Que povo é esse de mentalidade tacanha, que não reconhece seus privilégios? Que humanidade tão proclamada é essa a que somos comparados e que, na realidade, não se atinge? Por que ainda se legitima práticas violentas contra minorias e marginaliza-se movimentos populares necessários para o fortalecimento democrático? Afinal, que democracia seletiva é essa que esse povo defende?
Por Eliane Oliveira*, nova colunista da Fórum
Pensei em vários temas para inaugurar esse espaço, mas como escrevo por paixão e sou movida pelo calor das coisas que me atingem de forma direta (e indireta também), não conseguia definir, escolher um assunto. Mas o mundo não nos dá muito tempo para pensar, a sociedade vai jogando tanta hipocrisia na nossa cara que é impossível ficar silenciosa, quietinha no meu canto formulando um artigo todo bonitinho com uma linguagem polida, intelectualizada. Não dá, então vou escrevendo minhas percepções.
A internet se tornou um vício meu, confesso, estou na rede mais do que gostaria. Participo de grupos, ajudo a administrar uma página, já escrevi em blog, acompanho as mais variadas pessoas e suas opiniões. A realidade que me vem chega de todas as formas. Atualmente de forma violenta, de revelação, de escancaramento mesmo. Acredito que o Brasil mostrou sua face mais perversa desde as eleições para presidente, em outubro de 2014.
Um povo preconceituoso, elitista, classista, racista, machista que descobriu nas redes sociais um canal direto para a fossa das suas entranhas para externar todo fel de suas almas miseráveis. Gente dizendo que tem vergonha der brasileiro, simplesmente porque não aceita que as coisas não são mais da forma que eles sempre quiseram, onde apenas um grupo de privilegiados sentavam na janela. Se sentem roubados – ora, ninguém está roubando nada, apenas é preciso se conscientizar que viver nesse mundo não é uma exclusividade.
Quanto chorume derramado nos comentários de publicações, no espaço virtual, num simples “meme”. Tem que ter estomago para ler aquilo que estes seres ainda chamam de “opinião”. Achismos sem fim, fazem críticas infundadas, senso comum vomitado com palavras rebuscadas, como se precisasse disso para convencer alguém. Intelectualóides de leituras enviesadas, com dificuldades de interpretação de texto e que ainda pretendem ser sarcásticos ou irônicos. Aviso, até para isso é preciso estudar para além da Wikipédia.
Vivemos trinta anos de pós-ditadura militar, mas a democracia ainda não está garantida, pessoas confundindo ofensas com comédia, e ainda chamam de “humor politicamente incorreto”, ora, se alguém é ofendido, a graça é de quem? Respondo, do opressor. Em pleno século XXI e ainda tem gente que ri de “piadas” com negros, com mulher, com pessoas gordas, com orientais, com asiáticos.
Ter religião divergente da maioria é um problema, não ter nenhuma é ser demonizado. Não é permitido lutar por políticas afirmativas, porque isso é coisa de gente vitimista. Sim, porque os sujeitos devem aceitar pacificamente sua condição social de segregação histórica.
Mas estes que reclamam das políticas de Estado não raro já se assumiram como negros para beneficiar-se das cotas, sim, negros por conveniência está tendo de monte. Mentem sobre a renda familiar para conseguir um financiamento estudantil, acham as políticas afirmativas um problema, mas querem bolsa para estudar no exterior, se dizem pró-feminismo, mas desde que uma mulher não questione sua posição privilegiada como homem cis. Todas pessoas sérias e que pagam seus impostos!
Passados trinta anos de democracia e ainda vivemos numa lógica patrimonialista, de apadrinhamento, da carteirada, do jeitinho. Uma hipocrisia tão internalizada a ponto de os sujeitos cometerem todas as práticas questionáveis e ainda dizer que apenas os políticos é que são corruptos.
Que povo é esse de mentalidade tacanha, que não reconhece seus privilégios? Que humanidade tão proclamada é essa a que somos comparados e que, na realidade, não se atinge? Por que ainda se legitima práticas violentas contra minorias e marginaliza-se movimentos populares necessários para o fortalecimento democrático? Afinal, que democracia seletiva é essa que esse povo defende? Ah, me desculpem, sempre me esqueço que ainda existem no Brasil os monarquistas de plantão, preciso considerar as opiniões divergentes (mas não dá)!
Uma coisa precisa ser dita, esse “país tropical e bonito por natureza” não está merecendo boa parte dos que o habitam, é fato! Não tenho vergonha de ser brasileira, nem do meu país, mas estou tendo vergonha de muita gente aqui, dessas bandas virtuais.
(*) Eliane Oliveira é mestre em Ciências Sociais e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB) pela Universidade Estadual de Maringá/PR (UEM), além de professora da sociologia da rede pública e particular e feminista negra.
(Foto: Oswaldo Corneti/Fotos Públicas)