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O país se divide entre amigos e inimigos, as ideias de cada qual estão aderidas aos rótulos vermelhos ou azuis das pessoas. Um juiz soberano decide a aplicação seletiva de estados de exceção, é claro, em nome de um Bem maior. Um bem que jamais poderia ter sido alcançado não fosse por meio da suspensão da ordem até então em vigor
Por Christian Ingo Lenz Dunker
Sempre me admirei quão pouco discutíamos, nos Brasil, o sentido da palavra justiça. O problema da existência e confrontação entre diversos tipos de justiça e suas respectivas racionalidades, reduziu-se, por aqui, em duas práticas diferentes, ambas com uma persistente fragrância de “déficit de realidade”. Por um lado temos o nosso institucionalismo capenga que tira do bolso, a qualquer hora, brados em torno dos “meus direitos”, sempre sacados como argumento de força e legitimidade. Como se dentro dos “meus direitos” tudo fosse permitido. Como se a lei se fizesse acompanhar de uma sombra de indiferença e imunidade ética. Como se o permitido fosse equivalente da razão. Aqui esquecemos que há uma distribuição não equitativa dos meios e instrumentos jurídicos. Contra os excessos deste formalismo normativo, levantam-se as antigas práticas de compensação caseira. Ali onde o Estado não alcança, por que não quer ou porque não pode, funciona a “lei real” dos acertos, proteções negociadas e concessões. Esta oscilação histórica que faz da justiça um muro a serviço da segregação, onde de um lado está nosso individualismo inacabado e do outro nosso familiarismo de ocasião que parece ter chegado ao seu último capítulo.
A antiga tese da esquerda paranoica de que os empreiteiros e banqueiros, em conluio flutuante com o agronegócio e a imprensa, dominavam qualquer governo que ousasse chegar ao poder, apresentou-se desvestida e crua, como realmente é, ou seja, tudo verdade. Não é por que você é paranoico que os outros não te perseguem. Desde a Constituição de 1988 a regra do jogo democrático era seguida facultando todo tipo de corrupção dentro da lei. Tudo isso encoberto por laudas de ordenamento jurídico, cascatas de recursos e liminares, lagoas de foros privilegiados e rios de Estados Democráticos de Direito. O nosso fetiche com a forma da lei nos impedia de perceber que direito não é justiça, e que tudo pode ser feito dentro da lei e ser, ainda assim, imoral. A legitimidade não deriva apenas do apego formal ao processo. Esta severa perda da realidade da justiça, em nosso apego institucionalista, disseminou-se em uma arte de governar cuja regra é o manuseio das exceções. Resumo da ópera: aos amigos tudo, aos inimigos a lei.
Seria preciso então uma espécie de esquizoidia metodológica que habilitasse alguém a dirigir processos, denunciar conivências e atacar o mutualismo Estado-Corporações, desde dentro, sem ser ele mesmo afetado pela lei. Não são as instituições apodrecidas, mas o ser supremo em moralidade que nos salvará da corrupção. Ainda que este anjo exterminador encarne nada menos do que o individualismo egoísta liberal, ficava cada vez mais óbvio que a verdade não poderia ser revelada senão se empregasse os meios que corrompem seu processo. Uma lei que não se aplica a quem a enuncia. É a antiga tese da direita esquizoide de que podemos deixar o livre mercado nos guiar com sua mão invisível, desde que o Estado continue a nos alimentar com contratos de exclusividade. É a ética da vontade forte, mas para poucos. Da violência em nome da lei, mas a serviço de alguns. Autoridade pura, conferida aos justos e eleitos. Resumo da ópera: justiça é para quem precisa, aos ricos proteção, aos pobres opressão.
Juntando os dois lados do muro da justiça, que vigorou até hoje no Brasil, chegamos a uma versão do que Bertrand Russel chamou de paradoxo do barbeiro. Imaginemos uma cidade na qual existe um barbeiro cuja lei é barbear todas as pessoas que não se barbeiam a si mesmas. Segundo esta lei se você pela manhã, não se põe diante do espelho e corta a sua própria barba ela será, necessariamente, feita pelo tal barbeiro. Diante deste ordenamento jurídico a pergunta é: e o próprio barbeiro? A resposta, adaptada para nossa atual situação, pode ser chamada de o dilema de Moro. Se ele não faz a sua própria barba, então ele entra na cláusula “aqueles que não se barbeiam” logo, por definição, “ele se barbeia a si mesmo”. Contudo, se examinamos o caso inverso, no qual a realidade diz que “ele faz a sua própria barba”, podemos verificar que isso acontece somente porque ele está incluído no grupo dos que “não fazem a própria barba”. Resultado, se ele faz a barba é porque ele não a faz, e se ele não a faz é porque ele a faz. Contradição. Como o barão de Münchausen que tendo entrado com seu cavalo num poço de areia movediça, escapa dele agarrando seus próprios cabelos e puxando-se com as próprias mãos, com toda força, para fora do poço. É assim que acompanhamos a formação de uma espécie de anti-imagem de nosso tradicional judiciário: prendendo ricos, julgados com rapidez, em colaboração com instituições internacionais, empregando a delação premiada, por meio de conduções coercitivas e vazamento estratégico de informações. Estamos diante de uma exceção ou de um paradoxo? Seria um caso em que os fins justificam os meios? Por trás disso tudo nosso barbeiro está a empregar mãos limpas ou mãos sujas? Resposta da barbearia: se elas estão limpas é porque estavam sujas, e se elas estão sujas é porque estavam limpas. A justiça continua a ser o manejo de exceções. Voltamos a privar a justiça para quem precisa dela.
No terreno da filosofia do direito Carl Schmitt dedicou-se a pensar um problema análogo. Para ele todos os temas da política moderna são versões deformadas de conceitos originariamente teológicos, e o ponto de partida para a formação do campo político é a divisão primária entre amigos e inimigos. Para ele o soberano é aquele que decide sobre a exceção, e somos todos ou executores da lei ou soberanos. Segundo sua doutrina decisionista as ideias e as pessoas tornam-se indissociáveis e o ato de vontade supera a lei. Contudo, há enunciados dos quais ninguém pode ser agente. Ninguém, por exemplo, poderia falar pela humanidade ou pela justiça. Depois de sua teoria da constituição e de sua distinção fundamental entre o campo do politico e as diferentes políticas que dele se ocupam, Schmitt chega a pensar uma teoria dos valores. Segundo ela o valor maior tem o direito e até mesmo o dever de submeter o valor inferior, e o valor, como tal tem toda a razão em aniquilar o sem-valor como tal.
Espero que esta breve síntese permita sugerir como nosso momento é schmittiano. O país se divide entre amigos e inimigos, as ideias de cada qual estão aderidas aos rótulos vermelhos ou azuis das pessoas. Um juiz soberano decide a aplicação seletiva de estados de exceção, é claro, em nome de um Bem maior. Um bem que jamais poderia ter sido alcançado não fosse por meio da suspensão da ordem até então em vigor. O truque aqui é que a ordem até então em vigor era composta por uma espécie pela flutuação de conteúdos e exceções, de casos e pessoas. Formalismo que acasalava o Estado com as corporações, as corporações com as eleições e as eleições com a reprodução da lei e sua consequente corrupção. A aplicação prática da lei cabia aos síndicos especialistas em regulamentos e suas entrelinhas, classe da qual Eduardo Cunha é o exemplo maior. Surge então um juiz no país dos Barbados que decide pela aplicação da lei em uma nova forma. Um ato soberano que faz nosso fetichismo legislativo gozar mais uma vez. Desta feita ungido e reunido com a aura de excepcionalidade ética. Assistimos o surgimento de uma nova era, ainda que o calendário do novo início esteja por ser feito. Por isso ainda não sabemos se devemos contar desde 1994, 1998 ou 2006. Em seu ponto de transição, as antigas leis não valem mais e ainda não temos as novas para nos limitarmos. Só dispomos do soberano para nos guiar. Ele é a encarnação ao desejo popular de justiça com as próprias mãos. A extensão de realidade que faltava para que a lógica do Capitão Nascimento, herói do filme Tropa de Elite, deixasse de ser apenas ficção e ganhasse vida real em nossa teologia política. O semi-valor da corrupção pode e deve enfim ser aniquilado pelos novos valores nascentes. E quem se opõe a eles só pode representar a conservação do passado e a conivência com a corrupção.
Justiça não é para quem precisa, mas para quem pode. Este poderia ser o lema do principal teórico do direito do regime nacional socialista, na Alemanha de Hitler, o artífice jurídico do nazismo: Carl Schmitt.
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