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[caption id="attachment_134975" align="alignnone" width="1024"] Foto: Cresative Commons[/caption]
O caso de Janaína Aparecida Quirino, uma mulher de 36 anos, pobre, com oito filhos, moradora de Mococa (SP) e que está presa há sete meses por tráfico de drogas, ganhou notoriedade após denúncia feita pelo professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oscar Vilhena Vieira, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, no último domingo (9). O alvo da denúncia foi a decisão da Justiça, que acatou pedido do Ministério Público, no sentido de que Janaína fosse submetida a um procedimento de laqueadura tubária “mesmo contra sua vontade”, conforme aparece nos autos.
A cirurgia foi realizada na Santa Casa de Mogi Guaçu (SP), por determinação do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, atendendo pedido do promotor Frederico Liserre Barrufin. A Corregedoria Geral da Justiça e a Corregedoria Geral do Ministério Público chegaram a abrir procedimentos para apurar a conduta do juiz e do promotor envolvidos no caso.
De acordo com a denúncia, o juiz não realizou uma audiência e, sequer, nomeou um defensor, determinando que Janaína fosse conduzida coercitivamente à cirurgia. “Quando o recurso do município chegou ao Tribunal de Justiça de São Paulo, a mutilação já havia ocorrido”. Segundo o artigo de Vieira, “em primeiro lugar o promotor utilizou-se de uma ação civil pública, que é um instrumento voltado à proteção de direitos difusos, coletivos ou individuais indisponíveis, para destituir uma pessoa de seu direito à dignidade e à integridade, além de constranger o município a praticar um ato manifestamente ilegal”. A reportagem entrou em contato com Oscar Vilhena Vieira, mas, via assessoria, foi informada de que o professor não tinha nada a acrescentar em relação ao que escreveu em seu artigo.
O juiz Gomes Júnior, da Vara de Mococa, divulgou uma nota na segunda-feira (10), na qual afirma que “a mulher, chamada Janaína Aparecida Quirino, não é, nem era, moradora de rua e concordou com a laqueadura proposta pelo Ministério Público de Mococa, conforme consta nos autos do processo, sem oferecer qualquer resistência”.
Além disso, a OAB de Mococa divulgou na terça-feira (12), em sua página no Facebook, a seguinte nota: “A Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Mococa, informa que por intermédio de seu presidente Dr. Fábio Ferreira dos Santos e Vice Presidente Dr. Victor Coelho Dias, foi realizada diligência junto à Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu, para conversa com Sra. Janaína Aparecida Quirino, ao qual passou pelo procedimento de laqueadura decorrente do Processo mencionado em diversos veículos da Imprensa do país, sendo que a mesma informou que estava ciente do procedimento e consentiu de forma voluntária, bem como não está arrependida”.
Controvérsias
No entanto, existem, no mínimo, muitas controvérsias na condução do processo. Na avaliação de Pedro Serrano, jurista e professor de Direito Constitucional, “é profundamente absurdo o que aconteceu, porque se formulou uma petição, como o próprio Tribunal de Justiça reconheceu, com um pedido juridicamente impossível, porque a lei proíbe expressamente esse tipo de laqueadura forçada, como foi feito. O pedido do promotor que iniciou a ação é muito claro no sentido de que deveria ser realizada a laqueadura com ou sem o consentimento dela”.
[caption id="attachment_134976" align="alignnone" width="780"] Foto: Reprodução/YouTube[/caption]
Serrano destaca que Janaína não foi tratada como ré, ou seja, como um ser humano que sofre um processo. Ela foi tratada como objeto, pois o promotor não moveu a ação contra ela, mas contra o município, pedindo que fosse determinado à prefeitura, que realizasse a laqueadura com ou sem o consentimento dela. “A mulher foi tratada puramente como objeto”, resume.
Em relação à autorização dela para a realização do procedimento, conforme citou o juiz Gomes Júnior e a nota da OAB de Mococa, Serrano ressalta: “Houve uma autorização dela para o procedimento lá no início, mas depois ela, como o próprio promotor assevera, mostra que havia voltado atrás na autorização, ou seja, a autorização era muito instável, e a lei exige que ela seja segura. Janaína é uma mulher que, como se reconhece no processo, é adicta a drogas, portanto, não é uma pessoa no exercício de sua plena consciência. Precisa ser cuidada pelo Estado e não tratada como objeto dessa forma atroz”.
O jurista destaca que “a notícia inicial foi contraditada por outras posteriores de jornais, que pura e simplesmente se satisfizeram em ouvir o presidente da OAB local que, de uma forma muito estranha, diz que foi à cadeia para visitar a presa e dela ouviu que teria autorizado o procedimento. Ora, uma presa nunca fala nada que contraria carcereiro, polícia, juiz ou promotor, todo mundo sabe. Ela está presa. Aliás, tem mais um elemento: realizaram a laqueadura com ela presa, após o parto de mais um filho”.
Ou seja, na avaliação de Serrano, há uma série de fatores que condenam a condução do processo. “A própria decisão do Tribunal de Justiça, não só reconhece a profunda ilegalidade e imoralidade do que foi feito, como determina que o processo vá às corregedorias da magistratura e do Ministério Público para apuração. Ou seja, o Tribunal de Justiça não foi omisso nessa questão, ele tomou a medida disciplinar que cabia tomar”.
O jurista e professor vai além: “Que eu tenha visto, essa é a decisão da Justiça brasileira que mais se aproxima do que se fazia na época do nazi-fascismo. É o tratamento do ser humano como ser não humano. Ela foi tratada como uma pessoa desprovida de condição mínima de proteção jurídica e política, a que faz direito qualquer ser humano. Eu insisto: me estarrece o silêncio da mídia, de quase todos os partidos, inclusive de esquerda, e dos movimentos sociais a respeito desse tema. Mostra a realidade: uma pessoa pobre, que não seja ligada a nenhum movimento político, está sujeita a ser tratada de uma forma não humana, sem que ninguém se queixe, sem ter voz”, completa.
Nos autos
O advogado Márcio Augusto Paixão, também especialista em Direito Constitucional, tem opinião semelhante: “Pelo que consta dos processos, Janaína havia consentido com a esterilização, mas, depois, manifestou desinteresse e resistência. Porém, o mais importante é que o juiz determinou que a laqueadura fosse realizada no momento do parto, independentemente da vontade de Janaína”.
[caption id="attachment_134977" align="alignnone" width="768"] Foto: Reprodução/Facebook Márcio Augusto Paixão[/caption]
Paixão se baseia nos próprios autos: “O ofício expedido pelo juiz ao estabelecimento prisional, tem o seguinte teor: ‘(...) a fim de determinar a realização do procedimento de laqueadura tubária compulsória no momento do parto e em cumprimento à decisão de fls. 30-31 (...)’. Laqueadura compulsória é o que restou ordenado pelo magistrado, a ser realizada no momento do parto”. Além disso, segundo o advogado, o promotor de Justiça peticionou em três oportunidades, requerendo a realização de laqueadura compulsória.
Na avaliação do especialista em Direito Constitucional, se Janaína acabou sendo consultada antes ou durante o parto, sobre a conveniência de realizar a laqueadura, e então consentiu, isso não muda o fato de que o promotor postulou que o procedimento fosse realizado sem considerar seu desejo, bem como não altera o fato de que o juiz já havia determinado a realização da esterilização, independentemente da vontade dela.
“A manifestação posterior da vítima, concordando com a esterilização, em nada altera o fato de que tudo foi realizado de forma absolutamente contrária à lei. Juiz e promotor, nesse caso, podem ser responsabilizados até criminalmente, conforme os artigos 10 e 15 da Lei Federal nº. 9263/96”, explica. Artigos e incisos referentes ao tema:
O que diz a lei
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
(...) § 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
- 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
- 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.