órgãos públicos signatários do TAC instauraram procedimentos e ação civil pública com o fim de apurar a responsabilidade civil por danos morais coletivos, bem como o funcionamento de mecanismos de segurança privada.
Em 11 de junho de 2021, aproximadamente 6 meses após a morte de João Alberto, foi assinado o TAC. Conforme o acordo, cabe ao Carrefour a adoção e execução de um Plano Antirracista a partir do estabelecimento de ações que vão desde protocolos de segurança, relações de trabalho, canal de denúncias, treinamentos para dirigentes e trabalhadores em relação a atos de discriminação e no que consiste ao racismo estrutural, compromissos em relação à cadeia ou rede de fornecedores, até a reparação de danos morais coletivos. Nesse sentido, o valor acordado terá como destino iniciativas como a oferta de bolsas de educação formal (R$ 74 milhões), contribuição para projeto museológico (dois milhões), campanhas educativas e projetos sociais de combate ao racismo (R$16 milhões), além de projetos de inclusão social (R$ 10 milhões), entre outras.
A implementação das medidas previstas no TAC vem sendo acompanhada e fiscalizada pelos órgãos públicos, tendo já ocorrido diversas reuniões entre estes e representantes e advogados do Grupo Carrefour, de forma a dar cumprimento às obrigações assumidas no acordo.
Em se tratando de programas de amplo alcance social, com investimentos robustos, os órgãos públicos envolvidos têm adotado extrema cautela para que as cláusulas sejam executadas da maneira mais transparente possível e com maior eficácia social, o que demanda diversas deliberações e ajustes nos programas de ações a serem adotadas pelo Grupo Carrefour.
Em relação ao programa de bolsas destinado ao custeio de cursos de graduação e programas de pós-graduação, conforme estabelecido no Acordo, uma banca composta pelos órgãos públicos, representantes do Grupo Carrefour e uma representante da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores Negros e Negras (ABPN) tem se reunido regularmente para formulação de um edital de seleção de instituições de ensino superior que poderão se beneficiar do programa, condicionado à destinação exclusiva das bolsas a pessoas negras. O edital será lançado em breve.
Os valores destinados a projetos específicos já foram empenhados, conforme boletim anexo. Essas ações estão sujeitas à fiscalização pelos órgãos públicos e auditoria, conforme previsto no acordo.
As medidas estabelecidas no TAC referem-se àquelas firmadas a título de responsabilização coletiva, não interferindo nos demais compromissos públicos assumidos pelo Carrefour, assim como não interfere nos compromissos firmados em acordos individuais para fins de reparação à família de João Alberto Silveira Freitas.
Importante informar que a responsabilização criminal dos responsáveis pela morte de João Alberto não foi afetada pela celebração do TAC, seguindo o trâmite dos processos que visam à condenação dos responsáveis na justiça criminal estadual de Porto Alegre.
Cumpre esclarecer que não são verdadeiras as afirmações observadas em matérias de alguns veículos de imprensa de que as Organizações Não Governamentais Educafro e Centro Santos Dias ou qualquer outra entidade tenham sido direta ou indiretamente beneficiadas com qualquer valor estabelecido no acordo. Ainda, a demanda referente a honorários advocatícios não está prevista no TAC, e se encontra posta em litígio proposto por aquelas associações diretamente em face do Grupo Carrefour.
Para os órgãos públicos compromitentes, o acordo nos patamares negociados e firmados representa resposta relevante à sociedade e fixou um importante paradigma para o enfrentamento ao racismo e aplicação dos direitos humanos ao setor econômico privado em razão de práticas discriminatórias. Todas as providências à sua correta execução têm sido adotadas, em caráter preventivo, pelos órgãos competentes para fiscalização de sua execução, sem prejuízo de eventuais medidas corretivas, extrajudiciais ou judiciais, em relação ao compromissários em caso de inexecução ou execução não satisfatória, caso seja necessário.
Por ora, informamos que as tratativas para a execução do acordo têm transcorrido de forma adequada e razoável, de sorte que o eventual alongamento do prazo para início da execução de algumas ações tem se dado por deliberação colegiada dos órgãos públicos para que sejam aprimorados mecanismos de execução e de auditoria das obrigações.