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O aumento no número de linchamentos tem tornado a prática um componente da realidade social brasileira, refletida pelo descrédito da população na polícia e no Judiciário e inflamada por setores da imprensa; especialistas alertam que a naturalização desse tipo de comportamento pode trazer um risco real à sociedade
Por Maíra Streit
Esta é uma matéria da Fórum Semanal. Confira o conteúdo especial da edição 205 clicando aqui
O caso recente de linchamento ocorrido no Maranhão atraiu as atenções do país. Acusado de tentar assaltar um bar na companhia de um adolescente, Cledenilson Pereira da Silva, de 29 anos, foi amarrado a um poste e agredido com socos, chutes, pedradas e garrafadas até a morte. A cena do jovem nu, ensanguentado e já sem vida, com o tronco e pescoço presos por cordas, foi amplamente divulgada nas redes sociais e levantou o debate sobre os riscos desse tipo de justiçamento para a sociedade.
Segundo especialistas, o espancamento – e, por vezes, assassinato – de suspeitos de crimes pela população pode abrir precedente para o enfraquecimento do Estado democrático, uma vez que não dá chances de defesa à vítima, que é sumariamente acusada, julgada e condenada, mesmo sem provas. Dessa forma, a probabilidade de ataque a inocentes é bastante significativa.
Foi o que aconteceu no ano passado, em outro caso emblemático, quando a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, morreu ao ser espancada por um grupo de mais de cem pessoas em Guarujá, no litoral paulista. Ela foi confundida com uma mulher que supostamente sequestrava crianças. Porém, não houve registros oficiais de sequestros como esse na região e nem qualquer ocorrência contra Fabiane.
O fato de ser apenas boato não impediu que ela fosse brutalmente ferida, tendo sofrido traumatismo craniano por conta das agressões. Ela era casada e deixou duas filhas, uma de 13 anos e outra de apenas 1 ano.
De acordo com o livro Linchamentos – A justiça popular no Brasil, do sociólogo José de Souza Martins (leia a entrevista abaixo), o país assiste, em média, a uma tentativa de linchamento por dia. Nos últimos 60 anos, mais de 1 milhão de brasileiros já participou de um ato assim. Os números mostram que a prática se tornou um componente da realidade social brasileira, deixando de se apresentar como atitudes isoladas.
O levantamento revelou casos concentrados principalmente entre 1945 e 1998. Desses, 2.579 indivíduos foram alcançados por tentativas e linchamentos consumados e apenas 1.150 (44,6%) foram salvos. Outros 1.221 (47,3%) foram vítimas da fúria popular, espancados, atacados a pauladas, pedradas, pontapés e socos, até casos extremos de extração dos olhos, extirpação das orelhas e castração.
Entre eles, 782 (64%) foram mortos e 439 (36%) feridos, segundo mostra o estudo. Com a inexistência de dados oficiais sobre o tema, o monitoramento foi realizado com a ajuda das notícias divulgadas pela imprensa, o que sugere que os números podem ser ainda maiores.
A crise de representatividade das instituições públicas é apontada como um dos principais fatores para que a população decida fazer justiça com as próprias mãos. A lacuna deixada pelo Estado leva à sensação de insegurança e faz com que os cidadãos se sintam responsáveis por restabelecer a ordem que julgam estar ameaçada. No entanto, a forma com que isso é feito acaba intensificando o ciclo de violência e descrédito em relação aos órgãos responsáveis pela proteção da comunidade.
Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), Ariadne Natal, alguns setores da mídia têm um papel de destaque na perpetuação desse comportamento. Segundo ela, apesar de fazerem uma cobertura diária da situação da segurança pública no país, a abordagem se atém à exploração de tragédias e não discute com profundidade os caminhos a serem tomados para a superação dos problemas.
Ariadne acredita que esse posicionamento pode impactar diretamente em mais linchamentos, à medida que há uma naturalização da prática por parte de pessoas formadoras de opinião. “Este tipo de imprensa tem um papel significativo em rechaçar direitos humanos e propagar a ideia de que respeitar direitos de suspeitos e criminosos é estimular o crescimento da violência e da criminalidade. Não são raros os casos em que os apresentadores fazem defesa da pena de morte, da tortura de presos, da justiça pelas próprias mãos e do extermínio de suspeitos”, destacou.
A pesquisadora chama a atenção, ainda, para o perfil das vítimas de linchamento no Brasil. As estatísticas apontam que a maioria é jovem (45% tinham entre 15 e 29 anos), do sexo masculino (95%) e pertencente a camadas populares (desempregados e trabalhadores de baixa qualificação), moradores de áreas periféricas.
Cledenilson, morto a pancadas em São Luiz no início deste mês, tinha exatamente essas características. Ele não possuía passagens pela polícia, estudou até o ensino fundamental, trabalhava em oficinas mecânicas, mas estava fora do mercado nos últimos tempos. Vivia em um dos bairros mais perigosos da capital maranhense e deixou a namorada grávida de três meses, com quem pretendia morar. A família, até então, desconhecia qualquer tipo de envolvimento dele com o crime.
Além da questão econômica, outro fator fazia de Cledenilson um alvo em potencial. A obra Linchamentos – A justiça popular no Brasil traz uma informação a ser considerada. Segundo a publicação, a predisposição para linchar um negro é, na maioria dos casos, maior do que para linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito.
O adolescente preso a um poste no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em 2014, que suscitou ampla discussão sobre o tema, também não foge à regra. Negro e acusado de furtos, ele foi atacado por um grupo de homens de moto, que se autointitulavam “justiceiros”, foi espancado, teve a roupa arrancada e parte da orelha decepada.
O caso tomou grande repercussão quando a apresentadora do SBT Rachel Sheherazade afirmou, na bancada do jornal para todo o país, que “a atitude dos vingadores é até compreensível”. "O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro. O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva”, declarou à época, causando protesto entre ativistas dos direitos humanos.
A gravidade da situação abre espaço para uma teia complexa de discussões acerca da realidade do país, no que diz respeito às limitações da segurança e a baixa representatividade da polícia e do Judiciário perante a população. Mas também alerta para a necessidade urgente de coibir atos de brutalidade que, seguindo uma lógica punitiva e seletiva, acabam instaurando um clima ainda maior de terror e barbárie. E, muitas vezes, aquele que reivindica a punição para criminosos acaba se tornando um deles, fortalecendo, assim, o espiral de violência.
"A mídia não se preocupa com um balanço equilibrado do noticiário"
Um dos maiores especialistas no estudo de linchamentos no país, o sociólogo José de Souza Martins acumula três décadas de pesquisa sobre o tema. Nesta entrevista, ele fala sobre o aumento no número de ocorrências, as características das vítimas e possíveis soluções para evitar esse tipo de violência.
Fórum – Os casos de linchamento, sem dúvida, têm tomado uma grande repercussão nos últimos anos. Mas é possível dizer que há, de fato, um aumento no número de casos? Se sim, a quê o senhor atribui essa realidade?
José de Souza Martins – A repercussão é apenas de alguns casos de linchamento, e não de todos, e daqueles que incidem diretamente sobre o imaginário brasileiro, sobre aquilo que mais nos incomoda, que é a herança da escravidão. Os dois casos de maior repercussão nos últimos tempos são os de negros amarrados a um poste, um deles morto (no Maranhão); outro, ferido (no Rio de Janeiro). Os dados que colhi e analisei em meu livro Linchamentos – A justiça popular no Brasil indicam que tem havido aumento no número de ocorrências. A pesquisa sugere que por trás dessa modalidade de violência está a insegurança e o medo.
Fórum – Há características em comum entre as vítimas dessas práticas? Quais seriam?
Martins – Quanto ao motivo, excetuados os 7,8% de inocentes, os linchados restantes estavam envolvidos em diferentes modalidades de crime contra a pessoa (como assassinato, ferimento, estupro, especialmente de crianças) e, em segundo lugar, em crimes contra bens e propriedades (como assalto e roubo). Quanto ao modo de linchar, a violência coletiva segue uma ordem que é a mesma em todos os casos, desde perseguir, apedrejar, atacar a pauladas até casos extremos de mutilar e queimar vivo o linchado.
Fórum – Os autores desses crimes têm recebido a devida penalização? Ou acabam sendo beneficiados pela impunidade que eles próprios criticam?
Martins – Linchamento é uma modalidade de violência coletiva, de multidão, socialmente autodefensiva. O linchador lincha em defesa da sociedade, que ele julga ameaçada. Raramente a polícia consegue prender todos ou mesmo a maioria dos participantes de um linchamento. Num caso de morte, além do mais, nunca é uma única pessoa a responsável pelo homicídio. Cada participante é, quando muito, autor de umas poucas agressões, como um pontapé ou uma pedrada. Aos poucos presos e processados, geralmente pais de família, é pouco provável que se possa atribuir a responsabilidade pela morte do linchado. Como é crime julgado pelo júri, constituído de pessoas em quase tudo semelhantes aos linchadores, é pouco provável que os condene.
Fórum – Quais os caminhos para evitar que os linchamentos persistam na sociedade?
Martins – Enquanto perdurar a insegurança e o medo, é pouco provável que se encontre um meio de por fim a essa prática. Aqui no Brasil, há também a multidão contrária ao justiçamento coletivo. São os membros desse grupo que têm alertado a polícia para a ocorrência de um linchamento, que é o caminho adequado. Nos numerosos casos de salvamento, mais de 90% das vítimas é salva pelas PMs, as quais são socorridas, presas, indiciadas, processadas, julgadas e mesmo condenadas. A resposta vem da sociedade civil, daquelas pessoas dotadas de uma consciência cidadã sobre crime e castigo.
Fórum – De que forma a mídia e alguns jornalistas formadores de opinião contribuem para fortalecer a cultura do “olho por olho, dente por dente”?
Martins – Aqueles setores da mídia que têm optado pela transformação do crime e da repressão em espetáculo têm contribuído para a difusão da vendetta popular. No Brasil, no geral, a mídia não se preocupa com um balanço equilibrado do noticiário. É raro que o noticiário de rádio e tevê dê algum destaque a êxitos e conquistas do povo brasileiro, na universidade, nas artes, nas fábricas, na literatura.
A preferência é pelo crime, pelos desastres, pelas anomalias, pela violência. Ao fim do noticiário da noite não há como não acharmos que somos um povo em estado de barbárie, distante da civilização e da competência criativa nos vários campos da realidade social. Somos apresentados a nós mesmos como um povo sem alternativa, a não ser a de nos defendermos com os próprios punhos.
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