Para um país que ousou sonhar com a educação libertadora de Paulo Freire, a tendência agora é militarizar as escolas públicas consideradas “problema”. Já existem 93 escolas públicas no Brasil em que os alunos têm de bater continência para policiais armados na entrada das aulas, o cabelo tem de ser quase raspado para os meninos, as meninas têm de prendê-lo. Maquiagem, brincos e esmalte nas unhas, nem pensar. O uniforme é como uma farda.
Namoros são proibidos. O afeto é substituído por aquela gritaria típica de quartéis: “Sim, senhor!” “Não, senhor!”
O argumento mais usado para defender a militarização é o de que a polícia põe ordem na bagunça e permite que, assim, a escola melhore sua capacidade de difundir conhecimentos.
É com base nessa idéia que o governador Marconi Perillo, do PSDB de Goiás, tem investido pesado na militarização das escolas. Goiás tem o maior número de escolas assim (26) e ele promete inaugurar mais 24 até o final do ano. Mas será que a disciplina dos quartéis é boa mesmo para a escola?
Para conhecer mais de perto essa realidade, Jornalistas Livres enviaram a repórter Isadora Carvalho até Manaus, capital do Estado do Amazonas, para mergulhar na realidade do Colégio Militar Waldock Frick Lyra, que em 2012 foi entregue pelo governo para ser administrado pela PM. O Amazonas tem quatro escolas militares em funcionamento.
É bom esclarecer de cara que os métodos dos quartéis ainda não conseguiram nem começar a tirar a Waldock da rabeira do Enem. Ao contrário.
Em 2012, a Waldock estava na posição 10.537º do ranking nacional. Em 2013, caiu para a posição 10.965º. Em 2014, despencou mais um pouquinho: ficou na posição 11.065º, entre um total de 15.639 escolas que participaram do Enem. Ou seja, existem 11.064 escolas em melhores condições do que a Waldock para colocar seus alunos em uma faculdade. Mas essa não é a pior parte. Confira a seguir o relato de Isadora Carvalho. “Tudo que chama a atenção, nós tentamos tirar”
Cheguei no Colégio Militar Waldock Frick Lyra pela manhã, período em que o Ensino Médio funciona, na hora do intervalo dos estudantes. A cantina estava repleta de adolescentes fardados. Uniforme em molde militar: calça cinza, e camisa marrom clara, com insígnias da escola e da PM. Todos, absolutamente todos, estavam de boina na cabeça. Boina militar.
Na escola não é permitido cabelos soltos, maquiagem, brincos. Todos têm que usar camisas para dentro das calças ou das saias. As saias das meninas são até o joelho e elas usam sapato com um pequeno salto. Todos são muito parecidos.
As vestimentas são análogas às dos policiais. Portanto, se uma policial feminina não usa brincos ou cabelos soltos por uma questão de segurança quando vai trabalhar em campo (na rua), o modelo é aplicado na escola: as garotas seguem o mesmo padrão. Padronizada também é a cabeça dos meninos. Todos com os cabelos quase raspados.
“Tudo o que chama atenção, nós tentamos tirar” explica o Major Alysson, diretor da escola, que depois de uma rápida apresentação, permitiu que eu tirasse fotos. De lá, os estudantes foram para uma quadra coberta. Esse era o primeiro dia de aula, e havia uma formalidade militar para cumprir. Os alunos formaram filas e aprumaram rigidamente seus corpos, bateram continência e gritaram em conjunto o brado da escola: “Disciplina, Honra e Educação!”
As dezenas de fileiras, milimetricamente organizadas fizeram diversos movimentos parecidos com os do Exército, saudando os militares-professores que conduziam a ação. Intercalando mecanicamente entre “descansa” e “sentido”, uma coreografia nas quatro direções (norte, sul leste oeste) foi se passando. Ao final, os alunos saíam da quadra, ainda em fileiras, em direção às suas salas.
Só ficaram algumas turmas. Estas passaram por um ritual especial, mais rígido. De repente, o professor gritou “QUEM FOI?”. Ele exigia que um aluno, que estaria com um celular na mão, se apresentasse imediatamente. Duas meninas de cabeça baixa se apresentaram. Uma delas denunciou: “O celular é dela, professor.”
As duas foram mandadas para diretoria.
Segui para a sala do diretor Alysson. O diretor me esperava com um quase sorriso. Ele está à frente da gestão da escola desde de agosto de 2014. Chegou a dar aulas de física antes de entrar para a polícia e hoje, além de diretor, tem a patente de major.
Segundo o major Alysson, antes de a PM comandar a escola, os muros eram pichados, os professores não conseguiam dar aulas, os alunos eram rebeldes e havia indícios de tráfico de drogas.
De forma superficial, sem muitos detalhes, disse que nessa época houve um homicídio na região. Relacionou o crime a alunos da escola. É desse episódio nebuloso que proveio a determinação do governador do Amazonas, na época Omar Aziz (PSD-AM), para que a PM começasse a dirigir a escola.
José Melo era o vice de Omar Aziz quando a Waldock foi militarizada. Hoje governador, pelo PROS, Melo é autor de outras “obras-primas” amazonenses. Ele desmantelou a secretaria de Ciência e Tecnologia, que foi anexada à secretaria de Educação. Além disso, capitaneou a retirada da questão de gênero e LGBT do Plano Estadual de Educação. A assessoria da Secretaria de Educação afirma que o entendimento é de que esta não é uma questão para ser discutida dentro da escola.
Houve manifestação do movimento estudantil, LGTB e Trans, mas que não conseguiu fazer face à mobilização dos católicos carismáticos. Por fim, o Estado do Amazonas sofre ainda com um corte na verba destinada a apoiar e financiar o ingresso de estudantes na universidade.
Sem namoro, sem celular, sem atrasos
Voltando à Escola Waldock Fricke Lyra, o major Alysson admite que o começo da implantação da gestão militar não foi fácil. Os pais dos alunos não gostaram das novas exigências, com suas regras rígidas. É que, além da maneira de vestir, os alunos foram também proibidos de namorar ou de demonstrar algum afeto pelo sexo oposto (só podem conversar). Usar o celular é vetado absolutamente (inclusive se eles precisarem falar com os pais). Se chegarem atrasados, voltam para casa.
Cerca de 100 alunos não se adaptaram e preferiram sair da escola. Hoje, são 1.994 alunos. Mais de 10 professores pediram transferência para outra escola.
Apesar disso, a escola colheu resultados. Conquistou alguns prêmios nas Olimpíadas de Matemática e todos os dias tem pais na porta da escola, tentando vagas para seus filhos.
Perguntei qual era a estratégia motivacional para os alunos, e o major respondeu: “A mesma que a usada para os militares.” Os alunos ganham medalhas, brevês, alamares etc. se conseguirem tirar boas notas e cumprir a parte da disciplina melhor do que os outros.
Cada série tem uma patente e, a partir da sexta série, os estudantes podem concorrer às vagas de: sargento, subtenente, tenente aluno, major aluno, tenente coronel aluno, coronel aluno (igualzinho às patentes da PM). Quando um aluno é condecorado, recebe os sinais de sua diferenciação dos colegas. Seu retrato é exibido no corredor e ele passa a ostentar acessórios no uniforme.
O major Alysson diz que muitos alunos querem seguir a carreira militar, mesmo que, segundo ele, não haja esse tipo de encorajamento por parte dos policiais. Segundo ele, a escola incentiva os alunos a escolherem cursos que sejam difíceis de passar no vestibular, como engenharia, direito e medicina. Bullyng oficial e outras humilhações Para os alunos que não cumprem as regras da escola existem diversas formas de punição: isolamento, atividade obrigatória (como ficar lendo um determinado livro no intervalo), repreensão, suspensão e?—?por último?—?a expulsão.
Mas o major afirma que os alunos são muito bem comportados e aprenderam as respeitar as regras. “A punição é parte importante na aplicação das regras e da disciplina. Sem ela, não há como exigir o comportamento que se deseja dos alunos”, justifica.
Questionei dois alunos que estão na Waldock desde antes da intervenção da PM, sobre como era estudar ali. Mael Barbosa, 18 e Bianca Silva 18, ambos do 3o ano, responderem timidamente do mesmo modo, afirmando que a escola é ótima, e que antes era pior. Que agora eles tem uma “chance na vida” e que pensam em fazer faculdade. Bianca disse que foi difícil deixar de usar a maquiagem e o cabelo solto, mas que hoje até prefere a cara limpa e o cabelo preso?—?ela diz achar mais adequado. Mael tem uma namorada na escola, mas não pode demostrar nenhum tipo de afeto. Tem que “falar de longe” com ela. Perguntei se não havia nenhuma crítica à extrema rigidez. Bianca disse: “Não posso falar mal da única chance que temos aqui”.
“Única chance” é um dos discursos preferidos da Waldock, para justificar a militarização.
Devolvi a frase para a doutora Iolete Ribeiro, professora de psicologia da Universidade Federal do Amazonas, na área de educação. Ela disse que esse tipo de justificativa é de certa forma uma hipocrisia. Segundo Iolete Ribeiro, a gestão da PM numa escola é efeito colateral da falha da própria Secretaria de Segurança Pública, que não consegue garantir um ambiente adequado para a comunidade.
“Associar uma área da cidade à violência é comum, mas é um erro. A violência é fruto de toda a cidade, de um sistema maior. Faz parte de um olhar segmentado do espaço urbano o ato de responsabilizar os moradores ou a situação sócio-econômica da região pelos problemas, e corresponde a uma forma segregadora de tratar da cidade.”
Para a pesquisadora, o bom comportamento na verdade está disfarçado de obediência. Ela afirma que a educação deve ser emancipadora, e não apenas ensinar a obedecer; pois desse modo não se desenvolve o sentimento de responsabilidade nos alunos, que ficam sem autonomia e não fazem as próprias descobertas e escolhas. Pelo modelo da PM, é um agente externo quem define a referência do que é ético. “Isso é extremamente perigoso, pois se forma uma massa de seguidores.”
Segundo Iolete, a busca pelas notas altas tem um custo no cotidiano dos adolescentes. Quem não se enquadra se torna um desajustado, e acaba sofrendo grande desgaste para continuamente tentar se encaixar. Só há lugar para os melhores na concepção de educação militar; essa lógica da segregação multiplica o sentimento de não-coletividade e não corresponsabilidade.
O sistema de medalhas, brevês e títulos militares incentiva uma supervalorização da competição e da hierarquia, e pode desenvolver pequenos ditadores, na medida em que os próprios alunos têm que supervisionar e denunciar os outros. Os que não conseguem sucesso na corrida podem se tornar agressivos ou deprimidos, conclui a estudiosa.
Perguntei do Professor Maxuel da Silva Colares, 37, que dá aulas de matemática na escola Waldock e que já conseguiu várias medalhas para a escola, qual sua filosofia. Ele afirmou que “existem dois tipos de ser humano: aquele que obedece e aquele que manda”. Foi mais uma prova de que ali não existe o reconhecimento das diversidades. Os alunos são obrigados a obedecer a qualquer custo para ficar ali.
Mas, a escola busca atender a comunidade, não é? Pelo menos é isso o que diz a propaganda da Waldock…
Só que, na verdade, a Waldock acaba criando uma dose extra de segregação. Ou o modelo é aceito, ou o aluno não pode estudar ali. Isso se reflete também na metodologia aplicada para ingressar no colégio. É preciso fazer uma prova para entrar na 5ª e na 6ª séries, anos em que se iniciam os estudos ali. Quem não passar está automaticamente excluído. Isso é segregação ou não é?
O discurso de que “Não existe dificuldade de aprendizagem e sim preguiça ou falta de obediência”, ligado às formas tradicionais de ensino, endossa que o problema é sempre o aluno e não a instituição?—?a escola então nunca é repensada.
Ainda no Colégio Militar, conversei com o Capitão Idevandro dos Santos, 36, que está na escola desde de o começo da gestão da PM. Ele trabalha armado, pois, mesmo com o cargo de coordenador pedagógico, ainda é policial, e tem que garantir a segurança da escola e das áreas ao redor.
Porém, utilizar uma arma em uma escola, segundo a doutora Iolete, pode causar uma impressão de ameaça, reforçando o ambiente de opressão. O uniforme também pode ser reconhecido como uma forma de violência, pois proíbe a manifestação de diferenças.
O major Alysson explica que a filosofia do colégio militar segue a concepção do Exército, ao incentivar a criança a querer ser “uma pessoa de bem”, a ter espírito de civismo, amor à pátria e pela família.
Indaguei sobre aulas de orientação sexual. “Normal”, ele disse. Elas são realizadas na aula biologia e na aula de religião.
Depois completou: “A gente trabalha muito nessa área, mas é coisa de brasileiro mesmo, tem duas alunas grávidas (antes era muito mais). Isso apesar de elas andarem com os vestidos aqui em baixo… Imagina se elas andassem com as calças apertadinhas [que se vê nas ruas]?”
Conversando com o Secretário de Educação sobre a situação, ele disse que o ideal não é militarizar uma escola. Apesar disso, defende o que foi feito com a Waldock. A mudança também teve o objetivo de testar tipos de ensinos diferenciados em determinadas comunidades. Ele afirma que no caso da Waldock foi necessário “algo mais forte”, por conta da violência. Explicou que normalmente escolas que possuem regras, tem resultados melhores.
Apesar da metodologia rígida da PM na escola ter suas vantagens (os alunos da Waldock realmente estudam e têm uma infra-estrutura melhor à disposição), ainda considero que a escola deveria ser um espaço onde uma criança ou adolescente possa se reconhecer e valorizar sua cultura local. Uma escola que trabalhe as diferenças, que traga as vozes da comunidade para assim reconstruir a história. Educação pela libertação. Gosto disso.
E lá fui eu visitar uma escola em que a diferenciação é uma vantagem.
Lenda do Boto
Fui para a comunidade do Fundo do Paracuúba, a 20 minutos de barco de Manaus, conhecer a Escola Municipal Nossa Senhora da Conceição.
Fica numa região que tem seis meses no seco, e seis meses sob as águas do rio, que transforma completamente a paisagem. As casas são de palafitas. Durante o período da cheia, são ligadas por pequenas pontes. Nesse período, o meio de transporte é a canoa ou os barcos.
Seu Joaquim, o diretor da escola, me contou brevemente sua história. Ele foi doado pela mãe para uma família, que morava na região. Frequentou a escola até a quarta série e começou a trabalhar no roçado aos 6 anos. Mais velho, foi para Manaus e trabalhou em diversos empregos (camelô, padeiro, barqueiro etc.). Uma vez, quando foi visitar a família na comunidade, uma representante da secretaria de educação pediu a ele que se transformasse em professor na escola.
Ele disse que não poderia, pois só tinha estudado até a 4ª série, mas insistiram no pedido.
Como a prefeitura de Iranduba lhe oferecia a possibilidade de continuar os estudos, Seu Joaquim não conseguiu recusar a oferta. Escolas ribeirinhas normalmente têm dificuldades para contratar e manter seus professores por mais do que alguns poucos anos.
Em sua primeira aula na Escola Nossa Senhora da Conceição, havia 70 alunos, do Ensino Infantil à 4ª série, com idades entre 7 e 20 anos. Para dar conta da grande diversidade, Seu Joaquim encontrou, em um só texto, atividades para todos. O texto era uma lenda sobre o boto…
Geralmente contada para justificar gravidez fora do casamento, a lenda fala que o boto rosa aparece transformado em um rapaz elegantemente vestido para seduzir as mocinhas. Os mais novos desenhavam a figura do animal, enquanto os mais velhos trabalhavam na redação.
Esse tipo de aula é comum em escolas pequenas, em que não existem professores suficientes. Mas Seu Joaquim não se intimidou e foi em frente. Descobriu-se um ótimo contador de histórias. “A criança ouve, entra na imaginação”.
Quando se trata de disciplina, ele afirma: “Só com o diálogo as coisas funcionam.” Ele não admite expulsar um aluno, tem que fazer com que ele fique na escola. Ele também tem problemas mais complicados, como o uso e tráfico de drogas por alunos, mas é conversando com eles que vai resolvendo a questão. Ele já foi ameaçado de morte por traficantes da região, mas continua lá, e nem se preocupa com isso.
Seu Joaquim está lutando por melhorias na escola. Precisa de uma reforma no piso, que por causa das cheias, começa a ficar desgastado. Precisa trocar a fiação de energia, além de investir na manutenção dos equipamentos que já tem. Ele ganhou vários computadores, mas não pode usá-los. A prefeitura não manda nenhum técnico pra instalar as máquinas, que enquanto esperam pela burocracia, vão se deteriorando.
No dia em que fui conhecê-lo, havia poucos alunos nas classes?—?faltou gasolina na prefeitura de Iranduba. Para que as crianças possam ir à escola nesta época do ano, elas precisam do transporte, feito de barco. Essa é uma das maiores dificuldades das escolas de comunidades isoladas: às vezes, os alunos moram a mais de uma hora de barco da escola mais próxima.
Com as cheias, muitas escolas param de funcionar pois ficam parte debaixo d’agua. Falta investimento para fazer com que as escolas possam funcionar o ano inteiro. Mas, Seu Joaquim, com diálogo e liberdade, consegue fazer o milagre de dar aulas no ano todo. E ainda colhe resultados. Muitos dos seus alunos fizeram faculdade, e muitos se tornaram professores. A lenda do boto se perpetuará ali. Mais do que a cultura do “Sim, senhor!”, “Não, senhor!”
Fotos: Isadora Carvalho