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Em 2012, após o PCC executar dezenas de policiais, PMs e grupos de extermínio mataram centenas de inocentes nas quebradas de São Paulo
Por Fausto Salvadori e William Cardoso, da Agência Pública
Fez sol no primeiro dia de 2013. Dia bom para a molecada do Jardim Rosana empinar pipa e jogar bola nas ruas da comunidade, localizada no Campo Limpo, periferia sul de São Paulo. Os meninos só pararam de brincar quando viram dois policiais militares se aproximando – quem mora na periferia aprende a temer fardas e viaturas.
Os PMs pararam perto de um grupo de quatro adolescentes e um dos policiais deu o aviso: “A motinho preta está vindo aí matar todo mundo”, disse, conforme o relato da comerciante Rita de Cássia de Souza, 52 anos, mãe de Brunno Cassiano, 17, um dos quatro adolescentes ameaçados.
Os meninos ficaram assustados. Eles sabiam do que o policial estava falando. Os assassinos das motocicletas eram fantasmas de carne e osso que vinham assombrando com regularidade as periferias da Grande São Paulo durante o segundo semestre de 2012, autores de chacinas que destruíam famílias inteiras.
Dois homens numa motocicleta, ambos com capacete, apareciam disparando contra um grupo de pessoas. O mesmo roteiro, com os mesmos personagens, foi repetido centenas de vezes, às vezes variando com a presença de um carro escuro, recheado de matadores com toucas ninjas.
Os assassinos sem rosto ficaram conhecidos como “motoqueiros fantasmas” numa referência a um personagem demoníaco dos quadrinhos da editora Marvel. Naquele ano, o motoqueiro com cabeça em chamas chegava às telas na pele de Nicholas Cage, no segundo filme do personagem, chamado Motoqueiro Fantasma: O Espírito da Vingança. Pois parecia que os grupos de extermínio que atacavam as periferias estavam mesmo possuídos por um espírito da vingança, já que quase sempre atacavam nas imediações de onde um policial militar fora morto ou ferido.
Ainda no calor da guerra, em novembro de 2012, o então delegado-geral de polícia de São Paulo, Marcos Carneiro Lima, revelava que, antes das chacinas, policiais militares haviam consultado antecedentes criminais dos mortos. Outras evidências de que eram PMs os que vestiam as toucas ninjas dos grupos de extermínio foram relacionadas em um trabalho ainda inédito realizado por pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), a ser publicado em julho.
“Vai acontecer uma desgraça”
Nenhum policial havia sido atacado na região do Jardim Rosana, quando os PMs anunciaram que a motinho preta iria matar todo mundo, em 1o de janeiro de 2013. Mas os moradores tinham motivo de sobra para temer uma retaliação dos assassinos mascarados. Dois meses antes, em novembro, um morador da favela havia gravado a morte do servente de pedreiro Paulo Batista do Nascimento, 25 anos, assassinado numa das ações que a polícia costuma registrar como “resistência seguida de morte”. Segundo o Ministério Público Estadual, Paulo, 25 anos, já estava rendido pelos policiais e implorou pela vida antes de ser executado com cinco tiros. Após a divulgação das imagens pelo Fantástico, da TV Globo, os cinco PMs envolvidos no crime foram presos. Nas semanas seguintes, o medo passou a morar no Jardim Rosana. Desconhecidos circulavam em carros escuros, de olho nos moradores. Quando os policiais apareciam fardados, batiam nos jovens e gritavam com as mães que reclamavam. “Faziam isso com todo mundo, independente de errado ou certo”, lembra Rita de Cássia. Os jovens pensaram até em atravessar carros na rua a partir das 22h, para impedir o tráfego, mas não chegaram a colocar a ideia em prática. Na entrada do Jardim Rosana, uma cruz foi colocada em memória das sete vítimas da chacina de 04 de janeiro. Na rua à direita, mais adiante, fica o bar onde aconteceu o crime. Foto: Spensy Pimentel Na virada para 2013 as ameaças ficaram mais explícitas. Além do recado da “motinho preta” dado aos meninos, policiais ordenaram ao dono de um bar na Rua Reverendo Peixoto de Lima que fechasse o estabelecimento antes das 21h, senão iria “acontecer uma desgraça”. Sem outro ganha-pão, o comerciante recusou-se a seguir o toque de recolher e o bar ainda estava aberto às 23h de 4 de janeiro quando a desgraça aconteceu. Três carros pararam em frente ao bar, despejando pelo menos 14 homens armados. Segundo os moradores, eles gritaram “polícia” e atiraram em tudo o que viram. A chacina do Jardim Rosana deixou sete mortos, entre eles o rapper Laércio Grimas, 33 anos, o DJ Lah, popular entre a juventude da periferia, além de três feridos. Uma das vítimas foi Brunno. Segundo Rita de Cássia, seu filho conseguiu escapar da cena do crime apenas com um tiro em uma das pernas e, para se esconder, pulou o portão da casa de uma moradora. Assustada, a mulher chamou a polícia, que levou Brunno. “Meu filho entrou na viatura baleado na perna e chegou no hospital morto com seis tiros”, lembra Rita. O relato da mãe de Brunno revela o mundo virado pelo avesso da violência na periferia, onde quem pula o portão de uma casa à noite é a vítima e quem chega para matar é a polícia. A chacina do Jardim Rosana foi o último ato de uma guerra entre a polícia e o crime organizado que tomou conta dos bairros periféricos da Grande São Paulo durante o segundo semestre de 2012. Uma guerra em que os inocentes foram as maiores vítimas e as forças de segurança do Estado, os principais matadores. A guerra começou com um “salve geral” (recado a todos os integrantes) distribuído pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) – facção criminosa, criada em 1993, que domina o sistema penitenciário e controla boa parte do tráfico de drogas no Estado de São Paulo. Pela ordem, os membros da facção que estivessem nas ruas estavam convocados a matar “botas” (policiais militares). Os bandidos agiam em nome do espírito da vingança: o PCC dizia que o objetivo era vingar as mortes de seus integrantes ocorridas nas mãos de policiais militares, que estariam agindo “na covardia”, ou seja, praticando execuções. Teve início a maior ofensiva do PCC contra as forças de segurança desde os ataques que fizeram São Paulo parar em maio de 2006. O número de policiais militares assassinados disparou. Segundo dados publicados no Diário Oficial, 88 PMs da ativa foram mortos no Estado de São Paulo em 2012 (contando mortes em assaltos ou confrontos), contra 56 no ano anterior. Incluindo os da reserva, foram 106 no total. Após os ataques contra os policiais, veio a resposta dos grupos de extermínio e dos policiais, que matou muito mais gente. Entre as vítimas havia tanto criminosos como trabalhadores sem ficha na polícia, aparentemente mortos apenas porque estavam na rua à noite. Todos tinham algo em comum: moravam na periferia.Por que não tem chacina nos Jardins?
Em muitas das ações, os matadores das motocicletas fantasmas e dos carros escuros adotavam procedimentos que pareciam pensados para dificultar a investigação dos crimes: enquanto um dos matadores atirava, o outro recolhia as cápsulas deflagradas. Também chamava a atenção das testemunhas a agilidade com que as viaturas da Polícia Militar se aproximavam dos locais das matanças. Familiares das vítimas contaram que, nesses casos, o “socorro” chegava minutos após as mortes e levava para os hospitais baleados que aparentemente já estavam mortos, no que parecia mais uma tentativa de atrapalhar a perícia no local – apagando evidências que poderiam levar aos matadores –do que de salvar vidas. A suspeita do envolvimento de PMs nos crimes contra a periferia foi levantada pelo próprio delegado-geral da Polícia Civil, Marcos Carneiro Lima, em um desabafo disparado quatro dias antes de deixar o cargo, em 22 de novembro do ano da guerra. Numa entrevista coletiva, Carneiro afirmou que antecedentes criminais de mortos na onda de violência tinham sido consultados por PMs antes dos assassinatos, numa clara indicação da participação policial nos homicídios. “A sociedade, ao receber a informação de que oito homicídios aconteceram em um curto espaço de tempo, em um espaço geográfico pequeno, é porque alguma coisa estranha está acontecendo”, disse, na ocasião. “É importante ressaltar que a gente nunca teve chacina nos Jardins. Por quê? Por que é tão fácil matar pobre na periferia? Porque ainda existe uma grande parcela da sociedade que acha que matar pobre na periferia é matar o marginal de amanhã”, afirmou.Olha quem morre, veja você quem mata
Em busca desse “algo estranho acontecendo”, a reportagem fez um levantamento parcial, a partir de dados levantados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e do noticiário da época. Nos 11 casos de ataques contra policiais militares registrados no mapa (que incluem tanto execuções como possíveis latrocínios) seguiram-se 38 homicídios praticados por desconhecidos, muitas vezes de moto, ou mortes de suspeitos em supostos confrontos com a PM. Em todos os casos, a ação dos matadores ocorreu sempre numa área próxima (até dez quilômetros) e num período de tempo curto (na maioria dos casos, em até dois dias) em relação aos ataques contra os policiais. O mapa também inclui a morte de um sargento do Exército, morto ao tentar proteger um PM num tiroteio, em Santos. Sejam quais forem os números usados para entender as baixas ocorridas em 2012, uma constatação não muda: nessa guerra, a ação da polícia e dos grupos de extermínio deixou muito mais mortos que os ataques dos criminosos. Segundo os dados publicados em Diário Oficial, enquanto 88 policiais militares da ativa foram mortos no Estado em 2012, PMs fardados mataram 547 pessoas em supostos confrontos (resistências seguidas de morte) – o maior número desde 2004. Porém, a conta das vítimas de grupo de extermínios é bem maior. Um estudo inédito feito pelas pesquisadoras Camila Caldeira Nunes Dias, Ariadne Natal, Gorete Marques e Mariana Possas, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) contabilizou 26 PMs mortos e um ferido nos ataques realizados pelo PCC contra agentes do Estado na Grande São Paulo ao longo do segundo semestre de 2012 (excluindo confrontos e latrocínios). No mesmo período, as execuções praticadas apenas pelos grupos de extermínio na região metropolitana, sem contar as “resistências seguidas de morte” da PM, mataram 306 pessoas e feriram outras 235. Os dados constam do estudo O impacto das decisões políticas na área de segurança pública e ação de grupos de extermínio: o caso da crise de 2012 em São Paulo, que deve ser divulgado em julho, no encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A análise das pesquisadoras também aponta que os grupos de extermínio parecem ter agido para vingar a morte de policiais. “Do ponto de vista da nossa análise, as dinâmicas sociais e políticas que acompanhamos sugerem a estreita relação entre as execuções, os grupos de extermínio e a participação de policiais nestes grupos”, afirma Camila.A Rota na rua
Para entender o que deu início à guerra de 2012, a pesquisa do NEV-USP recuou três anos. “A crise de 2012 começa com a nomeação de Antonio Ferreira Pinto como secretário de Segurança Pública, em março de 2009”, afirma Camila, enquanto toma um cappuccino numa lanchonete da Cidade Universitária, na zona oeste de São Paulo. Sorridente e falante, a autora do livro PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Saraiva, 2013) é uma acadêmica que tem prazer em pesquisar e falar sobre suas descobertas, ainda que seus objetos de estudo envolvam prisões, violência e morte. Ferreira Pinto atuou como secretário da Segurança Pública durante três anos, até perder o cargo, em novembro de 2012, em meio à guerra contra a periferia. Assim que assumiu a pasta, decidiu colocar a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) na linha de frente das ações de investigação e repressão ao PCC. Era uma decisão arriscada. Desde 1970, quando foi criada para “ações de controle de distúrbios civis e de contraguerrilha urbana”, a Rota virou sinônimo de violência policial – primeiro contra os inimigos da ditadura militar e, após a redemocratização, contra o criminoso comum. Um levantamento feito pelo jornalista Caco Barcellos no livro Rota 66, com base nos registros de 3.846 mortes ocorridas entre 1970 e 1992, concluiu que 65% dos mortos pela Rota eram inocentes. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o secretário de segurança do estado, Antônio Ferreira Pinto, após reunião no Palácio dos Bandeirantes sobre enfrentamento à violência em novembro de 2012. Marcelo Camargo/ABr Leia a entrevista de Ferreira Pinto à Agência Pública Para comandar os homens da Rota, Ferreira Pinto escolheu Paulo Telhada, um tenente-coronel com 36 mortes no currículo. Sob seu comando, os policiais da Rota continuaram a fazer jus à má fama da tropa, envolvendo-se em confrontos que deixavam dezenas de mortos – em vários deles, policiais civis e promotores apontaram indícios de execução. Num caso emblemático, policiais da Rota e do 18º Batalhão mataram seis ladrões que se preparavam para roubar caixas eletrônicos em um supermercado em Parada de Taipas, zona norte de São Paulo, em agosto de 2011. Na época, testemunhas denunciaram que os PMs teriam chegado ao local quatro horas antes do crime e preparado uma emboscada para matar a quadrilha, atirando principalmente nas cabeças, costas e pescoços. A possível emboscada de Taipas foi um dos casos denunciados pela ONG Human Rights Watch numa carta enviada ao governo paulista em 2013. A entidade chamava atenção para os 247 mortos e 12 feridos pela Rota entre 2010 e 2012. “O número elevado de pessoas mortas e o fato que nenhum soldado da Rota em serviço foi morto nesses episódios lançam dúvidas sobre o uso efetivo de armas não letais por seus soldados e a real necessidade do uso de força letal em todas as instâncias”, dizia o texto. Telhada teria sido vítima de um atentado, em 31 de julho de 2010, nas mãos de um criminoso que disparou 11 vezes contra ele, errando todos os tiros. Aí também o espírito da vingança deu as caras: nas 36 horas após o suposto atentado, a PM matou sete pessoas, conforme reportagem de O Estado de S. Paulo. Em 1º de agosto, a Rota matou um ex-detento, Frank Ligieri Sons, irmão de um sargento da PM, que teria disparado tiros e jogado um coquetel molotov contra a sede da tropa. Um relatório sigiloso do Dipol (Departamento de Inteligência da Polícia Civil), divulgado pela Folha de S. Paulo, levantou suspeitas de que os atentados contra Telhada e a sede da Rota tivessem sido forjado, mas nada ficou provado. Ao contrário. A história do atentado ajudou a fortalecer a imagem de Telhada junto à população que já o admirava pelos discursos inflamados em que comemorava a morte de “vagabundos” pela Rota. Telhada entrou para a reserva em novembro de 2011 e, no ano seguinte, foi eleito vereador pelo PSDB, passando a integrar a “bancada da bala” da Câmara Municipal de São Paulo, ao lado dos ex-PMs Álvaro Camilo (PSD) e Conte Lopes (PTB). Seu padrinho foi Ferreira Pinto, que o convenceu a fazer carreira na política.Sangue com sangue
Com a saída de Telhada, o comando da Rota passou para Salvador Modesto Madia, que tinha um perfil parecido com o de seu antecessor, com um longo histórico de envolvimento em ocorrências violentas, entre elas a participação no massacre de 111 presos no Carandiru, em 1992 – uma tragédia que contribuiu para criar o ambiente que levaria à criação do PCC, no ano seguinte (veja a cronologia no fim da reportagem ). Com Madia, a Rota continuou a fazer mais e mais “derrubadas”, que é como os PMs chamam as ocorrências com morte. A violência da PM não demoraria a receber uma resposta do crime organizado. “Quando o governo coloca a Rota para combater o PCC, com algum direcionamento, explícito ou não, que leva à execução de pessoas e produz um número de mortes muito elevado, acaba rompendo uma trégua precária que havia com a facção”, aponta Camila. Em 2011, o PCC aprova uma nova versão do seu estatuto, que recebeu um item prevendo a vingança contra as execuções da polícia. “Todo integrante tem o dever de agir com serenidade em cima de opressões, assassinatos e covardias realizadas por agentes penitenciários, policiais civis e militares e contra a máquina opressora do Estado”, dizia o texto, que acrescentava: “Vida se paga com vida e sangue se paga com sangue”. A guerra ia começar.“Um pouco insensíveis”
“Ele é Antonio para a mulher, Ferreira para a PM e Pinto para a Civil.” Mais comum do que a piada do pavê entre alguns policiais, a anedota mostra como alguns setores da Polícia Civil se sentiam menosprezados durante a gestão Ferreira Pinto, especialmente com a decisão de confiar à Rota as investigações sobre o PCC, antes conduzidas pelos policiais civis do Deic (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado). A opção de Ferreira seria fruto de sua formação militar – entre 1964 e 1979, ele atuou como oficial da PM no interior paulista. Na opinião de um delegado, que falou à reportagem sob a condição de anonimato, a violência da Rota faz parte de uma visão militarizada da segurança pública, que vê os criminosos e os moradores das periferias como membros de um mesmo exército inimigo a ser eliminado. “Alguns fazem uma ideia de mim que não corresponde ao que sou”, rebate Ferreira Pinto, em um final de tarde de sexta-feira, no hall de um flat em Moema. Em tom ponderado, entre baforadas de charuto e goles de vinho tinto Château La Motte, Ferreira enumera argumentos para rebater a fama de truculento. “Nunca falei que bandido bom é bandido morto, muito pelo contrário”, afirma. “Eu acho que, se não for no confronto, é covardia matar o cara depois de dominado, em qualquer circunstância.” O ex-secretário também diz que nunca encarou a segurança pública com o olhar de policial militar. “Eu saí da PM há 33 anos, no tempo em que até a farda era de outra cor”, afirma. “Naquela cadeira, eu sempre agi e reagi como promotor.” De fato, na maior parte da vida Ferreira atuou no Ministério Público, onde ingressou após deixar a polícia. Além de promotor, foi assessor da Corregedoria-Geral do MP e procurador de justiça. Foi um dos criadores da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), logo após o massacre do Carandiru. Assumiu a SAP em maio de 2006, convidado pelo governador Cláudio Lembo (então PFL, hoje DEM), em meio a um duro confronto entre o Estado e o PCC. Três anos depois, trocou a Administração Penitenciária pela Segurança Pública, nomeado pelo governador José Serra. Conseguiu que sua antiga cadeira na SAP fosse ocupada Lourival Gomes, seu secretário-adjunto e homem de confiança. Nascia, assim, uma dobradinha entre as pastas da Segurança Pública e Administração Penitenciária para vigiar e combater o PCC, com a participação do Ministério Público e da Rota. A base eram escutas feitas nos celulares dos presos – sempre a partir de pedidos feitos pelo MP e com autorização da Justiça, segundo Ferreira. O conteúdo das escutas, segundo ele, era repassado à Rota, que tinha a missão de investigá-las. “A nossa principal medida [contra o crime organizado] foi colocar a PM para fazer parte desse processo”, afirma. As pistas levantadas nas escutas levaram a Rota a fazer prisões e, muitas vezes, matar suspeitos. O ex-secretário garante que as mortes nunca fizeram parte desse planejamento, embora reconheça que a polícia paulista é violenta. “Sei os valores que os PMs cultivam, e infelizmente, pelo dia a dia, eles são um pouco insensíveis com relação a lesão corporal e a crimes contra a vida”, diz. Num outro momento da entrevista, defende que a PM é violenta dentro dos limites legais. “Em 55% dos casos de confronto com a polícia não tem evento de morte. Os bandidos são presos vivos ou fogem”, afirma. Perguntado sobre os indícios apontando a relação entre grupos de extermínio e ataques contra policiais nos crimes de 2012, afirma: “Alguém numa moto, ou num carro escuro, pode ser briga de facção, briga de tráfico, disputa por ponto, e falam: ‘vamos debitar na conta da PM’”. E acrescenta: “Tenho convicção de que não tem grupos de extermínio na polícia”. “O Estado não pode abrir mão de sua autoridade, senão fica um Estado frouxo”, continua. “Com um Estado frouxo, o tráfico se multiplica e o bandido, quando vai fazer um assalto, vai drogado e põe fogo no dentista. Numa ação forte e enérgica da polícia, a violência é uma contingência.”“Para mim, aquilo foi uma execução”
O estopim que deu início à guerra de 2012 foi aceso na noite de 28 de maio de 2012 em um lava-rápido na favela Tiquatira, na Penha (zona leste), onde policiais da Rota mataram seis homens. Segundo a polícia, os suspeitos participavam de uma reunião para organizar o resgate de um preso no Centro de Detenção Provisória do Belém. Eles teriam morrido numa “resistência seguida de morte”, ao atirar contra os PMs. Entre os mortos estava Anderson Minhano, homem forte de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do PCC. Baleado no lava-rápido, Minhano foi socorrido por três policiais da Rota para um pronto-socorro em Guarulhos, mas não resistiu e morreu. Não foi bem isso o que viu uma testemunha vizinha do Parque Ecológico do Tietê que ligou para o 190. Em seu telefonema, ela descreve como os policiais da Rota teriam parado no acostamento da Rodovia Ayrton Senna, a caminho do hospital, e executado Minhano. “Ai, mais tiro, ai, meu Deus! Ele está atirando e vai atirar de novo. Ai, misericórdia! Ai, Jesus, mais tiro! Isso é à queima-roupa, mesmo, viu. Olha, só Deus na vida desse homem, se ele sobreviver pra contar a história”, narra a testemunha, na gravação divulgada pelo Fantástico, da Globo. Mesmo o ex-secretário Ferreira Pinto afirma que a Rota praticou uma execução na Penha. “Assim que fiquei sabendo, liguei para o comandante-geral da PM e falei: ‘prende os caras’. Para mim, aquilo foi uma execução”, conta. Leia a entrevista de Ferreira Pinto à Agência Pública A defesa dos PMs negou o crime, afirmando que a testemunha não teria condições de visualizar uma execução da distância em que estava, e alegou que a viatura havia parado na rodovia porque um dos policiais estava com cãibras. A versão convenceu o tribunal do júri por duas vezes. Inicialmente, o sargento Carlos Aurélio Thomaz Nogueira, o cabo Levi Cosme da Silva Júnior e o soldado Marcos Aparecido da Silva foram absolvidos num julgamento realizado cinco meses após o crime. A pedido do Ministério Público o julgamento foi anulado, e um novo júri ocorreu em 14 de maio deste ano. Uma das testemunhas de defesa foi o empresário e apresentador de tevê Roberto Justus, que se manifestou a favor do sargento Nogueira, afirmando que o acusado fazia a segurança de sua família havia mais de 15 anos. Independente das decisões da justiça, o PCC havia dado veredito dias após a morte de Minhano, abrindo a temporada de caça aos policiais militares.Covardias de bandido e de polícia
Logo após a chacina no lava-rápido da Penha o PCC passou a direcionar ataques contra policiais militares. Dessa vez, a facção adotou uma estratégia bem diferente das ações praticadas durante os dois ataques anteriores que disparou contra o Estado. A primeira grande ação do PCC, em 2001, foi uma megarrebelião que envolveu 29 unidades prisionais. O ataque seguinte do Comando, em maio de 2006, ocorreu dentro e fora das prisões: além de promover 82 motins no sistema prisional, os criminosos mataram 43 agentes públicos, incluindo policiais, guardas civis agentes penitenciários e até um bombeiro. Em 2012, os ataques do PCC foram mais discretos e direcionados. Não houve rebeliões nos presídios. As ações ocorriam nas ruas, quase que exclusivamente contra policiais militares. “Os ataques de 2006 tiveram como resposta do Estado uma repressão grande, tanto da polícia como no sistema prisional. Muitas lideranças do PCC ficaram por muito tempo no castigo do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado)”, afirma Camila, referindo-se ao regime no qual o preso fica 22 horas por dia trancado sozinho na sela. Em 2012, os ataques menos espetaculares, que podiam ser confundidos com assaltos, dificultava para as autoridades associar diretamente os crimes à facção. “O PCC fez o enfrentamento de uma forma que não expôs as lideranças que estavam presas à retaliação direta pelo Estado, tanto que poucas lideranças acabaram punidas em 2012”, lembra a pesquisadora. Nesses crimes, o PCC agia com a mesma covardia que dizia condenar na ação do Estado. Os policiais eram mortos em seu horário de folga, pelo único motivo de serem policiais militares. Uma das vítimas, por exemplo, a soldado Marta Umbelina da Silva de Moraes, 44 anos, uma PM de perfil administrativo, que provavelmente nunca havia atirado em alguém, levou dez tiros ao chegar em casa, na Vila Brasilândia (zona norte), diante da filha de 11 anos, em 3 de novembro. Nesse caso, como em outros, não demorou para o espírito da vingança se manifestar. Dois dias após a morte de Marta, a dois quilômetros do local onde ela havia sido baleada, um Celta prateado se aproximou de um grupo de jovens em uma esquina e disparou aleatoriamente (veja outros casos no mapa interativo). Dos três baleados, apenas um sobreviveu. O crime ocorreu a cerca de 100 metros de onde estava uma viatura policial. Mesmo assim, segundo testemunhas, os atiradores foram embora sem pressa. Parentes e amigos das vítimas contaram que nenhum deles tinha relação com o crime. Um dos mortos, filho de uma gerente de banco, voltava da academia e tinha acabado de se matricular em um curso de administração de empresas. No dia seguinte à matança, a reportagem encontrou os amigos dos rapazes reunidos em frente à casa de um deles. Estavam a caminho do enterro, vestindo camisetas com os rostos dos amigos mortos. De repente, foram cercados por policiais militares, que apontaram armas para o grupo e, aos gritos, obrigaram todos a encostar num muro enquanto eram revistados. A quebrada já nem podia chorar impunemente os seus mortos.Da ponte pra cá… Nem chorar, nem trabalhar ou estudar, muito menos festejar. Viver se tornou muito perigoso nas quebradas da Grande São Paulo ao longo daqueles meses. Há relatos de que policiais fardados ordenavam toques de recolher após as 22h. O medo levou o comércio a fechar em pleno dia no Jardim João 23, na zona oeste, e em Perus, na norte. À noite as pessoas se trancavam em casa. “Inventa de passar aqui depois das nove da noite para você ver… Não tem ninguém na rua. Onde tem uma turminha, eles metem bala”, contou, em novembro, um comerciante de 50 anos do Jardim Comunitário, em Taboão da Serra. Em Jangadeiro, bairro da zona sul, funcionários de padarias e mercados disseram ter sido orientados a voltar para a casa com a roupa do trabalho após o expediente, para que não fossem confundidos com “suspeitos” e, talvez, assassinados. “Um amigo disse que estava voltando do trabalho à noite, com mochila nas costas, quando uma moto parou do lado, em uma rua aí em cima. O garupa ia atirar, mas o da frente disse ‘para, deixa para lá, esse é trabalhador’. E olha que é só tiro certeiro, cara, pescoço e coração”, contou um manobrista de 23 anos, do Jardim São Luís, também na zona sul. No mesmo bairro, um cozinheiro relatou o clima de terror em que sua vida havia se transformado. “Se vejo dois caras de moto, já penso: ‘Será que é a minha hora de morrer?’. Não vou tomar mais cerveja de costas para a rua no bar”, contou. Apesar do medo, o patrão, morador do centro expandido, não o deixava sair mais cedo do trabalho. “Ele lá vai querer sabendo do que está acontecendo?” Tinha muita gente que não sabia do que estava acontecendo. Ao contrário do que havia ocorrido em maio de 2006, quando o pânico tomou conta de São Paulo inteira, a guerra de 2012 não atravessou a ponte João Dias (símbolo da fronteira entre centro e periferia na capital paulista). Mas houve uma exceção. …e da ponte para lá A exceção foi o assassinato do publicitário Ricardo Prudente de Aquino, 39 anos, em 18 de julho, na zona oeste de São Paulo. Após fugir de uma tentativa de abordagem da PM na Vila Madalena, Ricardo foi baleado na Avenida das Corujas, no Alto de Pinheiros. Socorrido, morreu no Hospital das Clínicas. Não tinha arma. Uma história muito parecida com centenas de outros crimes ocorridos na mesma época. Mesmo assim, ganhou mais espaço na mídia do que qualquer outro, talvez por envolver uma vítima branca, de classe média, moradora do centro expandido. A resposta dada pelo Estado também foi diferenciada. Em 15 de outubro do ano passado, a Polícia Militar expulsou os três acusados pelo crime: o sargento Adriano Costa da Silva Caire e os soldados Robson Tadeu do Nascimento Paulino e Luís Gustavo Teixeira Garcia. A expulsão ocorreu antes de os PMs serem julgados pelo tribunal do júri, o que é incomum.