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Perto de 100 estabelecimentos encerraram atividades, muitos deles locais tradicionais que faziam parte da história da cidade, como o Bar Semente e a Gafieira Estudantina
Por Maurício Thuswohl, na Revista do Brasil
Filho da dor e pai do prazer, síntese da alma carioca, até mesmo o poder transformador do samba pareceu fadado a abandonar o Rio de Janeiro neste lamentável ano de 2017. Em meio a um cenário que mistura falência financeira do estado, crise orçamentária no governo e na prefeitura da capital, atrasos nos pagamentos de fornecedores e salários, aumento generalizado da violência e piora dos serviços públicos, uma das maiores manifestações culturais – e alegrias – do povo do Rio e dos turistas que visitam a cidade sofreu com o fechamento de locais emblemáticos.
Segundo o Sindicato dos Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro, até o meio do ano pelo menos 70 estabelecimentos foram fechados, e a estimativa é que o total de fechamentos em 2017 se aproxime dos 100, consequência direta da crise financeira que afastou a clientela e também fez cessar os investimento no setor. Em meio a tantas vítimas, o fechamento de alguns locais tradicionais e que fazem parte da história cultural da cidade doeram fundo na alma daqueles que amam delícias cariocas como o samba, a roda de samba, o choro, o jongo e a música de gafieira.
Nesta lista está o Bar Semente, símbolo da revitalização cultural e econômica do tradicional bairro boêmio da Lapa (região central) no final do século passado e, mais do que isso, principal vetor do movimento de revalorização do samba de raiz que começou no Rio e depois se espalhou por todo o Brasil. Outra vítima da crise é a gafieira Estudantina, talvez o maior templo brasileiro da dança de salão. Até mesmo o restaurante Petisco da Vila, localizado no também bairro boêmio de Vila Isabel, na zona norte, e ponto de encontro de sambistas anônimos e famosos, foi obrigado a encerrar suas atividades.
O caso do Bar Semente é um exemplo que parece refletir perfeitamente a sensação de que o Rio, assim como todo o Brasil, viveu em 2017 um ano de interrupção e retrocesso no processo de abertura e democratização que vinha experimentando há alguns anos na área cultural. Aberto em 1998, o Semente sempre apostou no samba de qualidade e revelou ou consolidou nomes como Teresa Cristina, Moyseis Marques, Zé Paulo Becker e o grupo Casuarina, entre outros. Além do valor da prata (ouro) da casa, o Semente conquistou frequentadores do porte de Chico Buarque, Guinga, João Bosco, Marisa Monte, Ney Matogrosso e Moacyr Luz, entre outros, que muitas vezes tomaram o violão ou o microfone para canjas inesperadas em noites memoráveis.
Tanto prestígio não impediu que a crise financeira, aliada à desordem urbana e ao aumento dos roubos e furtos na região da Lapa, decretasse o fim do Bar Semente. Em 2018, ano em que deveria comemorar 20 anos de existência e ser celebrado por sua importância histórica, o local que é ícone da retomada do samba de raiz estará com suas portas fechadas. Em outubro, ironicamente apenas três meses após receber o Prêmio Música RJ, concedido pela Secretaria Estadual de Cultura por sua “contribuição à música do Rio de Janeiro”, a casa anunciou seu fechamento.
Teresa Cristina não hesita ao apontar os principais responsáveis pelo fechamento do palco onde sua carreira decolou. “Fiquei bem triste com o fechamento do Semente. Encaro isso como mais uma consequência da falência do Rio e do desmonte cultural generalizado que vem acontecendo. O PMDB matou nossa cidade e o prefeito Marcelo Crivella veio com a bala de prata”, afirma a cantora.
Figura sempre presente nos atos político-culturais contra os retrocessos promovidos pelo governo de Michel Temer, Teresa Cristina lamenta que este processo esteja se concretizando. “Minha impressão é que ficamos anestesiados depois do golpe. Efeito rivotril na caixa d´água. Ninguém se abala com nada, e olha que é tudo preto no branco, não precisa nem de metáforas. Os vilões venceram”, diz.
Ela lamenta a passividade da sociedade frente aos retrocessos. “Depois daquele áudio do senador Romero Jucá, ele continua sendo líder do governo. O STF (Supremo Tribunal Federal) continua acovardado. Como dizia aquele personagem do Chico Anysio, o deputado Justo Veríssimo, o povo continua sendo só um detalhe”.
Tristeza no salão
O encerramento das atividades também foi a única opção que restou à Gafieira Estudantina Musical, a mais conhecida e tradicional do Rio, que, com dívidas acumuladas que beiram os R$ 800 mil, foi obrigada a cumprir uma ordem de despejo e baixou definitivamente suas portas em outubro. Inaugurada em 1928, no bairro do Flamengo, por um grupo de amigos que queria divulgar a dança de salão, a Estudantina se mudou quatro anos depois para a Praça Tiradentes, no centro da cidade, onde permaneceu até este ano como uma das casas simbólicas da noite carioca.
Entre os milhares de turistas que a Estudantina recebeu em todos esses anos, se incluem alguns nomes mundialmente conhecidos que sempre batiam ponto no salão da Praça Tiradentes quando em visita ao Rio. Costumavam passar para bailar na gafieira carioca celebridades como o ator italiano Marcelo Mastroianni, o cantor inglês Mick Jagger ou o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, entre muitos outros.
Berço do samba de gafieira, estilo criado no Rio, a Estudantina foi tombada em 2012 como Patrimônio Cultural Carioca. No entanto, assim como no caso do Bar Semente, o reconhecimento oficial soa agora como piada de mau gosto, já que de nada serviu para a preservação do espaço que, à época da premiação, foi distinguido pelas autoridades por “abrigar uma manifestação cultural típica do estilo de vida carioca”.
Sem samba, sem petiscos
O samba carioca foi golpeado em 2017 até mesmo pela crise que levou ao expressivo fechamento de restaurantes. Inaugurado em 1969 pelo comerciante português Manoel de Souza e, desde então, tradicional ponto de encontros de sambistas de várias vertentes e de admiradores do samba, o restaurante, Petisco da Vila fechou suas portas em março.
Ao longo dos anos, o restaurante de Vila Isabel que, como o nome sugere, era também conhecido por seus variados e gostosos petiscos, era um local onde não raro o cliente podia sentar-se à mesa ao lado de figuras como Cartola, Jamelão, Beth Carvalho e Neguinho da Beija-Flor, entre outros. Sem falar em jornalistas próximos à música, como Jaguar, Sérgio Cabral (pai) e João Máximo, entre outros.
Diante da morte que já estava anunciada, vários sambistas se solidarizaram ao Petisco – Martinho da Vila, talvez o seu mais emblemático cliente, chegou a comemorar seu aniversário em uma feijoada no restaurante, um mês antes de seu fechamento. O esforço, no entanto, de nada adiantou: “Para mim, fechar o Petisco da Vila é como saber que Noel Rosa morreu de novo”, resume José de Souza, que era gerente do estabelecimento.
Foto: Gafieira Estudantina Musical