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“A milícia elege a base que sustenta o próprio governo. Ou você acha que essas pessoas são eleitas por onde? Não é em outro planeta. É aqui”, diz o deputado
Por Dario de Negreiros, do Rio de Janeiro, especial para o Viomundo*
Quando Marcelo Freixo requereu a instauração de uma CPI das Milícias, em fevereiro de 2007, havia dois meses que tinha assumido pela primeira vez em sua vida um cargo eletivo.
Durante mais de um ano, o requerimento do deputado descansou, esquecido, nas gavetas da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Para que o pedido fosse aprovado, foi necessário que, em maio de 2008, três funcionários do jornal O Dia fossem sequestrados e torturados por milicianos que controlavam a favela do Batan, na zona Oeste do Rio.
O fato serviu de divisor de águas da opinião pública carioca em relação às consequências do crescimento das milícias. Até então, governantes como o ex-prefeito César Maia, o atual prefeito Eduardo Paes e o governador Sérgio Cabral não escondiam sua admiração pela “manutenção da ordem” supostamente promovida pelos milicianos nas comunidades dominadas.
[caption id="attachment_42206" align="alignright" width="300"] “A Rede Globo tem, no projeto de cidade, uma cidade que ela defende. E também com um viés muito autoritário” (Foto Guilherme Perez)[/caption]
Nesta entrevista, realizada no dia 16 de janeiro, no restaurante de um shopping na região de Botafogo, o deputado deixou claro que a capacidade de as milícias influenciarem o processo eleitoral no Rio continua grande.
“A milícia elege a base que sustenta o próprio governo. Ou você acha que essas pessoas são eleitas por onde? Não é em outro planeta. É aqui.”
O projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), tema principal da entrevista, Freixo faz sempre questão de inserir em uma discussão maior: a de um “projeto de cidade”.
Cidade-negócio ou cidade-empresa, “entregue à lógica do mercado”, como bem explicita o professor Carlos Vainer, em entrevista recentemente publicada no Viomundo.
Essencialmente autoritário, tal projeto solapa a participação popular em nome do interesse dos seus “sócios”, dentro os quais contamos, diz Freixo, as grandes empreiteiras e as Organizações Globo, entidade que “trata dessa cidade como grandes negócios”.
“A Fundação Roberto Marinho tem uma série de negócios com a secretaria de Educação, tanto do Estado quanto do Município”, diz. “A Rede Globo tem, no projeto de cidade, uma cidade que ela defende. E também com um viés muito autoritário.”
***
Viomundo – Deputado, eu tenho começado as conversas sobre a situação da segurança pública no Rio com uma pergunta que diz respeito à mudança nos discursos que ouvimos sobre as UPPs. Um discurso que era inicialmente positivo parece se tornar cada vez mais crítico. Houve uma mudança na percepção que temos do projeto das UPPs ou foi o projeto, em si, que piorou ao longo do tempo?
O tempo foi revelando uma série de coisas que vinham sendo exaustivamente debatidas aqui no Rio por diversos setores da sociedade. Desde o início que eu tenho chamado muito a atenção para o mapa das UPPs. E o quanto esse projeto de polícia chamada pacificadora está atrelado a um projeto de cidade.
A UPP não é um projeto de segurança pública, é um projeto de cidade. Com isso eu não estou dizendo que seja um projeto bom ou ruim, eu estou apenas construindo um diagnóstico. Quem define o projeto das UPPs não é a lógica da segurança pública. Se você pegar o mapa da violência no Rio, você não entende por que Copacabana tem quatro UPPs e a Baixada Fluminense não tem nenhuma [a primeira e única UPP da Baixada Fluminense, no Complexo da Mangueirinha, em Duque de Caxias, foi inaugurada no último dia 7, após a realização desta entrevista]. O mapa da violência não explica isso. A região metropolitana não tem UPP. Então a UPP é o instrumento de um projeto de cidade, que só pode ser entendido à luz de outras iniciativas e de outras coisas que acontecem nessa cidade, como a política de remoções e a gestão da lógica privada sobre a questão pública.
Você tem, hoje, um procedimento de privatização não dos serviços, mas da concepção do que é público. Hoje, na verdade, quem domina, quem administra, quem pensa a cidade é o capital privado. Eu costumo brincar dizendo que o Eduardo Paes ganhou uma concessão para ser prefeito. E o Cabral ganhou a concessão, também, mas está de férias, já faz tempo. Então, na verdade, você tem a cidade sendo pensada e decidida à luz do empreendimento privado. Não estou dizendo que o empreendimento privado seja ruim, é bom que se tenha investimento privado. Mas você tem, hoje, as decisões que deveriam ter um caráter público sendo tomadas pelo planejamento privado.
Por exemplo: a gestão de todo o sistema de transportes está nas mãos das empreiteiras. Quem administra o metrô é a OAS, quem administra a Supervia é a Odebrecht, quem administra as barcas é a CCR. Eles ganham também as concessões de algumas rodovias importantes, como a ViaLagos, da mesma CCR. Então você tem as empreiteiras com a gestão da mobilidade urbana. Isso não é qualquer coisa em termos de perspectiva de cidade.
A lógica das UPPs só pode ser compreendida se você entender esse projeto de cidade. Que não é um projeto de cidade que conta com grande possibilidade de participação da sociedade, com uma cidadania ativa. Muito pelo contrário: é a cidade onde há a cidadania do aplauso, onde as pessoas são chamadas para grandes eventos, grandes espetáculos, mas não decidem sobre a segurança, a saúde, a mobilidade, a moradia. Não há canal de participação efetiva para que a sociedade possa decidir os rumos das decisões de interesse público. O mapa da UPP é revelador nesse sentido.
Viomundo – E como é esse mapa?
Você tem a zona Portuária, a zona Sul e o eixo do que interessa da zona Oeste, que é fundamentalmente Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Esse é o tripé do projeto de cidade, que tem relações diretas com as remoções e com os megaeventos. A UPP forma corredores de segurança e áreas militarizadas protegidas nas regiões de grande investimento, onde há maior interesse de retorno desse projeto de cidade.
Então você tem 100% das favelas da zona Sul com UPP. Você tem a Grande Tijuca com UPP. E você tem, em Jacarepaguá, a Cidade de Deus, que era a única que não estava dominada pela milícia no momento da decisão de sua escolha. O entorno da Cidade de Deus está todo nas mãos da milícia: Gardênia Azul, Rio das Pedras. A UPP não é um projeto de enfrentamento às milícias. O Batan [sub-bairro do Realengo, na zona Oeste do Rio, que era dominado por uma milícia e recebeu uma UPP] é uma exceção que confirma a regra.
Viomundo – Essa UPP só teria sido instalada por causa do ocorrido com os jornalistas do jornal O Dia [que foram sequestrados e torturados por milicianos, no Batan, em 2008].
Exatamente. Então não se trata de um projeto que se transformou. Trata-se de um tempo que foi fundamental para revelar o seu vínculo com um projeto maior de cidade.
Com isso eu estou dizendo que sou contrário ao policiamento comunitário? Não, a gente defende isso desde sempre. Você vai ver conversas minhas com o Luiz Eduardo Soares de dez anos atrás, quando eu nem era parlamentar, defendendo o princípio do policiamento comunitário.
Claro que ninguém quer a polícia entrando, matando e saindo. Mas essa negativa não serve para legitimar todo o projeto das UPPs de hoje. Que é, sim, uma produção de silêncio em áreas estratégicas.
Onde, por exemplo, você não tem mediação da sociedade civil. [A UPP] não foi pensada para ter mediação da sociedade civil. Não é pensada para gerar direitos.
O direito à segurança – dizer: “não tem mais o tráfico armado” – não justifica e não legitima toda a lógica militar sobre a favela. Você não tem política de moradia, de saúde. O próprio projeto que tinha o nome de “UPP Social” nunca saiu do papel. E isso eles admitem, já.
Viomundo – Há alguns dados positivos: segundo Eduarda La Rocque, presidente do Instituto Pereira Passos (FSP), a estratégia Saúde da Família saiu de 3% para 40% na cidade como um todo, e 75% nas comunidades pacificadas.
A projeto de Saúde da Família não tem nada a ver com UPP, você tem em vários lugares antes da UPP. E aí é um outro debate. O projeto de Saúde da Família que a gente sempre defendeu, que é um atendimento mais próximo, tem que estar vinculado à rede hospitalar. E ele não está.
Se você tem um diagnóstico feito próximo à sua casa, e você depende da rede hospitalar, você não tem esse vínculo. O projeto de Saúde da Família é um outro problema e um outro programa.
Viomundo – Os ganhos sociais, então, foram marginais?
Evidente que, se você olhar com o olhar do morador, se você pensar que tinha guerra entre facções, entre facção e polícia, e que você não tem mais isso, que você não tem o tiroteio como algo sistemático, isso é um avanço? Claro que é.
Porque a facção é violenta, o tráfico é violento. É uma bobagem querer comparar quem é mais violento: o Estado ou o tráfico. O Estado não pode ter esse padrão de comparação.
Agora, isso justifica todas as outras coisas que acontecem com a UPP? Não.
Da mesma maneira que eu acho que a crítica precisa ser mais responsável. Não adianta você dizer o seguinte: “Eu sou contra a UPP e ela tem que acabar”.
Viomundo – E alguns movimentos sociais já estão com essa bandeira.
É. Eu sou contra o que está acontecendo hoje, sou contra uma série de coisas. A crítica ao projeto das UPPs, hoje, é fundamental.
Agora, ela não pode ser reduzida à ideia de que a gente tem que tirar a UPP da favela. Porque isso não é uma crítica construtiva. Tira a UPP da favela e faz o quê?
Evidente que você não pode abrir um milímetro para a opressão policial, não pode permitir a extorsão, não pode permitir o abuso de autoridade que está acontecendo. Agora, você retira para quê? Para possibilitar a volta do tráfico?
Evidentemente, tem de se tomar um cuidado, inclusive para você não perder a capacidade de ter o próprio morador de favela fazendo essa crítica. Qual é o modelo de policiamento que tem de ter dentro da favela? Isso tem que ser debatido com os moradores da favela. Isso nunca foi feito.
Nunca houve um debate honesto, do governo, sobre o modelo de funcionamento da polícia dentro da favela. Os moradores nunca foram consultados. É absolutamente autoritário.
Viomundo – Uma pesquisa do Rio como Vamos aponta que 45% de moradores de bairros com UPPs consideram a valorização dos imóveis, o fim dos tiroteios e ruas mais tranquilas as principais melhorias depois da pacificação.
Valorização dos imóveis que, muitas vezes, gera também problemas. Não pode ser vista só como uma coisa positiva. Essa valorização muitas vezes gera remoção branca.
A ausência do tiroteio, é claro que é um avanço. Eu acho que é fundamental reconhecer avanços para poder, inclusive, valorizar a crítica que você faz. Eu acho muito ruim a crítica política segundo a qual nada presta. Aí a sua crítica é vazia.
Não ter tiroteio é um avanço. E é preciso dizer isso para, na hora de a minha crítica ser feita, ela ser reconhecida como importante.
Não adianta dizer que a UPP não tem nenhum avanço. Dizendo isso você contraria a opinião, inclusive, dos moradores da favela. Moradores que tem críticas que são importantes, duras, crescentes.
Viomundo – Eu entrevistei recentemente o vice-governador Pezão, que afirmou que o governo do Estado está fazendo grandes esforços e investimentos no sentido de humanizar e de promover uma formação mais cidadã, comunitária, ao policial. Como você vê essa afirmação?
Ah, sim! O Paulo [Aparecido Santos de Lima] talvez seja um exemplo do que o governador está dizendo: morto sob tortura, num sol de 50ºC, com queimaduras de primeiro e segundo graus.
Viomundo – Sentado no asfalto.
É. Isso aconteceu agora. E era um policial formado para UPP.
Nós visitamos o Cfap (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da PM). Eu recebo denúncias todos os dias dos policiais do Cfap reclamando das péssimas condições. Os próprios policiais das UPPs, em uma pesquisa recente, dizem não se sentir contemplados com o projeto da UPP. Não se sentem policiais.
Quando nem o policial da UPP se identifica como algo diferente, pelo contrário, é porque tem coisas muito erradas no projeto.
A formação é muito precária. Eu recebi, neste final de semana, telefonemas de alguns policiais, alunos – sem identificá-los, que eu não posso fazer isso –, que me diziam o seguinte: “olha, botaram a gente para trabalhar na praia”.
Porque pobre vai à praia, isso vira um problema e, aí, tem de se vigiar a praia. E não tem polícia o suficiente para isso.
Então, eles pegaram esses alunos, botaram uma camiseta branca e espalharam na praia para trabalhar como policiais. Eles não são policiais e têm um cassetete. Um aluno me ligou e disse: ‘eu estou aqui há doze horas, em péssimas condições de trabalho. Eu estou com um cassetete e eu nunca tive nenhuma aula para me dizer como é que usa esse cassetete. Se eu tiver de usar, vou usar como porrete. Eu não sei usar isso aqui. Eu estou trabalhando e não ganho para isso. E eles estão dizendo que isso aqui é instrução. Não tem ninguém me ensinando a fazer nada, aqui’.
Que instrução é essa? Esse foi o relato de um policial, para mim, nesse final de semana, agora.
Então não é só perder qualidade. Você tem uma lógica de policiamento que é de uma imensa irresponsabilidade do poder público.
Vai que tem uma correria, um rapaz desses pega aquele cassetete, bate na cabeça de alguém e mata. Aí o governador vem a público e diz que ele é um débil mental. Como já fez. Débil mental não é bem o policial, né?
Viomundo – Mas é possível pensar que a UPP poderia ser, ainda que idealmente, um projeto de segurança pública? Elas ocupam, hoje, segundo dados do Núcleo de Pesquisas de Violência (Nupevi), apenas 3% das mais de mil favelas da cidade.
É um pouco mais, acho que chega a uns 10% da população residente nas favelas do Rio. Mas é evidente que você não vai ter uma UPP em cada favela do Rio de Janeiro.
Essa é uma propaganda feita pelo Cabral que é absolutamente irresponsável.
Viomundo – E mesmo assim nós podemos dizer que o problema do projeto das UPPs é só a localização? Não haveria um problema no projeto, em si mesmo?
A ideia de um policiamento comunitário, próximo, a gente sempre defendeu. Mas desde que a comunidade tenha autonomia. A maior proteção da comunidade tem que ser a própria comunidade. E a polícia tem que ser um suporte.
Por exemplo: nós tivemos no Morro do Cavalão, em Niterói, uma experiência muito positiva com o Gpae [Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais], que foi abandonado, porque é identificado a um governo, depois troca e o outro governo não quer seguir.
O Morro do Cavalão era onde tinha a maior concentração de homicídios das favelas de Niterói. O Gpae fez um trabalho muito interessante, com mediação da sociedade civil. Ali, funcionou.
Você vai poder ter um Gpae em cada uma das favelas? Não, não vai. Mas aí você tem que ter um projeto de segurança pública, com um mapeamento das áreas mais estratégicas, que possam ter polos.
O que você não pode é ter isso refém de um projeto de cidade, só para a parte que te interessa.
Agora, em todos os lugares do mundo onde nós tivemos avanço concreto da ação policial, três coisas foram fundamentais. Uma delas é a proximidade da polícia com a sociedade. A polícia tem que ser próxima da sociedade, tem que ser algo identificado àquele conjunto de direitos do morador.
O morador tem que identificar o policial não como elemento estranho ao seu local de moradia, mas como um ingrediente fundamental para a sua conquista de direitos. Isso a UPP não consolidou, isso a UPP não tem. Mas esse é um princípio de policiamento comunitário importante.
A outra é a formação desse policial, que tem de ser absolutamente distinta da que se tem aqui. E a última é o controle sobre a polícia.
Esse é um tripé fundamental para você ter uma outra polícia. Você não tem uma outra polícia no Rio de Janeiro. Você tem a mesma polícia, que sempre foi violenta e corrupta, agora revestida de um programa que diz ter uma nova polícia sem ter.
Você não tem um controle: o sistema de corregedoria e ouvidoria é inexistente. Você não tem essa proximidade construída à luz da conquista de direitos. E você não tem uma outra formação.
Esse tripé, que em todos os lugares do mundo, como por exemplo na Irlanda, foi fundamental para se ter uma outra polícia, nós não temos nem indícios de nenhuma dessas três coisas acontecendo aqui no Rio.
Viomundo – Eu queria entender melhor a relação das UPPs com as milícias. A gente tem um crescimento importante das milícias no Rio. O relatório de conclusão da CPI das Milícias, que o senhor presidiu, fala de 170 áreas dominadas…
Em 2008. Hoje, mais de 300.
Viomundo – E como as UPPs se inserem nesse contexto?
A UPP não serve para [enfrentar a] milícia. Porque a milícia é a polícia. E a milícia tem o discurso da ordem, que é o mesmo discurso da UPP.
Antigamente havia o discurso da “autodefesa comunitária” [definição das milícias atribuída ao ex-prefeito César Maia], você tinha o discurso da milícia na boca dos governantes e dos comandantes das forças policiais. Hoje você não tem mais isso.
Mas, na prática, você ainda tem a percepção de que a milícia incomoda menos do que o tráfico e, por isso, ela é mais tolerada. Isso não é mais dito, mas é feito. E a UPP mostra isso. Ela é um projeto para o enfrentamento do tráfico, que é o que incomoda.
A milícia tem que ter um investimento de inteligência. Porque a milícia é o crime verdadeiramente organizado dentro do Estado.
É quando o crime tem projeto de poder. É quando o crime tem objetivo eleitoral. É quando o domínio de território, criminoso, se transforma em um domínio econômico e político. Isso não existe no tráfico.
O tráfico nunca transformou o seu domínio territorial em um domínio político, como fez a milícia. A milícia elege, frequenta palácios, tem projeto de poder. A milícia tem seus representantes; o tráfico, não.
Pelo contrário: a relação que o tráfico tem com o Estado é na propina que paga ao policial para deixá-lo funcionar. A milícia, não: ela tem centro social, projeto de poder e é visitada por prefeito e governador.
Viomundo – O [secretário de Segurança José Mariano] Beltrame, com todas as críticas que possam ser feitas a ele, é muito distinto de um Marcelo Itagiba [ex-secretário de Segurança Pública do Rio, apontado no relatório de conclusão da CPI das Milícias como “candidato dos milicianos”].
Claro.
Viomundo – E ele goza de uma boa autonomia no governo. Mesmo assim as milícias continuam crescendo. Como explicar esse crescimento?
Porque a milícia interessa muito mais do que o secretário de Segurança. A milícia elege gente. A milícia elege a base que sustenta o próprio governo.
Ou você acha que essas pessoas são eleitas por onde? Não é em outro planeta. É aqui. A milícia mexe com interesse eleitoral e interesse político.
A milícia não é uma questão de polícia, é uma questão de política. Está muito acima do senhor Beltrame. E ele sabe disso.
Viomundo – A expulsão da população pobre para regiões mais desassistidas pelo Estado não favorece, também, a atuação das milícias?
Claro, é onde ela atua. Dentre a população de zero a três salários mínimos, 88% dos conjuntos do Minha Casa Minha Vida estão na periferia da zona Oeste.
Lugares que não têm sequer acesso a saneamento básico, nem zonas de hospitais e de escolas.
A milícia não é o Estado paralelo, eu não gosto desse termo, acho um equívoco. Porque o Estado não é paralelo a nada, nem ao tráfico, que só funciona porque há propina.
A milícia é o Estado leiloado. Essa é a melhor definição que a gente conseguiu acumular sobre milícia.
São territórios e interesses que o Estado está leiloando para setores que são da segurança pública. E que fazem o jogo político-eleitoral que interessa aos governantes.
E vou te dar um exemplo: na eleição de 2010, o Cabral foi reeleito no primeiro turno. O Complexo do Alemão ainda não estava, naquela época, com UPP.
Naquele momento, o irmão do Marcinho VP foi candidato a deputado estadual. O Complexo do Alemão, nessa época, era chamado de “quartel general do Comando Vermelho”. E o irmão do Marcinho VP, que era chamado dono do Comando Vermelho, não se elegeu. E, naquela região do Complexo da Penha, o Cabral teve 77% dos votos válidos.
Quem mandava no Complexo do Alemão? Fica a pergunta.
Viomundo – Um assunto muito importante, como o senhor sabe, são os desaparecimentos. Um estudo do Ipea de janeiro de 2012 (Daniel Cerqueira, Textos para discussão, Ipea, n. 1697, jan. 2012) diz que a redução do número de homicídios anunciada pelo governo estadual coincide com o aumento dos óbitos classificados como “causa indeterminada”. Os desaparecimentos também podem estar relacionados a essa diminuição?
Nós fizemos algumas audiências públicas pela Comissão de Direitos Humanos sobre o tema dos desaparecidos, inclusive com a participação do Daniel Cerqueira [economista, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], em algumas delas. Não dá, ainda, para você fazer essa associação direta – ou, pelo menos, eu acho que ainda carece de pesquisas.
Mas é um dado fundamental e importante. Você tem um crescimento considerável do número de desaparecidos, no Rio, e você não tem qualquer política para isso.
Quando uma pessoa desaparece, a família vai a uma delegacia qualquer, não há uma delegacia específica. E não estou dizendo que tenha que ter uma delegacia específica, mas deveria ter uma central da Polícia Civil para investigar os casos de desaparecimento.
Por que não necessariamente eu acho boa a ideia de uma delegacia específica para desaparecidos? Porque você não vai ter uma em cada cidade, no máximo você vai ter uma no Estado. Aí, se desaparece alguém a 400 km daqui, a família vai ter que viajar para cá para fazer o registro do desaparecimento?
O registro é muito importante. Por exemplo: suponha que você tem uma pessoa da sua família desaparecida. Você vai à delegacia. Primeiro que o atendimento é péssimo. Em várias unidades de polícia, eles vão te pedir para voltar 48 horas depois – contrariando, inclusive, a lei.
Viomundo – Ou 72 horas, até.
Ou até 72. Contrariando a lei, porque o registro tem de ser imediato. Mas a pessoa que vai pegar o seu depoimento tem de ser treinada para o caso de desaparecimento. Perguntar, por exemplo, se a pessoa desaparecida tem uma tatuagem, pode ser um dado decisivo na localização dessa pessoa. Isso nunca é perguntado. Perguntar o corte de cabelo, a última roupa com a qual ele saiu de casa.
São dados fundamentais para uma possível identificação daquela pessoa em uma outra circunstância qualquer. Não necessariamente a morte.
Então não há nem preparo para o policial que faz o registro sobre esses desaparecimentos. Não há treinamento, não há política de desaparecidos no Rio de Janeiro.
Viomundo – Não há uma preocupação efetiva do governo do Estado?
Não há. Com um número que é absurdo [segundo o estudo "Os donos do morro", a taxa de desaparecimentos subiu de 3,6/100 mil, antes das UPPs, para 6,92/100 mil, após].
Viomundo – Eu tenho uma declaração do vice-governador Pezão dizendo que é um número relativamente pequeno.
Ah, você está brincando que ele falou isso.
Viomundo – Ele falou: “Desaparecidos, durante as UPPs, não são tantos assim”.
Desaparecidos? Como que é um número pequeno? É um número alarmante! Ele não sabe o que está dizendo. Ele não sabe o número de desaparecidos que tem. Nessa, você pegou ele realmente de férias.
O pior é o seguinte: quantos desses desaparecidos são crianças, quantos são idosos, quantos são mulheres? Não há um mapa de desaparecidos. O que é muito grave, porque um idoso desaparece por uma razão que é diferente de uma criança.
Você não tem sequer a padronização do atendimento e a sistematização das informações, para que você possa ter uma política.
Quantos desses desaparecidos voltaram? Não necessariamente esses registros de desaparecidos são de pessoas que morreram. Por isso que eu estou dizendo que ainda é cedo concluir que o aumento do o número de desaparecidos corresponde à redução do número de homicídios.
Não são poucos os que desaparecem por uma questão mental, ou por uma briga. Isso é muito comum entre os jovens: desaparecer por um conflito familiar. E ele volta. E, quando volta, a família vai na delegacia para dizer que ele voltou e fazer um novo registro? Não vai, até porque geralmente foi maltratada no momento inicial. Alguém da delegacia procura aquela família para saber, depois de algum tempo, se voltou ou não voltou? Não, ninguém procura.
Então não tem política para desaparecidos. O número é muito alto, é alarmante.
Dificilmente uma cidade ou um Estado tem, no mundo inteiro, o número de desaparecidos que o Rio de Janeiro tem. O governador Pezão está mal informado. Agora, o problema maior é não ter nem respostas a isso.
É importante dizer que certamente, dentre os desaparecidos, há um número grande de homicídios, o que mascara as estatísticas.
Agora, não se sabe quanto, porque não tem política para desaparecidos. Você não tem um cadastro.
Você tem cadastro de carros roubados e não tem cadastro de pessoas desaparecidas no Brasil. É uma lástima. E você não tem nenhuma ação da Polícia Civil sobre isso.
Viomundo – E em relação às execuções extrajudiciais? No contexto das UPPs, a gente pode falar de um aumento deste problema, que sempre foi grande?
Sempre foi grande, mas a gente tem uma sensação de aumento da violência de Estado. Há uma redução do número de autos de resistência quando o debate sobre o auto de resistência fica muito grande.
É possível também que os desaparecimentos tenham esses autos de resistência mascarados, que também são homicídios.
Sobre o auto de resistência, tem um elemento que é muito importante: não é um problema só policial.
A mão que aperta o gatilho e que mata é acompanhada de uma outra mão, de uma caneta que assina o arquivamento, que é feito pelo promotor. O Ministério Público tem enorme responsabilidade sobre os autos de resistência.
Viomundo – E [o MP] tem sido omisso no Rio de Janeiro?
Mais do que omisso: ele é conivente. Porque o auto de resistência só não é investigado porque o MP não quer investigar, porque ele pede o arquivamento. E o juiz arquiva.
Viomundo – O MP e o Judiciário, então [são coniventes].
Claro. O problema da violência policial não é só policial. É o problema de uma violência institucional que envolve o MP e o Judiciário.
Que, de alguma maneira, sempre foram coniventes com essa ação policial. O MP é um fiscal da polícia e não fiscaliza. Então não adianta falar só da violência letal da polícia quando você tem uma violência institucional grande que acompanha e legitima essa violência policial.
Viomundo – Uma outra discussão importante: como você vê o papel do governo federal na lógica de segurança pública do Rio de Janeiro?
O governo federal tem uma responsabilidade muito grande. Primeiro, porque é quem tem mais recurso. E ele, ao gerar o seu financiamento, devia gerar um financiamento condicionado.
A vinda do dinheiro do governo federal para as polícias do Rio de Janeiro deveria estar condicionada a alguns princípios.
Por exemplo: o governo federal poderia financiar a formação desses policiais em aspectos ligados à cidadania e poderia condicionar a manutenção da vinda deste dinheiro à redução dos autos de resistência.
Ou, então: o governo federal poderia investir na Polícia Civil do Rio de Janeiro para que se tenha um quadro de enfrentamento à questão dos desaparecidos, mas a manutenção dessa verba estaria condicionada ao esclarecimento dos casos de desaparecimento. Ou seja: condicionar essa ajuda financeira a resultados de uma outra polícia.
Esse era um papel importante a ser cumprido pelo governo federal. Que não cumpre.
Viomundo – Sobre o projeto de cidade que você citou, há uma fala do Pezão que eu penso representar muito bem a fala institucional. Ele diz o seguinte: “Nós saímos de um orçamento de R$33 bilhões para R$77 bilhões, em 2014. [...] Isso é pela política de pacificação, isso é riqueza. Isso é a volta do Rio”.
Essa fala do governador Pezão é muito sintomática. Porque ele fala da pacificação e em nenhum momento ele cita um morador da favela como protagonista dessa mudança.
Ele fala da importância que isso tem para fora da favela, não para dentro. Isso tem que ser importante para fora e para dentro. Tem que aprender a ouvir o morador.
Por exemplo: o Complexo do Alemão jamais teria escolhido investimento no teleférico se fosse ouvido. Teria escolhido saneamento básico.
A Rocinha fez uma enorme passeata dizendo: “não queremos teleférico, queremos saneamento básico”. Porque é uma concepção autoritária. E o teleférico do Alemão já está, inclusive, administrado pela Odebrecht, nessa lógica de cidade-negócio.
Viomundo – Mas esses números não têm uma certa importância?
Claro que tem. Claro que é importante investimento, chegada de empresas. Mas uma cidade precisa ser pensada para pessoas. Uma cidade pode e deve garantir os investimentos, as condições para que esse investimento chegue.
Evidentemente eu não estou falando de uma TKCSA, eu não estou falando do Porto do Açu, que gera muito mais dano do que desenvolvimento. A concepção de desenvolvimento, eu também quero discutir. Eu não sei se o que eles estão fazendo no Porto do Açu, com os danos ambientais e sociais, é um bom sinal de desenvolvimento.
A TKCSA, na zona Oeste do Rio de Janeiro, aumentou em 80% a produção de CO2. Gerou uma série de doenças respiratórias e de pele, não gerou os empregos que ia gerar, acabou com a pesca artesanal da baía de Sepetiba.
Então, tem investimentos e investimentos. Alguns investimentos bem sucedidos, bem feitos e bem vindos. E outros, não.
É preciso ter uma política de desenvolvimento que seja pensada levando em conta a qualidade da vida dessas pessoas. A gente tem zonas de sacrifício: a zona Oeste é uma zona de sacrifício para um projeto de cidade. Tanto econômico quanto social.
A cidade pode ter os negócios, mas a cidade não pode ser, ela, negociada. A cidade não pode ser, ela, o negócio. A cidade tem de ser voltada para as pessoas. Que venham as empresas, que sejam bem vindas.
Agora, a gestão da cidade, os princípios da cidade, a lógica da cidade tem de ser para as pessoas.
Ora, todo o debate sobre o complexo do Maracanã: fechamento da Escola Friedenreich, do [estádio de atletismo] Célio de Barros, do [parque aquático] Júlio Delamare, da destruição do Museu do Índio. Eles recuaram, eles perderam.
Porque eles estavam entregando aquilo a uma lógica de cidade-negócio que não interessava ao conjunto da sociedade. Ninguém foi ouvido. A sociedade não foi ouvida sobre a alteração de uma das coisas mais preciosas da história do Rio de Janeiro, que foi o Maracanã.
Viomundo – E, além das empreiteiras, que outros atores nós podemos falar que são interessados neste projeto de cidade?
A Rede Globo é um deles. A Rede Globo é sócia deste projeto de cidade. E, não à toa, ela tem na UPP quase que uma patente.
A Rede Globo trata dessa cidade como grandes negócios. Ela é sócia, mesmo, inclusive nos negócios efetivados.
A Fundação Roberto Marinho tem uma série de negócios com a secretaria de Educação, tanto do Estado quanto do Município. Isso envolve dinheiro, contratos, projetos. A Rede Globo tem, no projeto de cidade, uma cidade que ela defende. E também com um viés muito autoritário.
A possibilidade de debater a cidade, em um lugar onde existe tamanho monopólio de informação, está prejudicado. Você não tem jornais, hoje, no Rio de Janeiro.
Você tem fundamentalmente dois jornais, um deles muito pequeno. Então há um monopólio muito forte da informação no Rio. Por isso que as redes sociais, os sites, enfim, se tornaram elementos decisivos para que você possa fazer um debate mais honesto e mais profundo sobre essa concepção de cidade.
A privatização da saúde, através das OSs (Organizações Sociais), tem os seus sócios. Um dos piores modelos de saúde que tem, no Brasil inteiro, é o do Rio. Absolutamente entregue aos interesses das OSs, desse modelo de cidade-negócio.
Viomundo – Que tipo de legado as grandes intervenções urbanas realizadas em função da Copa e das Olimpíadas deve deixar para o Rio?
Espero que não seja o mesmo legado que os Jogos Panamericanos deixaram, né? Nós já passamos por isso. Qual foi o legado? Nenhum.
O legado é o [Parque Aquático] Maria Lenk, é o [estádio do] Engenhão. Qual é a utilidade? O que é que a prática esportiva ganhou, depois dos Jogos Panamericanos, por exemplo nas escolas públicas? Nada.
O que é que melhorou no sistema de transporte? No sistema de comunicação?
O problema é que esses grandes eventos trazem turismo, trazem divisas, trazem investimentos, mas se isso não for pensado com um projeto de cidade voltado para as pessoas, numa cultura de direitos, isso não fica. Isso não se consolida como direito.
Porque isso é pensado na lógica do lucro, na lógica exclusiva do investimento, que não tem qualquer responsabilidade com os direitos das pessoas.
Há, então, um problema de fundo, que é de concepção de cidade. O legado pode ser um ou pode ser outro. Depende qual é a concepção de cidade e como é que o poder público se posiciona.
Esse agachamento moral diante da Fifa não nos permite sonhar com grandes legados.
Ouça, abaixo, dois trechos da entrevista:
*Dario de Negreiros viajou ao Rio de Janeiro com despesas pagas pelos assinantes do Viomundo, aos quais agradecemos por compartilhar conteúdo jornalístico independente com os demais internautas. Esta reportagem faz parte de uma série que analisa as políticas públicas dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e do governo Dilma.