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O ambiente ainda é dividido entre casa grande (onde pode-se dormir inclusive no "Quarto do Barão"), ruínas das senzalas e "Cozinha dos escravos", onde são realizados chás noturnos, jantares e outras atividades
Por Júlia Dolce, no BdF
"Este chão é abençoado, serão felizes todos os que aqui pisarem, porque o meu sinhô era bom" é uma frase pintada em uma placa que recepciona os hóspedes do Hotel Fazenda Solar das Andorinhas, em Campinas, interior de São Paulo. Atribuída a uma mulher escravizada, identificada apenas como Clemilda e que supostamente alcançou a extraordinária longevidade de 120 anos, a frase é uma das marcas que romantizam e normalizam o período escravocrata na hospedaria.
O local é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por abrigar a antiga Fazenda Duas Pontes, propriedade do Barão de Itatiba, que chegou a escravizar 70 pessoas. O ambiente - ainda dividido entre casa grande (onde pode-se dormir inclusive no "Quarto do Barão"), ruínas das senzalas, e "Cozinha dos escravos", onde são realizados chás noturnos, jantares e outras atividades - chega a incomodar alguns hóspedes.
Para Fran*, que ficou hospedada no hotel para um Congresso do qual participou, a forma como a história é preservada pelo local pode ser caracterizada como apologia à escravidão. "Eu nunca tinha estado em um local do tipo. Mexeu muito comigo, foi um misto de angústia, de ficar imaginando como seria minha vida em um local como esse há tempos atrás. Fiquei me perguntando se só eu sentia esse desconforto, porque me parece que não há uma intenção de fazer uma crítica ao processo histórico deste local", opinou.
Engenheira agrônoma, Fran possui ascendência quilombola, e conta que chegou até mesmo a ser "confundida" com funcionários do Hotel no primeiro dia de sua estadia. "Eu estava perto da recepção e um hóspede chegou perguntando informações do Hotel. Não é a primeira vez que isso aconteceu, mas é uma reafirmação da desigualdade racial no Brasil e de como as pessoas aqui revivem o passado. Há poucas pessoas negras como hóspedes", afirmou.
No site do Hotel, uma série de textos destacam que o ambiente é relaxante e perfeito para férias em família. Um texto escrito por uma jornalista e publicado no Site destaca que o ambiente, principalmente a "Cozinha dos Escravos", é "mágico". Para Fran, entretanto, foi impossível "relaxar" durante a estadia no Hotel. "Tudo aqui remonta a um processo muito violento. Para mim é muito mais melancólico do que um espaço de paz. É uma mercantilização do sofrimento histórico do povo preto", denunciou.
Uma funcionária entrevistada pela reportagem, trabalhadora do hotel há mais de 15 anos, revela que o desconforto é comum entre os hóspedes. Enquanto lavava a louça na "Cozinha dos Escravos", ela contou que desde pequena morava na região, e que tinha muito medo da "Fazenda Mal Assombrada", que ficou fechada por 20 anos entre os anos 1950 e 1970, quando foi leiloada para os atuais donos do hotel.
"Era um mato só aqui dentro, meu pai falava que era mal assombrado. As pessoas enxergam os escravos. Tinha um hóspede que sentava aqui na cozinha e dizia que via vários trabalhando. Eu sou espírita, então percebo algumas coisas, e eles sofreram demais, né? As crianças têm medo, às vezes chegam até a porta desta cozinha e choram, falam que não vão entrar", contou.
Procurada pela reportagem presencialmente, por telefone e por e-mail, a gerência e a diretoria do Hotel Fazenda Solar das Andorinhas não quis se pronunciar sobre a história e ambientação do hotel.
Fazenda Santa Eufrásia
Não é raro o turismo que aproveita antigas fazendas e casas grandes para ressaltar como positivo esse período da história brasileira. Em uma breve busca na internet é possível localizar uma séries de hotéis fazenda que se colocam como uma potencial "volta ao passado", elogiam barões e fazem poucas menções às pessoas escravizadas, ressaltando, quando muito, que após a abolição da escravatura elas "escolheram permanecer no local".
Um caso emblemático ficou famoso após ser mencionado em uma matéria do site The Intercept, em dezembro de 2015. A Fazenda Santa Eufrásia, localizada em Vassouras (RJ) e parte do mapa da cultura do estado, realizava encenações romantizando o período da escravidão. Em um vídeo produzido pelo veículo jornalístico, as encenações da herdeira e proprietária da fazenda, Elizabeth Dolson, indignaram os leitores. “Racismo? Por causa de quê? Por que eu me visto de sinhá e tenho mucamas que se vestem de mucamas?", questionou Dolson.
O caso levou o Ministério Público Federal de Volta Redonda e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro a entrarem com um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) contra a fazenda, celebrado no dia 6 de maio deste ano, com o objetivo de assegurar o fim das encenações sobre escravidão e estabelecer medidas reparatórias.
Segundo o Procurador da República responsável pela TAC, Julio José Araujo Junior, a opção pela ferramenta jurídica foi justificada por uma tentativa de evitar conflitos judiciais, já que a prática de "naturalização da inferiorização dos negros na recepção a turistas" é muito comum na região serrana do Rio de Janeiro. "Minha ideia nunca foi buscar um embate de criminalização, mas aproveitar a discussão para fazer uma mudança. A situação da Santa Eufrásia era extrema, mas estamos entrando com recomendações em outras fazendas dos tipos. Aos poucos, vamos plantando sementes", afirmou.
O TAC traz uma série de sugestões que estão sendo implementadas pela fazenda, desde a instalação de placas contando a história da escravidão como crime contra a humanidade, até a abertura mensal do espaço para realização de atividades culturais das comunidades quilombolas da região. "Toda vez que ela realizar uma visita vai ter que mostrar um vídeo contando essa história, um texto. No começo a dona da fazenda não entendia bem. A idealização do barão em Vassouras é algo impressionante, mesmo que a reportagem tenha gerado indignação no Brasil inteiro, na cidade as pessoas não entendiam o motivo", contou.
Leia a reportagem completa no Brasil de Fato
Foto: Reprodução/Hotel Fazenda Solar das Andorinhas