Para o sociólogo e jornalista Marcos Romão, a chegada de médicos cubanos, parte deles negros e negras, é como um choque terapêutico para entendermos a profundidade do "apartheid brasileiro"
Por Marcos Romão, no MamaPress
[caption id="attachment_29822" align="aligncenter" width="600"] O médico Camilo Ramirez Maura é um dos profissionais estrangeiros que vai atuar no programa Mais Médicos (Foto: Elza Fiuza/ABr)[/caption]Poderia ser natural em meu Brasil, qualquer criança ou pessoa me perguntar qual a minha profissão, se eu responder que sou médico, mesmo vestido de branco, feito respondi uma vez à uma balconista negra que me servia café, ela olhou desconfiada e me disse que pensava que eu parecia mais pai de santo, quando lhe afirmei que na verdade sou sociólogo, ela me olhou mais espantada ainda, dizendo, feito o presidente Fernando Henrique?
São situações naturais para qualquer negro no Brasil estas que acontecem no dia a dia com a gente, não somos o que somos, somos apenas o que nascemos para ser. Nascemos pra sermos nada ou quase nada.
Eu mesmo me flagro volta e meia, ao conversar com as pessoas, com uma dúvida interior, que me faz perguntar no íntimo, será que o cara tá acreditando em mim, será que eu estou me apresentando mais do que devia para convencer o interlocutor, que eu sou o que sou e tenho a experiência que tenho? Será que não exagero ao me descrever, para convencer ao outro que sou eu mesmo o que sou?
Natural para a gente é ser servente, empregado doméstico, supervisor de segurança se estiver de terno e até manobreiro, que alguém entrega a chave enquanto a gente espera a namorada chegar para nos encontrar em um restaurante fino. Não importa se o interlocutor é negro ou branco, cortamos um dobrado para convencê-lo de que somos o que somos e basta.
No meus vinte anos na Europa, quando sentava em um bar, poderia estar ao meu lado uma chanceler da república ou uma empregada doméstica, que se eu não conhecesse pela foto, não saberia quem é quem.
Aqui não, se é branco é alguém, se não é branco que nos convença.
Aqui no Brasil se tem cara e não se tem cara e a cor da cara ajuda a definir a profissão, a posição e o poder diagnosticado na pessoa que você se confronta. Dependendo da nossa avaliação ou pedimos licença, ou passamos por cima. Quase sempre tem dado certo para todo mundo. Quando não dá certo e alguém grita racismo, vem logo a desculpa, mas foi um mal entendido, esta não foi a nossa intenção.
Aqui a cara define a sua profissão, o seu poder e a sua preferência no trânsito da vida profissional.
Até para as crianças, que reconhecem tudo no espírito, é um problema identificar uma pessoa negra no seu cotidiano que não faça parte do universo de pessoas a que esta criança esteja acostumada a ver as pessoas negras.
Médicas, engenheiras, arquitetas, presidentas escapam até para estas crianças do universo de domésticas a que elas estão acostumadas a verem suas mães, tias, quando são crianças negras, e babás quando são de criaças brancas que falamos.
Assim, quando a jornalista potiguar cor de "barata sem casca", Micheline Borges, causa uma revolta nas redes sociais ao expressar sua opinião sobre os médicos cubanos que estão chegando ao Brasil para trabalhar no programa "Mais Médicos". "Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica", como afirmou a repórter, me causa um certo espanto sobre o porque de tanta revolta do público feissebuquiano, quando ela falou o que a maioria destes leitores pensam.
A infeliz cometeu apenas a besteira de confirmar o racismo que a maioria dos brasileiros carregam dentro do coração todos os dias.
Ninguém se espanta e nem vai para as redes perguntar por que só tem médicos brancos no Brasil.
Todos estão para lá de mal acostumados em verem cenas de filas negras esperando no SUS. E, as 8hs, as filas de brancos estacionando os seus carros e descendo para atravessar aqueles mares negros, de pessoas humanas de pele preta ou amareladas de fome, que sempre estão a sua espera. [caption id="attachment_29821" align="aligncenter" width="600"] (Foto: Valter Campanato/ABr)[/caption]
Foi chocante assistir a chegada dos médicos cubanos em São Paulo. A foto estampada nos jornais chocou até a mim, homem vivido neste mundo planetário. Deus dos Céus, um monte de mulheres e homens com as caras dos peixeiros de nossas esquinas, fortes como os entregadores de gás do dia a dia, e com aquele olhar afável das nossas queridas empregadas domésticas. Isto não estava no meu enredo de vida como um brasileiro negro, pois eram e são todas e todos médicas e médicos.
Quiseram os Deuses, via a transversal do comunismo, dar um choque terapêutico no nosso racismo, tão querido como um calo conservado de nossos avós?
E ainda aparecem uns jornalistas, que parecem que descobriram a pólvora do racismo brasileiro, a dizerem-se solidários com os cubanos, que sentem vergonha pelo racismo dos médicos brasileiros. Outros, menos jornalistas, também sentem vergonha como se o assunto não fosse com eles.
Meu avô sempre dizia, vergonha de quem não se reconhece racista e lágrimas de crocodilos não acabam com o racismo, nem enchem copo de quem tem sede por justiça e igualdade.
Tem mais de 125 anos que nós negros lutamos para termos acesso às escolas e quanto mais estudamos, mais as escolas de "excelência" ficam brancas.
Tem mais de 40 anos que lutamos por cotas, levamos 10 anos na justiça, ganhamos mas não levamos a quina, pois universidades como as de São Paulo, sempre arranjam um jeito de não permitirem nossa entrada.
Numa esquina perto de minha casa vejo todo os dias dois mares de cores crianças se cruzarem. De um lado uma escola privadas, escola de excelência que forma prefeitos e governadores. As crianças brancas atravessam a rua em direção a zona rica da cidade. Do outro lado tem a escola pública , que forma as empregadas domésticas e os peixeiros da esquina.
As crianças se cruzam, pretas para as favelas e brancas pra os play grounds. Sinto que estamos enchendo um balde furado. Nossas crianças negras estão marcadas para perderem e morrerem.
Que a foto desta negrada cubana estampada nos jornais, tenha o mesmo efeito que a foto de Pelé teve na África do Sul, quando publicada na primeira página em 1958. Foi a primeira foto de um negro na primeira página de um jornal da África do Sul. A foto de Pelé inspirou muitos jovens negros da época, como me disse Desmond Tutu, ao verem que elas, crianças negras, poderiam serem o que desejassem. Levaram 30 anos e estão conseguindo.
A vinda de tantos médicos e médicas negras para o Brasil (apesar de ser tão pouquinho café neste balde de leite que é o sistema de poder curador do Brasil) é mais do que um exemplo de ação para a saúde física de nosso povo racista até nas entranhas, é um choque terapêutico para entendermos a profundidade do apartheid brasileiro.
Aqui deixo como um exemplo a entrevista que fiz no início do ano com uma médica negra brasileira de minha cidade.