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Na madrugada desta terça-feira a Polícia Militar do estado de Pernambuco fez mais uma vez uso da força e expulsou os manifestantes que ocupavam, pacificamente, o Cais José Estelita
Por Luiz Carlos Pinto, professor de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco
A operação da PM exemplificou mais uma vez a forma pela qual o governo de Eduardo Campos se relacionou com a sociedade civil nos últimos oito anos e também o legado na administração municipal, cujas ações têm sido marcadamente orientadas pelo interesse privado. A desocupação forçada aconteceu contrariando a negociação entre o Movimento Ocupe Estelita, o Ministério Público e as Secretarias estaduais de Direitos Humanos e Defesa Social. A ordem de remoção partiu do governador João Lyra, sucessor do pré-candidato Eduardo Campos e dependente de seu capital político. Advogados que sustentam o Movimento, assim como intelectuais, engenheiros e arquitetos que acampavam no local foram presos ou espancados pelo Batalhão de Choque.
Embora a aliança pragmática entre o candidato pelo PSB à Presidência Eduardo Campos e Marina Silva venha mostrando esgotamento no maior colégio eleitoral, São Paulo, sua principal fissura está mesmo é na cidade do Recife. A contradição evidente entre o perfil neo-desenvolvimentista do político pernambucano e a utopia ambientalista da amazonense vinha se evidenciando na ocupação urbana do Cais José Estelita e contradiz com todas as letras que a candidatura não é filha da esperança, como se auto definiu recentemente. O imbróglio que o movimento trouxe também evidencia em toda a sua história que até agora nem a cidade do Recife nem o Estado de que é capital são governados por princípios democráticos.
Essas coisas saltam aos olhos quando se contrapõe, por um lado, o modus operandi eduardista na relação com os poderes Legislativo e Judiciário pernambucanos. A desocupação desta terça-feira (17) realça de forma exemplar a falta de democracia, a truculência e sobretudo a ilegalidade com a qual tanto o governo estadual quanto o municipal lidam com questões públicas.
Os acessos aocais foram interditados logo cedo, o ataque ao acampamento aconteceu de madrugada, assim como outras medidas cruciais envolvendo a questão – inclusive o início da demolição dos armazéns no dia 21 e a aprovação do projeto pela prefeitura, numa reunião da Comissão de Desenvolvimento Urbano anda em 2012.
A falta de democracia do legado eduardista vem à tona com força quando se trata das intervenções no meio ambiente e no meio social, em cuja seara o governo Eduardo se consolida como paradigma negativo por excelência. Ainda que possa ser visto como um problema da cidade do Recife somente, toda a polêmica em torno da ocupação urbana no Cais José Estelita é como um visitante incômodo no centro da sala da augusta pré-candidatura, pois é a mais recente demonstração de que tanto na esfera municipal quanto na estadual, as empresas estão tomando o lugar do Estado em Pernambuco – condição a que se chegou ao final de 12 anos do governo do PT e de oito anos do governo do PSB de Eduardo.
As estratégias recentes desenvolvidas pelo Consórcio Novo Recife, antes da desocupação acontecer, são bastante eloquentes disso. A facilidade com que a violência é usada pelo Consórcio é impressionante. Campanhas de criminalização dos movimentos, utilização nociva de líderes comunitários para falar em nome das comunidades, omissão consentida e censura do jornalismo local, deslealdade na negociação com os movimentos, ataques planejados pelos comunicadores de apelo mais popular (os mesmos que se banham no sangue da periferia). Tudo isso está acontecendo a partir do momento em que os rumos atuais da cidade foram questionados por um grupo de mulheres e homens, jovens e adultos, que questionam a ilegalidade da venda de um terreno público e as irregularidades de um projeto considerado por muitos especialistas como extremamente ofensivo à cidade.
A gravidade dessas ações deveria ecoar por todo o país como um alerta para o formato específico do status quo que se construiu em Pernambuco e na sua capital. Estamos falando da ausência real do poder público municipal e estadual na proteção e garantia do exercício da democracia. O saldo que doze anos do governo do PT deixam em Recife é muito triste. E a herança de quase oito anos de Eduardo Campos do PSB no Governo do Estado é tão nociva quanto. Formou-se uma grande articulação entre governos e o poder privado para governar e o principal efeito disso é que Recife e Pernambuco regrediram democraticamente. Não houve o amadurecimento real da instituição democrática e a forma desleal com a qual o Movimento Ocupe Estelita vem sendo tratado pela mídia, pelas instituições jurídicas e políticas e pelos governantes é a genuína demonstração disso.
É essa triste constatação que torna inaceitável a afirmação de que Marina Silva e Eduardo Campos são filhos da esperança.
São filhos da esperança os estudantes, professores, artistas, comunicadores, cientistas e populares que desde o dia 21 do mês passado vinham tentando obter visibilidade e iniciar uma discussão realmente aberta com a sociedade sobre a melhor forma de ocupar espaço tão privilegiado.
São filhos da esperança, ao menos em Pernambuco, as partes da população que são preferenciais alvos da discriminação de cor, gênero e orientação sexual. De acordo com pesquisa divulgada em 2013 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), Pernambuco responde pelo 5º maior número de assassinatos de negros em cada 100 mil pessoas. Ocupa a mesma colocação no que se refere ao assassínio de mulheres e está em sexto lugar entre os estados onde mais se matam homossexuais (nesse caso, os dados do Ipea se referem ao número de mortes para cada 1 milhão de habitantes). Definitivamente ser gay, negro e mulher não é seguro no estado.
É no detalhe que essa situação se mostra ainda mais insidiosa. Pernambuco guarda a triste marca de ser o estado com o maior número de assassinatos do Nordeste nos últimos anos, depois da Bahia. Embora esse número venha diminuindo, ainda é maior que o número de assassinatos de negros de toda a região Norte (exceção ao Pará), Sul e Sudeste segundo o Mapa da Violência 2012. No mesmo estudo a cidade do Recife aparecia no quarto lugar no ranking das capitais onde mais se matava negros. E em sexto lugar na lista das cidades onde mais se mata mulheres.
São filhos da esperança os desabrigados pelas obras de mobilidade para atender à Copa do Mundo. E mais ainda os desabrigados pela onda de remoções que atendem ao neodesenvolvimentismo, sem discussão com a sociedade, implantado em Pernambuco nos últimos 10 anos: homens, mulheres, adultos e crianças da Vila Oliveira, Comunidade do Bom Jesus, os ribeirinhos do Pina (todos no Recife), o loteamento São Francisco no município de Camaragibe, os bairros da cidade de São Lourenço da Mata. Não há números precisos de quantos foram retirados de suas casas.
São filhos da esperança as 58 famílias no Coque, na Ilha Joana Bezerra, que conseguiram graças a sua força e à articulação da sociedade civil, impedir a demolição das casas em que moravam para atender a exigências de mobilidade da Copa 2014. É difícil aceitar o governador Eduardo Campos como um filho da esperança, tamanha a desesperança que seu governo plantou ou ajudou a consolidar: um Poder Legislativo esvaziado de política, sem oposição; uma utopia desenvolvimentista equivocada economicamente; desastrosa para o meio ambiente; excludente com a sociedade. Uma polícia que vai pouco além de braço armado de uma política de prisão – que reduziu os crimes letais às custas do inchaço das prisões.
O legado da esperança não pode ser facilmente usurpado. Ele já tem dono e esse dono não arreda pé de suas conquistas e de suas possibilidades. O Recife e o Movimento Ocupe Estelita têm demonstrado isso todos os dias. A augusta candidatura é chamada a responder à principal fissura de seu corpo e essa fissura é um grande desejo pelo uso solidário, responsável, coletivo e popular do Cais José Estelita, no centro-sul da cidade do Recife, capital de Pernambuco.
Foto: Marcelo Soares