Escrito en
BRASIL
el
Assistente de Juiz de Direito escreve a ministro do STF: "era de se esperar maior conhecimento técnico e maior rigor em suas manifestações, sob pena de desinformar os jurisdicionados e, no mínimo, de afrontar nosso direito"
Publicado no Escrevinhador
Carta Aberta ao Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal Sr. Gilmar Ferreira Mendes
A notícia “Doações ‘sabotam’ cumprimento de pena, diz Gilmar Mendes a Suplicy” veiculada no Blog do Camarotti (http://g1.globo.com/platb/blog-do-camarotti/) em 14 de fevereiro de 2014, informa que em carta enviada ao Senador Eduardo Suplicy (PT-SP), Vossa Excelência teceu duras críticas aos indivíduos que doaram valores para o pagamento das penas de multas de alguns dos condenados na Ação Penal n. 470, filiados ao Partido dos Trabalhadores.
Através de cópia da missiva que o jornalista teve acesso, percebe-se que em resposta a questionamentos formulados pelo Senador Eduardo Suplicy, Vossa Excelência, sob a justificativa de se pautar pela Constituição Federal e pelo respeito à República, suscitou a aplicação do princípio da responsabilidade pessoal (ou da pessoalidade, ou da intranscendência) da pena, prevista no artigo 5º, inciso XLV, de nossa Carta Constitucional, para questionar a origem, a forma e a destinação dos valores doados aos apenados.
[caption id="attachment_42328" align="alignright" width="300"] Em relação à pena de multa, absolutamente nada assegura que será paga pela pessoa exclusiva do condenado (Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr)[/caption]
Em seguida, Vossa Excelência passa a demandar esclarecimentos a respeito “do ressarcimento ao erário público das vultosas cifras desviadas”, citando inclusive o nome de um dos réus (Delúbio Soares) de forma pejorativa e irônica.
Por fim, concluindo a carta ao senador petista, Vossa Excelência associa a realização das doações para o pagamento das penas de multa a uma medida que contribui para a impunidade, declarando que elas sabotam e ridicularizam o cumprimento das penas dos réus sentenciados.
Eminente Ministro, por ser Ministro do Supremo Tribunal Federal, era de se esperar maior conhecimento técnico e maior rigor em suas manifestações, sob pena de desinformar os jurisdicionados e, no mínimo, de afrontar nosso direito.
Com toda a certeza Vossa Excelência tem conhecimento do debate jurídico que existe a respeito da constitucionalidade da pena de multa. Em virtude mesmo do dispositivo constitucional citado (artigo 5º, inciso XLV), sabe-se que vigora em nosso ordenamento um valor que se irradia para todas as leis penais, determinando que a pena a ser cumprida nunca deverá passar da pessoa do condenado, isto é, só poderá ser cumprida por este. Tanto é assim que, por exemplo, falecendo o réu, o processo ou a pena são extintas (art. 107, inc. I, do Código Penal), não sendo seus sucessores responsabilizados a pagar a pena de multa.
Ocorre que, em relação à pena de multa, absolutamente nada assegura que será paga pela pessoa exclusiva do condenado.
Como assegurar que o réu pagará de seu próprio bolso a pena de multa? Não há como, o que é uma evidente distorção ao princípio da responsabilidade pessoal.
Luigi Ferrajoli, italiano que lançou as bases do garantismo, raciocinou em sua obra Direito e Razão (p. 334) que “a pena pecuniária é uma pena aberrante sob vários pontos de vista. Sobretudo porque é uma pena impessoal, que qualquer um pode saldar”.
Pensemos na maioria esmagadora dos réus condenados em nosso país, em geral pessoas de poucas posses, sem qualquer perspectiva de quitar suas dívidas junto à Justiça. A quem recorrem? A seus familiares, a seus amigos, ao traficante, ao agiota. Trocam uma pena por outra, muitas vezes. A pena de multa, assim, não raro, passa da pessoa do condenado e estigmatiza aqueles ao seu redor.
Vossa Excelência caçoa da boa-vontade de inúmeras pessoas que por ideologia, por um ideal, por boa-fé, resolveram arcar com esse ônus suportado por pessoas que foram julgadas num rito processual que causa espanto a qualquer jurista mais comedido.
Nenhuma lei impede cidadãos de doarem valores a outro. Não importa se a finalidade é pagar uma pena de multa. Não há lei proibindo esta conduta humana. Logo, como Vossa Excelência sabe, por invocar inclusive o “Império da Lei” em sua missiva, não é proibido aos doadores exercerem seu devido direito.
Que se façam as apurações do manejo dessas doações. Aliás, isso não será problema, ante o clima de desconfiança mccarthiana que Vossa Excelência implantou nas instituições com sua declaração infundada (pois sem lastro probatório algum) a respeito de possível lavagem de dinheiro nas doações.
De qualquer maneira, como exposto, não há qualquer fundamento que Vossa Excelência possa argumentar que impeça um brasileiro inconformado com os rumos do julgamento da AP 470 em doar o quanto achar necessário para o pagamento das penas de multa dos condenados filiados ao PT.
Para penas desproporcionais, já que completamente desvinculadas do critério jurídico para a fixação das penas de multa (condição financeira do réu), os doadores encontraram uma resposta razoável, sacrificando-se para mostrar seu apoio aos condenados.
Eles não sabotam e ridicularizam a Justiça. Eles se comprometem em conferir alguma justiça aos condenados, aquela mesma que faltou e vem faltando aos sentenciados no tratamento que eles recebem de alguns de seus julgadores.
(a) Victor Hugo de Araujo Barbosa, 25 anos (Assistente de Juiz de Direito (1º grau), envolvido diariamente com a resolução de processos criminais, sem transmissão na TV Justiça).