Muita gente ainda tem na memória a corrida aos supermercados, nos anos 80 e 90, no dia do pagamento, na tentativa de comprar o máximo possível de itens para que o salário não evaporasse por conta da hiperinflação. O ano de 1989, no auge do caos econômico, fechou com inflação acumulada de 1.782,90%.
Claro que o cenário daquele Brasil, em várias perspectivas, era outro, mas todos sabem também que todo grande problema começa pequeno. Naquelas duas décadas, dezenas de ministros eram nomeados e demitidos após serem convocados para tentar acabar com o grande vilão da sociedade, que via seu dinheiro desvalorizar de um dia para o outro, muitas vezes perdendo todo o poder de compra num par de semanas. Foram sete planos econômicos, com os mais variados efeitos colaterais (catastróficos), até que em 1994 chegou o Plano Real e o Brasil pôde respirar aliviado.
Só que o governo Bolsonaro parece disposto a nos tirar até isso. A atual crise econômica brasileira tem origem na baderna promovida no setor por um governo que se diz ultraliberal, mas que na prática parece não entender sequer o que está acontecendo. Para muitos acadêmicos, não se trata de ter adotado uma política econômica boa ou ruim, mas sim de não adotar coisa alguma, deixando nas mãos de Paulo Guedes, cada dia mais desorientado e delirante, a condução de um dos aspectos mais importantes para a saúde da sociedade como um todo.
A reportagem da Fórum foi ouvir o economista Marco Antonio Rocha, graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre, doutor e professor da Unicamp, para tentar compreender como foi possível ocorrer aquela duradoura tragédia na economia brasileira, quais são os erros que vêm sendo cometidos neste momento pelo governo Bolsonaro e responder à pergunta que muitos brasileiros estão se fazendo: há risco da hiperinflação voltar?
Fórum – Como foi que a inflação virou hiperinflação naquele Brasil dos anos 1980?
Marco Rocha – “A primeira questão está relacionada ao endividamento externo e a dificuldade do país se financiar externamente. Isso acabou pesando na taxa de câmbio e foi um dos fatores propagadores da inflação, mas a gente também tem que entender que a economia brasileira na década de 80, por conta do histórico inflacionário anterior, era uma economia repleta de mecanismos de indexação, o que é muito típico de regimes de alta inflação, inclusive para poder torna a vida possível dentro de um sistema assim. Os contratos eram indexados e uma boa parte dos pagamentos das tarifas públicas era indexada, enfim. Vale lembrar também que, por conta do funcionamento do mercado financeiro por causa inflação, num último período, nessa época de hiperinflação, até as contas correntes eram quase que indexadas. Tudo isso fazia com que qualquer choque externo, ou um choque inflacionário via custo, ou via demanda, como no final do Plano Cruzado, fazia com que uma série de mecanismos indexadores acabassem propagando esses choques ao longo do tempo e tornando a inflação um episódio permanente.”
Fórum – Há muitas diferenças entre esses dois Brasis, claro. Mas há algo semelhante nesse aspecto?
Marco Rocha – “Essencialmente, se você olhar para a economia brasileira daquele período e para a economia brasileira de agora, contemporânea, ela não conta com essa série de mecanismos de indexação que faziam com que um choque inflacionário permanece ao longo do tempo. Uma memória que deve ser retomada é que, pela própria memória inflacionária brasileira, alguns desses mecanismos de indexação ainda estão presentes, como por exemplo nas tarifas de concessões públicas, nas tarifas de serviços públicos. Há, por exemplo, o atrelamento dessas tarifas ao IGPM, que faz com que elas sejam muito sensíveis ao choque cambial e ao aumento de preços das commodities e isso faz com que o aumento se propague, mas nem se compara com o que ocorria lá na década de 80. Não há mais o aluguel indexado, muito menos as contas-correntes, mas há ainda alguns elementos indexados.”
Fórum – De forma didática, o que é o fenômeno da hiperinflação, como a ocorrida no Brasil dos anos 80 e 90?
Marco Rocha – “Esses são fenômenos radicais dentro da economia. Geralmente estão relacionadas ou uma desestruturação da capacidade de fazer política econômica de um governo, quando por exemplo o governo não controla mais a sua capacidade de exercer o monopólio do meio circulante, ou não controla mais a capacidade política de ter as rédeas do orçamento, ou ainda ele está estrangulado por alguma restrição externa profunda que faça com que a economia tenha problemas graves de financiamento que vai repercutir na aceitação do seu próprio meio circulante. A hiperinflação cristaliza esse conflito distributivo. É o governo incapaz de controlar esse conflito e tudo explode nesse fenômeno hiperinflacionário. A super escassez, se for muito generalizada, também é um processo que pode provocar hiperinflação, só que se você fora analisar, ela está ligada a uma dessas coisas que mencionei anteriormente.”
Fórum – O Brasil está mais susceptível a esse tipo fenômeno quando deixa de ocupar uma posição de destaque no cenário Global, mesmo sendo um país periférico? A forma como nos posicionamos frente às questões econômicas externas deixa o cenário nacional mais ou menos propício a intempéries como a inflação?
Marco Rocha – “Eu penso que a questão é muito mais objetiva. Quem acompanha a economia brasileira minimamente sabe que é evidente que o ministro Paulo Guedes não sabe o que fazer. Ele não tem ideia de para onde está indo e não faz a mínima ideia de como resolver os problemas atuais da nossa economia. Nós temos um governo em eterna crise política, sempre dependendo de um equilíbrio muito tênue entre o Legislativo e os diversos crimes de responsabilidade que essa gente já cometeu, sempre nessa dependência do Legislativo para não romper regras fiscais autoimpostas, como o teto de gastos, e isso tudo cria um clima de incerteza brutal sobre a economia brasileira. Essas coisas tendem a fazer com que os investidores internacionais olhem com muita cautela e fuja de um cenário como esse.”
Fórum – A inflação atual, bem acima do foi registrado desde a chegada do Plano Real, há 27 anos, tem qual raiz?
Marco Rocha – “Há uma série de problemas que foram ocasionados pela desorganização e a posterior reestruturação das cadeias produtivas durante o período da pandemia. Por exemplo, além do preço dos combustíveis, você tem uma série de pressões de custo referentes ao aumento do frete marítimo, ou por exemplo referente à escassez de certos componentes, ou insumos, que são generalizados dentro dessas cadeias produtivas. A gente ouviu muito falar da falta de semicondutores, enfim. Tudo isso também causou pressões inflacionárias pontuais que estão se comunicando de certa maneira com essa má-gestão da taxa de câmbio que vem lá de 2020, e por uma série de incertezas da economia brasileira, está provocando essa desvalorização cambial, tudo isso se somou, e ainda por cima há esses mecanismos indexadores que eu já mencionei, como o IGPM. Acabou que todos esses elementos acabaram sendo indutores de repasse do câmbio aos contratos. O que dá pra dizer é que tudo isso operou para resultar nesse cenário inflacionário que a gente está vendo. O que não pode deixar de ser dito nesse cenário, e que ficou um tanto quanto evidente, é que nós ainda temos mecanismo de indexação na economia brasileira que tendem a propagar a subida dos preços ao longo do tempo.”
Fórum – Paulo Guedes está perdido? Pergunto porque é notável que suas falas são desconectadas da realidade, não citam os problemas centrais e parecem perdidas, além do fato dele não estar naquela correria típica que se espera de um ministro da Economia diante de um cenário de crescente inflação e gravíssima crise.
Marco Rocha – “Se há um consenso que une os economistas brasileiros, e olha que é muito difícil existir consenso entre economistas brasileiros, é sobre a total incompetência do Paulo Guedes. Ficou evidente que ele é um sujeito que tem um conhecimento teórico completamente obsoleto em relação ao mundo atual, que baseia seus conhecimentos em coisas que já são questionadas há muito, muito tempo, há décadas na literatura econômica internacional, seja por qual for a corrente teórica, e que ele está completamente perdido em relação a uma crise que ele próprio gerou. Nós estamos num ciclo de alta de preços de commodities, com a economia mundial ensaiando uma recuperação, então nós estamos longe de um cenário que era aquele da América Latina dos anos 80. O Brasil sempre ocupou uma posição periférica, só que dentro dessa posição periférica há momentos de crises muito agudas, como por exemplo na própria década de 80, e há momentos de relativa tranquilidade. Nós já passamos por um momento tumultuado com a pandemia, mas a situação da economia atualmente está muito longe de ser um período de turbulência generalizada. Mesmo assim, nós estamos vendo um ministro que está totalmente perdido, e ele próprio, junto com esse governo, criando uma crise autoimposta. Fora essa coisa, por exemplo, como a política ambiental, que toda hora fica à beira de uma sanção internacional, enfim, a forma como o Brasil está se colocando na geopolítica internacional e isso repercute diretamente na desconfiança, que reflete na taxa de câmbio.”
Fórum – O caso dos milhões de dólares numa offshore num paraíso fiscal é inacreditável. Nada aconteceu e ele segue no caso. Como você vê isso?
Marco Rocha – “Em qualquer lugar sério do mundo o ministro teria entregue o cargo. É uma questão flagrante de conflito de interesses, que deveria ter sido conduzida pelo próprio governo, questionada de maneira mais enfática pelo próprio governo, e ele próprio deveria ter prestado explicações à sociedade. Só que nada disso aconteceu. A coisa foi jogada para baixo do tapete e dada como letra morta, e ele segue aí.”
Fórum – Qual deveria ser, na sua visão, a primeira medida de urgência para se tentar controlar a inflação?
Marco Rocha – “Primeiro deveria ser estudado um imposto sobre exportação de commodities, para antes de tudo tentar promover um nivelamento dos preços domésticos com o os preços internacionais. É necessário desestimular as exportações e pelo menos dar alguma proteção à oferta doméstica. Isso já deveria estar sendo estudado com um certo cuidado e atenção. Outra coisa é criar um horizonte para a própria coisa, uma previsibilidade sobre a economia brasileira. A gente não sabe qual vai ser o regime fiscal, o arcabouço fiscal que vai reger a economia brasileira, que virou um caos, a gente não tem uma visão de onde pode vir o fator de demanda que impulsione o crescimento da economia brasileira. E, por último e acima de tudo, deveria ser revista a política de preços da Petrobras, porque ela está arruinando a economia brasileira. Você não pode desestruturar a economia do jeito que está se desestruturando apenas pra garantir a valorização de uma empresa no mercado e visar à distribuição de dividendos para acionistas. A Petrobras ainda é uma empresa pública, apesar de ser de economia mista, ocupa uma posição muito importante por fornecer um insumo produtivo chave, e isso (mudança da política de preços) deveria pelo menos ser discutido com a sociedade, deveria ser uma escolha pública.”
Fórum – Há risco de vivermos novamente aquele caos hiperinflacionário dos anos 80 e 90?
Marco Rocha – “Acho muito difícil. E digo o porquê. Porque apesar da existência de alguns mecanismos indexadores, eles são poucos e não têm a importância que eles tiveram no passado. Quando a gente está numa situação com existência de capacidade ociosa por parte da indústria, numa situação de desemprego elevado, subutilização da força de trabalho... Tudo isso, essas pressões que incidem sobre a renda das famílias brasileiras em termos da própria crise econômica, da falta de crescimento da economia, dificultam muito a ação desses mecanismos propagadores e endossadores do processo hiperinflacionário. Só se nós migrássemos para um cenário de crise econômica internacional muito severa, ou de crise política muito forte, aguda, no Brasil é que nós poderíamos ter uma aceleração desse processo. Com a demanda reprimida, como estamos agora, é muito difícil acreditar que um cenário de hiperinflação possa ganhar força.”