A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monumento às Bandeiras de São Paulo cumpre o papel de resgatá-lo para o curso da história. E, assim, podemos enxergar as chagas da maldade que representa
Por Guilherme Leite Cunha
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As estátuas e os monumentos públicos são, em sua maioria, a realização material de uma ação conservadora: a abstração e fetichização da história. São a negação do processo histórico, de suas lutas e contradições, por parte dos vencedores. Que fincam ali o seu poder em pedra, cimento e granito, com uma dupla função didática: convencer-nos sobre uma suposta irreversibilidade da história e nos educar sobre quem são os vencedores. O “monumento” se configura como um poder final que atua no reconhecimento público do dominador e na naturalização de sua dominação, querendo se configurar como um patrimônio público, total, da nação, dos vencedores, mas também, e fundamentalmente, dos vencidos.
Para essa naturalização é necessária uma identificação afetiva a esses monumentos. Nesse sentido, eles devem ser referência em termos estéticos e de manufatura. E quanto mais referencial a obra for, nesses termos, mais perversa ela é para a cultura dominada. É inegável a existência dessas características ao Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, que, por seu suposto valor estético intrínseco, foi facilmente interiorizado como patrimônio cultural de todos os paulistas.
Contudo, também é inegável que os bandeirantes, nossos vencedores, são assassinos. Nossos heróis são estupradores. Nossos ídolos são os mais cruéis torturadores, que durante séculos produziram um dos maiores genocídios de nossa história: o massacre de populações inteiras, o extermínio de suas histórias, de suas culturas, de suas vidas, de seus nomes e línguas.
[caption id="attachment_32431" align="alignright" width="415"] Uma “obra de arte” não pode valer mais que uma gota de sangue. E nesse entendimento reside a chave para compreender o alto grau de inventividade e valor estético-político da intervenção dos Guaranis (Mídia Ninja)[/caption]Conquanto, a história não morreu nem “está longe demais”. E talvez os vencidos tenham sobrevivido. Os vencidos vêm sobrevivendo marginalizados nas bordas das cidades, em restos de terra, em pedaços de chão, lutando por um mínimo de vida digna, por demarcação e reconhecimento. E esse reconhecimento passa também pela constatação de quem fez isso com eles, de quem os matou, de quem os proibiu de contar suas histórias, suas ideias e suas realizações.
A ação guarani de atacar, ainda que simbolicamente, o Monumento às Bandeiras da cidade de São Paulo, cumpre o papel de resgatar o monumento novamente para o curso da história. E ao reapresentá-lo ao processo histórico, podemos novamente enxergar nele as chagas da maldade que ele representa.
“Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro.”, atesta Walter Benjamin. E ao realizarem a intervenção na estátua, os indígenas tentam interromper esse processo de transmissão. E interrompendo esse processo, podemos relembrar que uma obra de arte não se encerra somente em seus valores formais, mas fundamentalmente em seus valores culturais, de significação e representação. E, nesses termos, a obra paulista significa e representa a morte e o massacre: sintomas da barbárie moderna que se entende como civilizatória. Desvelados pela tinta guarani, ela nada mais é que um documento de exaltação a essa barbárie, exposta claramente, no vértice de grandes avenidas, da subjugação de negros, índios e mestiços, que, como escravos, trabalham exaustivamente para a glória de seus proprietários.
Inúmeros monumentos nazistas foram derrubados e removidos, assim como célebres estátuas estalinistas. Até mesmo Saddam Husseim teve sua escultura demolida. Todas elas nos lembram de que o curso da história continua, e que nada é intocável e imortal. Assim, da mesma forma, o Monumento às Bandeiras, além de outras obras, como Borba Gato, e todas as outras homenagens aos assassinos bandeirantes devem e precisam ser extintas. Pelo motivo mais simples e civilizatório possível: uma “obra de arte” não pode valer mais que uma gota de sangue. E nesse entendimento reside a chave para compreender o alto grau de inventividade e valor estético-político da intervenção dos Guaranis.
Como sabemos, contudo, nossa tradição é de conciliação e não de rompimentos históricos. A transmissão de um vencedor a outro, em nossas terras, é pautada pelo cinismo de quem sabe que o poder continua nas mesmas mãos há 500 anos. Cabe, pois, a nosso processo civilizatório passarmos de obras de exaltação à barbárie para a construção de memoriais de resistência e de lembrança aos genocídios cometidos. Mais do que isso, passa pela realização de justiça, seja prendendo torturadores ainda vivos, seja derrubando suas estátuas. Passa, por fim, pela realização de justiça, punição e castigo às elites assassinas.
*Guilherme Leite Cunha é mestre em estética e história da arte pela USP