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Uma parte da esquerda coabita o governo com setores tradicionais de direita, mas a direita “moderna” e órfã vicejou onde a esquerda governista deixou-lhe o campo aberto
Por Lincoln Secco*, na Carta Maior
As manifestações de junho ainda deixaram um rescaldo. Não sabemos quando virá a nova onda. Embora generalizada, ela obrigou os prefeitos a tomarem medidas imediatas. Em agosto parece ter chegado a hora dos governadores. Descobriu-se rapidamente que a malversação dos recursos públicos é filha dileta do autoritarismo de Alckmin e Cabral, protegidos por anos pelo capital monopolista midiático.
A onda chegará ao Congresso, ao Judiciário e às Forças Armadas? Não sabemos. A onda sequer é uma palavra agradável desde que o filme alemão de Dennis Gansell Die Welle (a onda) recolocou o nazismo diante de nós. A imagem da onda é a da fúria e do caos. Para onde vão os manifestantes de junho se eles não têm partido?
Do ponto de vista das classes sabemos algo sobre os manifestantes graças a artigos como o de Henrique Pissardo na Carta Maior. Por exemplo: a classe operária tradicional, os trabalhadores rurais e os movimentos populares de esquerda não protagonizam o movimento. Mas eles não estavam inertes, basta ver o aumento do número de greves no ano de 2012. E o apoio passivo da maioria da população às reivindicações de junho garantiu seu impacto político.
[caption id="attachment_28617" align="alignleft" width="350"] Para onde vão os manifestantes de junho se eles não têm partido? (Foto http://www.flickr.com/photos/bfernandes/)[/caption]
Do ponto de vista histórico há algo a acrescentar. Nos anos 1990 o Brasil viveu o ataque neoliberal aos serviços públicos já degradados. Ainda assim, os governos foram impotentes para evitar a organização de várias conquistas da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, como o sistema único de saúde e a universalização da educação. Assim como os indicadores sociais básicos, a esquerda cresceu.
Isto parece um contrassenso, pois aquela época ficou conhecida por “década neoliberal”. É que mesmo derrotada eleitoralmente em 1989, a esquerda (MST, CUT, UNE e partidos operários) havia exercido tal pressão popular nos anos anteriores que teve força para disputar hegemonia e fazer forte oposição aos governos do PSDB.
Deixo para os estudiosos gramscianos do Brasil a discussão se houve uma hegemonia de esquerda, mesmo naquele sentido restrito de ditar os valores fundamentais da vida política. Provavelmente não. Mas a presença de uma esquerda forte nos anos 1980 garantia ao menos a disputa daqueles valores. A contra-hegemonia criava o pólo negativo indispensável para a democracia burguesa. Isso não mudava o padrão civilizatório, mas permitia um circuito virtuoso que obrigava o capitalismo selvagem a se civilizar. Quando a direita impôs-se a estabilidade política e monetária (1994) ainda tinha que conviver com a potencial hegemonia de esquerda à sua porta.
Depois de 2002 vivemos o fenômeno contrário. Lula venceu acreditando que deveria fazer compromissos com o pensamento conservador. Decerto promoveu mudanças substanciais na área social e criou aquilo que o PT defendia desde seu V Encontro de 1987: o mercado interno de massas. Da mesma forma Fernando Henrique Cardoso teve que dizer que não era neoliberal, ainda assim conseguiu reconfigurar a estrutura patrimonial do capitalismo brasileiro através das grandes privatizações. Não esqueçamos que no decênio neoliberal de Collor e FHC a desigualdade subiu em 58% das cidades brasileiras e no decênio petista caiu em 80% dos municípios (OESP, 5/8/2013).
Mas é justamente sob o impacto de mudanças sociais que estavam no programa original do PT que o pensamento que lhe deu origem começou a ceder sobre o terreno movediço daqueles que duvidam das próprias crenças. Tudo o que se seguiu se explica pelo enfraquecimento da contra-hegemonia de esquerda: a escolha de sustentabilidade tradicional do governo, a crença anacrônica no neodesenvolvimentismo (como acentuou recentemente Ricardo Musse), a adoção do lulismo (conceituado por André Singer) como política consciente de conciliação de classes e o medo de mobilizar a nova classe trabalhadora como acentuou Antonio David em artigos no Viomundo.
Por outro lado, pela primeira vez desde a redemocratização o pensamento de direita se fortaleceu na classe média, dominou amplamente a imprensa e começou a criar os seus novos institutos privados de hegemonia. Ele se abrigava antes nas cúpulas empresariais, nos clubes de elite, nas festas de celebridades, nas ceias de natal ou em rodas de amigos. Alguém poderá dizer que certas revistas semanais sempre achincalharam o PT. Não é verdade, contudo, que defendessem explicitamente os valores da direita. A palavra capitalismo não era empregada em sentido positivo nos anos 1980.
Mesmo na chamada década neoliberal a Direita via-se no canto do ringue ideológico porque enfrentava o PT. A classe média aderiu ao primeiro mandato do PSDB porque este partido, com origem suposta na esquerda, não tinha a cara de vetustas raposas. Quem viveu a história do PT sabe que havia fortes tendências internas e externas ao partido propugnando uma aliança com os tucanos. E até hoje há quem se lamente por ela não se ter viabilizado.
Fernando Henrique não se assumiu como liberal. Após andar citando Gramsci, aderiu à terceira via de Schröder, Blair e Clinton. No seu segundo mandato ele perdeu o apoio político de uma classe média sempre dividida entre a direita e o PT. Mas a hegemonia não se resume às eleições. Tanto assim que em 2005 o PT perdeu aquele apoio nos setores médios e ainda não sabemos que valores ele difundiu para a classe mais desprotegida onde ele alargou seu respaldo eleitoral.
O PT raramente deixou de crescer. Mas as mudanças no mercado de trabalho, o ataque às greves, as crises e o declínio da militância conduziram o partido a apresentar-se em 2002 como uma enorme agremiação eleitoral que declinava em força ideológica e militante.
Quando cuspia os caroços chupados da árvore da vida, a direita consolou-se com o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Colheita tardia
Estamos hoje diante do fenômeno curioso da colheita de inverno. Não se colhem rosas é evidente. A “demora cultural” (Sorokin) reflete uma posição de classe incapaz de aceitar os novos dinamismos da sociedade civil e direcioná-los construtivamente a um patamar superior. Dessa maneira revivemos os ciclos em que os avanços políticos são desfeitos pela hegemonia tardia. Ciclos políticos e econômicos que ora colocam o Estado ora o mercado como protagonistas, pois a economia capitalista não é nunca seriamente transformada.
Seria a hegemonia tardia um oxímoro? Gramsci pensou a hegemonia como um processo que pode começar na fábrica, nas disputas das classes trabalhadoras. Mas uma vez atingido o poder político ela deve incorporar o poder de coerção. Vimos que o Governo Lula não conseguiu influenciar nem a sua polícia e muito menos as Forças Armadas ou o STF, cuja maioria dos ministros ele indicou. Restaria ao menos mobilizar as ruas como ameaça virtual aos seus adversários.
Junho desnudou perigosamente o PT, quiçá outras forças de esquerda. Isto porque agora a direita não teme mais a mobilização popular que podia ser convocada por petistas. O que não significa que tenha desvendado o enigma das massas sem partido.
É que não se deve reduzir a hegemonia a um sistema consensual, esquecendo o momento coercitivo. Parcelas da esquerda pensaram que a coerção era só um momento militar. Mas a história do PT também revela que a pressão popular nas ruas, as greves e os levantes de massas são formas de imposição coercitiva que provêm de fora da sociedade política.
É verdade que a hegemonia da direita é contrastada por algumas políticas governamentais. Nenhuma delas toca a propriedade privada ou as grandes fortunas, diga-se de passagem. E não têm meios de capilaridade social ao contrário do que apregoam porta vozes da “liberdade de imprensa”.
Que as reivindicações de junho tenham o ar de contraditórias deriva da verdadeira disputa de hegemonia que hoje existe. Uma parte da esquerda coabita o governo com setores tradicionais de direita, mas a direita “moderna” e órfã vicejou onde a esquerda governista deixou-lhe o campo aberto, financiando-lhe (!) os seus institutos privados de hegemonia em nome da ideologia da liberdade de imprensa. Não realizou assim liberdade alguma posto que a massa de informações é controlada por grandes empresas.
Outra parte dos manifestantes solicita o que o Governo Dilma renunciou a fazer: avançar. Ir além do legado de Lula.
Que todos peçam mais do Estado não nos deve iludir. Há algo de esquerda nisso. Mas de direita também porque o que interessa é o rumo que as manifestações vão tomar. A Direita também usa a defesa do Estado desde a Revolução de 30. Quando diz que quer menos impostos e menos gastos públicos é só para que o Estado se concentre naquilo que ele deveria unicamente fazer: saúde, segurança, infraestrutura e educação.
Obviamente que se trata da defesa do Estado deles. Somente um núcleo duro defende explicitamente o Estado mínimo. Mas este núcleo é fundamental para dar autoconfiança à burguesia e vergar o arco histórico para trás, como gostava de dizer Florestan Fernandes. É ele quem dá continuamente a seiva para a erva daninha da direita moderada.
A hegemonia não é só uma capacidade eleitoral. É a direção de grupos aliados na sociedade civil e poder de pressão através de elementos que estão muito além dos partidos. A direção necessita de um programa que aponte para a mudança das relações sociais desde as empresas até a construção dos meios que disseminam os valores dominantes.
*Lincoln Secco é professor de história na USP.