Rogério Giannini, presidente do Sindicato dos Psicólogos de São Paulo, analisa as implicações da tentativa de derrubada do veto da presidenta Dilma Rousseff ao Ato Médico
Por Rogério Giannini
O PL do Ato Médico é a expressão jurídica de uma disputa da classe médica por maior espaço no mercado de trabalho. Também pode ser inserido como uma tentativa de desregulação das relações de trabalho no setor de serviços de saúde privados. Ainda podemos considerar que é uma forma de descaracterizar o modelo assistencial do SUS, submetendo-o à lógica privada procedimental e centrada no modelo médico e hospitalar que o projeto de saúde pública busca superar.
O PL fornece uma série de mecanismos jurídicos que hierarquizam o conjunto das ações de saúde, dando ao profissional médico a primeira e a última palavra sobre o que fazer. As ações não são vistas como processos de colaboração entre diversos saberes, em que o centro é o sujeito que está na condição de paciente, mas como uma relação de subordinação das demais profissões ao saber médico, cujo centro é a doença.
O pano de fundo desta discussão é sem dúvida o próprio conceito do que seja saúde, o binômio saúde-doença e as estratégias de enfrentamento dessas questões tais como estão definidas pelo SUS, em que o Ato Médico claramente vai na contramão.
Curiosamente, ao olharmos para a atual realidade, dificilmente vamos encontrar elementos que indiquem que há uma perda do poder médico no sistema de saúde. Salários comparativamente maiores, postos de comando e de gestão, prestígio social e visibilidade nos meios de comunicação, além de forte presença no poder legislativo é o que pode ser constatado.
Então, o que querem os médicos? Parece-nos que se apresentam dois problemas reais em que o Ato Médico é a terapêutica errada. O primeiro problema é a perda da importância do saber médico frente à própria organização do cuidado á saúde, que é antes um cuidado à doença. Não no SUS, mas no mundo privado em que cada vez mais o saber médico fica a serviço do saber acumulado e apropriado como mercadoria e manifestado em forma de tecnologias, patentes, exames laboratoriais e de imagem de alto custo, indústria farmacêutica etc.
O outro problema, correlato, mas não idêntico ao primeiro, é a forte presença do setor privado na saúde. Mesmo que possamos considerar que o SUS é um sistema único e o setor privado se apresente como complementar e suplementar, historicamente o que se observa é um crescimento fabuloso do setor privado que, entre outras conseqüências, acaba por impor métodos gerenciais e padrões de ralação com sua força de trabalho.
Essa relação é muito mais próxima ao do setor financeiro (seguro-saúde) do que a dos setores produtivos. A exigência é que o médico, na posição de um dos gerentes do negócio, se comporte como um gerente de banco ou de uma seguradora. Media produtos (exames, remédios, terapêuticas...) e sua ação acaba sendo um elo numa cadeia produtiva, que é em alguns casos centenas de vezes mais onerosa que seu ganho. É nesse sentido que falamos em desregulação do mercado de trabalho promovida pelo Ato Médico, na medida que se vincula à lógica gerencial privada.
Para nós, o Ato Médico só aparece agora com essa força por que o próprio modelo de saúde é que está em jogo. Na lógica do SUS, na visão da saúde pública e da promoção de saúde, o conjunto das profissões e dos múltiplos agentes envolvidos no processo de construção da saúde ganha papel estratégico. A saúde pública pode e deve ser sistêmica e socialmente considerada.
A lógica privada não quer tratar com múltiplos atores empoderados do processo da saúde. Regular via Ato Médico é desregular a relação com as outras profissões e múltiplos atores do processo de construção da saúde.
Portanto, havia muito mais em jogo do que o já nefasto efeito de subordinar as demais categorias da saúde, transformando todos profissionais em meros paramédicos. De certo modo a importância estratégica de se derrotar o Ato Médico não foi claramente percebida pelo Governo. Penso que somente quando resolveram enfrentar a questão da desassistência com o Mais Médicos é que a fixa caiu por completo. A aprovação no dia 18 de julho certamente pegou o Ministério da Saúde de surpresa a ponto do abacaxi ter caído no colo da Presidenta que, firmemente, vetou.
Se podemos afirmar que o Mais Médicos forneceu uma chave para a compreensão mais profunda do que representa o Ato Médico, afirmamos também que derrubar o veto é preparar a derrota do Mais Médicos ou ao menos enfraquecer sensivelmente a posição do Governo.
No mínimo teremos um reforço considerável à posição das entidades médicas que hoje se apresentam como uma importante base social a serviço do atraso, que se expressa inclusive pelo conteúdo das críticas, frequentemente recheado de preconceito de classe.
Resta-nos pressionar para manter o veto e seguir com mais força na construção do SUS e dar o próximo passo, que sem dúvida passa pelo enfrentamento do poder do setor privado de prestadores de serviço e dos planos de saúde.
Rogério Giannini é presidente do SinPsi (Sindicato dos Psicólogos de São Paulo) e Secretário de Relações de Trabalho da CUT SP
(Foto de capa: Alex E. Proimos / Flickr)